Artigo perfeito o que Jorge Cordeiro, dirigente do PCP, assina no «Diário de Notícias» de hoje. Nele se escalpeliza o populismo, abordando-o na forma como ele hoje se caracteriza entre nós.
Um texto que merece leitura atenta e a devida atenção:
Brincar com o fogo
Quem não quer ser lobo não lhe veste a pele. O acumulado saber popular da expressão encontra prova na vivência que nos envolve. Deixemos-nos de rodeios. O que se assistiu em torno do financiamento dos Partidos é mais um afloramento de uma perturbante corrente com que se quer impregnar o País: o populismo, enquanto expressão mais vendável de uma dimensão de pensar e de agir antidemocrática que, não tendo coragem de se assumir com os objectivos que transporta, semeia os ingredientes para fazer germinar a desorientação e o desencanto, desvalorizar a acção política organizada ou difamar o próprio sistema partidário. Não se aflorarão neste texto raízes históricas do populismo e do originário pendor liberal de há quase século e meio. Enfrentemos-lo como hoje se assume.
Sejamos claros. A incomodidade que tal provoque vale bem pelo que carrega de prevenção. Tanto mais que, ao invés do que se diz e se vê, o País não está a salvo do populismo. Não há inocentes neste regar de pasto populista. Não são desculpáveis exercícios de dissimulação: os imprudentes que o reproduzem sem pensar; os que o animam e estimulam sabendo ao que andam; os que buscam nele o apoio aos seus projectos porque, pela razão dos seus propósitos, acolhimento não encontrariam - todos, têm o seu quinhão neste perigoso lodaçal à beira do qual se passeiam. Importa pouco como o fazem: se no exercício da actividade partidária; se pela produção de escritos ou crónicas; se a partir de estruturas que, vendendo "transparência", são tão opacas quanto o que escondem sobre os reais objectivos que justificam a sua existência. E sobretudo não vale a pena o esforço de disfarce. Não é por se vestir um pijama às riscas que se passa por zebra.
Não se perca de vista o que o populismo transporta enquanto corrente política, os elementos de que se nutre ou os pressupostos que o norteiam. No populismo mora o que há de mais reprovável para quem se mova por valores e princípios. O seu sucesso é indissociável da exploração de sentimentos primários, do avivamento do preconceito de diversa natureza, do apelo ao irracional e à rejeição da reflexão própria. O populismo amalgama o espaço de cada um no rolo compressor da onda geral da opinião formatada, desincentiva o escrutínio dos factos, soterra na crista do que difunde o que a inteligência, se mobilizada, refutaria e recusaria. Lê-se Eça e o que denunciava sobre o que nos «arrasta para aquela fatalidade que quer que os pequenos espíritos vão irresistivelmente para tudo o que luz e para o que soa (...)» e aí encontramos os ingredientes em que se cozinha o populismo.
Há quem para se desculpar, confundindo efeito com causa, justifique este pendor compulsivo porque, estando o populismo instalado, a apetência para ir ao seu encontro é inevitável. Esclareça-se o que é óbvio: esse caldo de cultura não é congénito nem inato. Rodeia-nos e contamina a democracia porque é metodicamente inculcado pelos que nele vêem as águas em que se querem banhar. Tenha-se a coragem de o enfrentar mesmo que isso seja impopular, exija coragem política e faça perder uns votos e a margem para a sua progressão reduzir-se-á.
O populismo não é uma corrente de pensamento neutra nem pouco estruturada. No primarismo dos seus argumentos subjaz uma indisfarçável componente ideológica, em geral negada mas alimentando-se da contestação que faz à própria ideologia.
Por definição é a antítese da dimensão popular que na política deve ser medida pela participação consciente. Em regra vive do indivíduo, do caudilho, do salvador em contraponto à acção colectiva. Avança tanto mais quanto mais reduzida a consciência social e encontra no isolamento factor de progressão. Projecto político por essência, por mais dissimulado que surja, anatemiza a política mesmo quando utilizado para criar uma formação política. Difundindo a desconfiança sobre as instituições é a democracia que quer atingir. Deposita nos partidos políticos a raíz de todos os males para ilibar o papel do grande capital pelas desigualdades e injustiças sociais, explorando-as para se difundir e iludindo as suas causas com recurso a "bodes expiatórios". E ataca, particularmente, quando os seus habituais instrumentos de dominação política perdem eficácia e se afiguram previsivelmente incapazes de cumprir a função de suporte aos seus interesses.
A história, a nossa e a de tantos outros, está recheada de experiência feita sobre o que está por detrás desta corrente ideológica. Sempre com um preço mais elevado e amplo do que alguns julgam. Para lá dos que sabem ao que vão, aos que no conforto das suas atitudes, por défice de maturidade política ou mera intenção de atingir alguns em particular, se recomenda um retorno a Brecht ou Maiakovski para não esquecermos aqueles que desvalorizando o facto dos primeiros a ser levados serem negros, operários ou comunistas, tarde perceberem que outros se lhes seguiram, católicos, ou não, e compreenderem ter chegado a sua vez.
Jorge Cordeiro, DN, 19/1/2018
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