Há cerca de um ano mudei de médico de família a quem estabeleci exigente desafio: o de nos manter vivos e saudáveis o bastante para assistirmos à cerimónia de formatura da nossa neta mais nova, agora com onze meses. Compreende-se por aqui que conto socorrer-me de frequentes atos médicos durante duas dúzias de anos apesar dos condicionalismos de ser obeso e ter hipertensão. Felizmente que o interlocutor não se intimidou com a exigência e descansou-me com a perspetiva de só não alcançar esse objetivo se não investir algum esforço em obtê-lo. E, eu que guloso me confessei, não me confrontei com a conversa parva de me privar dos prazeres de mesa ou outros, que um dia me haviam levado a reagir a uma colega sua, instando-a a mostrar a mesma eficiência sem pôr em causa o meu assumido hedonismo de não me predispor a sacrifícios atentatórios da permanente reivindicação a ser feliz sem grandes incómodos.
Em suma: tendo em conta a ambição exposta, não me dá jeito nenhum manter o dispendioso seguro, a que me vi obrigado a recorrer quando, mudando de casa, fiquei sem médico de família no Serviço Nacional de Saúde. Não aprecio, igualmente, as condições terceiro-mundistas daquele que me cabe, sempre caótico, barulhento, desorganizado nas ocasiões em que a ele recorri.
Não tenho, igualmente, ilusões quanto aos méritos do Seguro de Saúde, que me tenho visto obrigado a pagar. No ano transato, depois de esgotado o pecúlio atribuído pela seguradora para os meus gastos nesses atos médicos, vi-me coagido a pagá-los bem mais caros no último trimestre do ano. E sei que, acaso tenha a desdita de uma doença grave, por exemplo do foro oncológico, serei empurrado para as clínicas e hospitais do setor público, porque os senhores da medicina privada não andam nisto para sequer ganharem pouco dinheiro, quanto mais o perderem com doentes exageradamente consumistas.
Tenho, pois, fundamentadas razões para defender o Serviço Nacional de Saúde, que António Arnaut, criou com outros parceiros injustamente esquecidos, quando se fala da paternidade dessa conquista de Abril, imposta pela Lei 56/79, de 15 de setembro, então aprovada num governo comandado por Mário Soares. Lei só possível após árduo esforço e que contou com a oposição tenaz - é bom não o esquecer! - do CDS e do PSD, incluindo Marcelo Rebelo de Sousa.
Apesar de se lançar por diante um SNS, que chegou a ter um desempenho de qualidade bastante superior ao que, então, se praticava em muitos países europeus, as direitas foram bem sucedidas na estratégia de o sabotarem o bastante para que proliferasse o princípio de «quem quiser saúde que a pague» como então um deputado do PSD não teve pejo em defender num memorável debate em que as suas palavras causaram escândalo. A consequente indignação não bastou para que os interessados em fazerem negócio com a (falta de) saúde dos portugueses entrasse numa espiral ascendente, criando-se sempre novos hospitais e clínicas privadas para concorrerem em desigualdade de condições com um serviço público desorçamentado e intencionalmente condenado à degenerescência.
O governo de Passos Coelho parecia destinado a dar a machadada final em tal Serviço, possibilitando lucros ainda mais superlativos aos interesses, que representava. No limite replicar-se-ia algo parecido com o verificado nos EUA, e denunciado num célebre filme de Michael Moore em que os pacientes só são admitidos num hospital mediante um seguro de saúde e dele expulsos quando já nele não dispõem de verbas para prosseguirem os tratamentos.
O novo governo de coligação das esquerdas trouxe fundamentadas esperanças em como esse rumo destrutivo conheceria justificada inversão. E por em tal crerem, António Arnaut e João Semedo até se deram ao trabalho de aprofundarem as medidas a implementar para que tal se verificasse. Em vão, já se vê, já que esse trabalho valiosíssimo conheceu palavras encomiásticas do primeiro-ministro e do ministro da tutela sem que os elogios disso passassem. Pelo contrário os sinais dados por Adalberto Campos Fernandes foram esclarecedores, quando há seis meses nomeou Maria de Belém como responsável da Comissão incumbida de rever a Lei de Bases da Saúde. Ora, além de ter sido a candidata que facilitou o passeio do representante da direita (e recordemo-lo, histórico opositor ao Serviço Nacional de Saúde) para a Presidência da República, quem é verdadeiramente Maria de Belém senão uma das principais figuras do Partido Socialista ligada ao influente lobby da Saúde privada? Quem ignora o seu atual vínculo ao grupo Luz Saúde, depois de ter exercido funções de relevo noutros seus concorrentes? Alguém de bom senso acredita que a antiga ministra da tutela, que tem no curriculum essa degradação do SNS enquanto governou, irá agir a contrassenso do que sempre fez na vida?
Mas não esqueçamos que o envolvimento de gradas figuras do Partido Socialista - frise-se que é o meu partido, aquele para que pago quotas! - aos interesses privados da Saúde não se queda por aí: Óscar Gaspar, que foi secretário de Estado do governo de José Sócrates e depois um dos lugares-tenentes de António José Seguro, preside hoje à Associação Portuguesa de Hospitalização Privada (APHP), que concerta os interesses de todos os grupos empresariais do setor, e é vice-presidente da CIP.
Isto significa que António Arnaut faleceu numa altura em que o seu partido - o nosso partido! - age absolutamente à revelia do que sempre defendeu e por que foi sempre tão admirado.
Ontem não faltaram glorificações ao seu legado, mesmo por quem está disposto a completar-lhe a destruição. Ora homenageá-lo não passa por decretar dias de luto nacional ou exibir choros de hipócritas carpideiras. Ser consequente com tal herança passa por fazer cumprir o projeto de vida, que sempre o inspirou. Daí que, voltando ao princípio deste texto, anseio pela possibilidade de regresso ao Serviço Nacional de Saúde enquanto utente e nele cumprir a ambição imposta ao meu atual médico de família. Vivenciando no entretanto um país em que a Saúde seja efetivamente um direito e não uma rentável fonte de negócio de quem dela pretende colher obscenas rendas.
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