1. A entrevista dada por Margarida Marques, secretária de Estado dos Assuntos Europeus, a uma das edições do «Público» desta semana, revela uma notável lucidez relativamente ao mundo reconfigurado com a vitória de Trump nas presidenciais americanas. Para ela será fundamental que a União Europeia mude rapidamente e passe a dar atenção aos excluídos da globalização. O que significa necessariamente um reforço do tão abalado Estado Social, que as políticas neoliberais quiseram reduzir aos mínimos suscitados pela vocação das jonets para brincarem à caridadezinha.
Nestes últimos anos os donos disto tudo - e não estou a falar da família Espírito Santo! - procuraram criar nos mais desfavorecidos a ideia de serem culpados da sua triste condição e de quanto o recebido de instituições assistencialistas se deveria à bondade e boa vontade dos seus promotores. Desmontar esse mito alimentado pela hierarquia da Igreja Católica constitui um imperativo da necessária superação de um tempo velho por um tempo novo onde faça cada vez menos sentido a crença nalgum deus.
É tempo de as esquerdas irem, de facto, ao encontro dos absentistas e dos que se dizem desinteressados da política - os primeiros a acorrerem em favor de Trump na América ou de Marine Le Pen em França - para os motivar a comprometerem-se com a efetiva defesa dos seus direitos. Que nunca poderá passar por burlões de tal espécie...
2. As eleições sucessivas destas últimas semanas vieram comprovar que as empresas de sondagens não estão a conseguir elaborar estudos minimamente credíveis, tão diferentes se revelam os resultados em comparação com as previsões. Mas esse desajustamento entre as realidades sociais e a leitura delas feitas não está a acontecer apenas com as empresas de sondagens: a generalidade das forças políticas das direitas e das esquerdas tradicionais também as não tem feito. Só assim se explica a rapidez com que se revelou bem sucedida a candidatura de François Fillon nas primárias das direitas francesas, dando substância ao descontentamento latente da burguesia rural, que nunca aceitou as mudanças de valores inerentes ao Maio de 1968. Compreender como essa expressão conseguiu a dimensão suficiente para organizar grandes manifestações contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo ou contra o aborto e impor um candidato presidencial representativo de franja até agora julgada como pouco significativa, foi distração que derrotou um candidato aparentemente mais apresentável como era o presidente da câmara de Bordéus constituía.
No mundo atual onde as mudanças suscitadas pela globalização e pela economia digital comportam tantos medos nos que delas se sentem excluídos, resta às esquerdas olharem-no com profundidade suficiente para interpretarem as aspirações dos que legitimamente representa e encontrar-lhes resposta para substituírem as inquietações por respostas concretas e exequíveis capazes de lhes devolverem a esperança.
3. As eleições de Trump e de Fillon também revelam o fim de um tempo em que, injustificadamente, setores da esquerda mais tradicional (aqueles que só com alguma boa vontade assim se podem designar!) quiseram transformar Putin e Bashar al Assad em párias da política internacional.
A oportunidade de negociar com um e de reconhecer no outro o único capaz de garantir a reconstrução do seu país numa lógica de separação entre o Estado e a religião islâmica foi perdida por quem melhor a deveria considerar como o mais efetivo seguro de vida contra a expansão do terrorismo para a Europa. Porque a única forma de o conseguir só será através da derrota total do Daesh na Síria e no Iraque e na efetiva marginalização de quem o andou a financiar (o Qatar e a Arábia Saudita).
Quer Trump, quer Fillon entenderam-no como o tinham intuído muitos dos que viam nos supostos rebeldes moderados meras correias de transmissão dos interesses dos países financiadores numa zona geográfico onde se jogam fortes interesses económicos e estratégicos sob a falsa capa da falaciosa luta entre xiitas e sunitas.
Marcel Duchamp
Sem comentários:
Enviar um comentário