No «Público» Vitor Belanciano considera que vive-se hoje o cinismo como pensamento dominante: “Está em todo o lado. Na boca de políticos, comentaristas, nas estruturas de poder, na opinião pública em geral, seja nas ruas ou nas redes sociais.”
Não é essa a minha perspetiva embora admita a evolução que o termo conheceu desde que foi teorizado como corrente filosófica na Grécia Antiga, quando Antístenes, discípulo de Sócrates, defendeu a virtude de se viver de acordo com a Natureza. Nesse sentido talvez quem esteja, ou esteve em Madrid, mobilizado pela Cimeira do Clima, corresponda a essa minoritária corrente de cínicos, tal qual o entendia o fundador de tal teoria.
Convenhamos que Diógenes de Sinope alterou o propósito original, embora reclamando-se igualmente desse cinismo original. Mas a sua autarkeia em nada corresponde ao argumentário do jornalista do «Público». Porque correspondia a uma indiferença perante os valores da sociedade em que estava inserido, quando hoje prevalece a preocupação com a imagem que se dá de si aos outros.
Vivendo num barril e tendo por únicos haveres um alforje, um bastão e uma tijela ele instava os contemporâneos a seguirem o exemplo do cão, que vive o presente sem ansiedade e não tem problemas quanto ao sítio onde pernoitar. Ora, ao contrário desse cínico-mor, quem nos rodeia sente deveras preocupações com o futuro, que adivinha muito diferente (e pior) em relação ao seu periclitante bem-estar atual. Um inquérito acabado de publicar revela que, por exemplo, uma esmagadora maioria dos franceses está angustiada perante o pressentimento de um devir muito pior do que o atual. E, porque o ensino, a imprensa e a subcultura consumista levaram-nos a crer que não existem diferenças entre as soluções de esquerda ou de direita, põem-se ansiosamente a esperar por um chefe que os tire de tal madorra.
Esquecida durante séculos, a perspetiva cínica seria recuperada no século XIX numa leitura de descrença quanto à sinceridade ou bondade das motivações e ações humanas, denunciando a frivolidade dos que nelas se entediavam. Conclui-se que não é, igualmente, esta a caracterização adequada para quem vive os tempo atuais. Porque melhor me serve a imagem da avestruz com a cabeça enfiada na areia, mas a ouvir mais ruidosa a ameaça, que poderá estraçalhá-la.
O sistema económico ainda vigente conseguiu impor a abulia como estado de alma dominante naqueles que humilha e explora. Distraiu-os com montras reluzentes e prateleiras cheias nos supermercados ou com voos baratos para lonjuras, que não se revelam mais interessantes relativamente às que estão mesmo à mão, Fez crer que não existem diferenças entre direitas e esquerdas, sendo as ideologias uma espécie de chão que já deu uvas. Que a culpa das inexplicáveis angústias reside na presença dos que provém doutras geografias ou têm outras religiões. E se isso não bastar há sempre antidepressivos ou cocaína em quantidade suficiente para buscar «realidades» alternativas. Que até poderão estar no próprio computador com os avatares das suas second lives. Ou há sempre um qualquer tabloide à mão de semear para comprovar que vivemos numa sociedade de feios, porcos e maus, sem ponta por onde se lhe pegue, aceitando-se que a vida são dois dias e o melhor é dela colher para si o que dos outros se possa explorar. E não faltam igualmente as igrejas e seitas de todos os matizes para nos convencerem ser a passagem pela vida um vale de lágrimas e se encontrará no Além todos os benefícios de se pagar atempadamente os dízimos.
Verdadeiramente não é este o tempo dos cínicos, mas é-o decerto o dos zombies meio atordoados que vagueiam por todo o lado sem darem tino ao que possam verdadeiramente almejar. E, ao contrário dos que enxameiam os filmes de George Romero são mortos ressuscitáveis e é esse o papel que cabe às nossas esquerdas. Conjugando as forças em vez de se voltarem a digladiar - como infelizmente parece em vias de suceder entre nós! - combatendo a imprensa, que escamoteia a realidade e apenas se interessa em preservar esse desnorte coletivo e dando crédito ao que dizem os cientistas - não só os do clima, mas também os das dinâmicas sociais - encontrem o ponto de equilíbrio entre a produção de mercadorias e serviços respeitadores dos frágeis equilíbrios da Natureza, que nos alimenta ou nos dá o ar que respiramos, e a sua justa distribuição por todos quantos habitam o planeta, diluindo-se as diferenças entre Norte e Sul ou entre ricos e pobres. Com um subsequente desafio no horizonte mais alargado: a incompatibilidade dos recursos disponíveis com a já excessiva população que os utiliza...
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