Vi «Sea of Love» há mais de um quarto de século e nunca mais o esqueci, apesar de apenas lhe reconhecer as qualidades de um policial engenhoso e bem interpretado. É que existe uma cena na qual me reconheço perfeitamente no que foi sucedendo ao longo da vida: aquela em que Al Pacino se desculpa perante Ellen Barkin pelo equívoco com ela cometido (julga-la a autora dos crimes que investiga!), porque “as circunstâncias são as circunstâncias”.
Ao acordar para esta nova realidade em que Donald Trump ocupará a Casa Branca a partir de janeiro, posso sempre ter presente a antipatia por tal resultado em cuja probabilidade nunca quis crer. Mas ela é como é, e não como desejáríamos que fosse. Por isso resta-nos entender as razões para o sucedido e antever o quanto possa vir a suceder.
A interpretação dos fenómenos populistas está feita, e Anne Applebaum sintetizou-o magnificamente num dos programas do Fareed Zakaria: chegámos a um tempo em que tudo tem de ser tão instantâneo como as partilhas ou os likes nas redes sociais. Entre alguém com um perfil biográfico consistente, que propõe soluções políticas a médio e longo prazo, e um bufão capaz de mentir com todos os dentes da boca (os verdadeiros e os postiços!), mas convincente quanto baste para persuadir quem o ouve de ter soluções milagrosas para as suas angústias, os eleitorados portam-se irracionalmente.
A questão é se as expetativas geradas aguentam-se o tempo bastante para não gerarem focos de descontentamento crescente. Por norma quem as cria costuma ser prendado com o volte-face do seu logro, por muito hábil que Trump sempre se tenha revelado a atirar as culpas para outrem que não ele. Por exemplo os desempregados a quem prometeu rápida solução com a maciça expulsão de emigrantes, que sentirão quando virem as semanas passarem e continuarem a sobreviver da caridade pública? E os que perderam empregos na indústria e só encontraram alternativas mais mal pagas, como reagirão à impossibilidade de fazer regressar as fábricas entretanto mudadas para a Ásia?
Será terrível olhar para a composição do Supremo Tribunal e sabê-lo dominado por quem facilitará a proibição do aborto ou dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo e o dobre de finados pelo Obamacare, mas essas serão questões importantes, mas secundárias, porque as lutas por tais mudanças civilizacionais foram duras, mas só poderão ser reativadas com força ainda mais inabalável quanto à sua justeza.
O problema maior de Trump será o de depressa constatar que a gestão de um país não é a mesma coisa que rentabilizar um casino. E, mesmo neste último caso, bem sabemos como falhou estrepitosamente em Atlantic City. Sem uma ideologia consistente a guiá-lo, será presa fácil das piores propostas dos que andarão a cirandá-lo, cientes da sua volúvel personalidade. Adivinha-se, pois, uma agudização significativa da luta de classes, que dará razão a Zizek, quando via neste cenário concreto a ponte mais curta para operar a mudança que a América necessita. Não a dos que julgam possível devolver-lhe a relevância imperialista dos que mistificam a sua História e a olham por uma vertente muito estreita (a das vitórias e dos heróis ao estilo de Hollywood), sem compreenderem como o mundo se tornou multipolar. Mas a dos que começam a olhar para as injustiças e desigualdades promovidas pelo mundo financeiro e lhe exigem férrea contenção.
Cá por mim não tardará que, de Pequim e de Moscovo, Trump comece a sentir como as unhas se lhe encurtaram irremediavelmente para tocar uma viola cujas cordas está condenado a fazer soar desafinadamente.
A próxima estação da História americana ocorrerá na segunda metade do próximo ano, quando um terço da Câmara dos Representantes será renovada. E será muito curioso constatar se bastarão alguns meses para que o eleitorado norte-americano compreenda o logro em que caiu e se os Democratas corrigem o erro de ter apostado em Hillary e tudo terem feito para impedir Sanders de alcançar um sucesso, que provavelmente nos faria estar agora a olhar para o futuro com mais esperança do que a sentida ilusoriamente quando Obama nos fez crer que he could can. A tarefa imediata dos democratas norte-americanos reside na alteração da correlação de forças no Congresso e no Senado. Só assim poderão limitar os danos da Caixa de Pandora agora aberta.
Edward Hopper
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