Logo na introdução do seu mais recente ensaio publicado entre nós - A Pandemia que abalou o mundo - Slavoj Žižek diz-nos, preto no branco, que nada de substancial mudará nas nossas sociedades, quando esta crise sanitária, social e económica passar. Aquilo que alguns chegaram a crismar como «novo normal» continuará a significar a tradução da luta de classes, tal qual ela se prefigura nesta fase crepuscular do capitalismo mundial. Poderão sobrar algumas vozes a pôr em causa a globalização, mas os mercados continuarão a impor a sua lógica, alheio aos nacionalismos, porque é certo e sabido que o (grande) capital não tem pátria.
Aquilo que parece a rendição resignada a um estado de coisas, que parece imutável, não o é de facto. Muitas coisas mudam no dia-a-dia de forma impercetível e todas elas tendem a conjugar-se para o próximo momento transformador, aquele tipo de revolução raramente anunciado por grandes acontecimentos, mas depois traduzidos em alterações de facto. Por isso a edição brasileira do livro de Žižek tem um título mais elucidativo: A Pandemia - Covid 19 e a Reinvenção do Comunismo. Porque ciente de como o comunismo falhou em todas as tentativas de afirmação verificadas durante o século passado - e continua a nada ter a ver com tal ideologia o que hoje se passa na China, na Coreia do Norte ou em Cuba - ele está longe de considerar definitivamente morto o pensamento marxista. Pelo contrário, aposta na sua reinvenção por ser a única alternativa ideológica estruturada ao capitalismo cujo prazo de validade está a aproximar-se do fim.
Por isso mesmo, ao iniciar a leitura deste ensaio, recordei aquele professor da Escola Náutica, e também militar envolvido no que acabara de se passar em 25 de abril que, nos primeiros dias de maio de 74, dizia aos alunos a maravilha que iria ser o país depois de consolidada essa revolução. Se até novembro de 75 pareceu que, no meio do caos entre forças tão diversas, algo de novo poderia acontecer, viu-se que tal não se verificou: acabou o fascismo e, já de si, essa mudança, muito significou para quase todos nós, mas os Carluccis mobilizaram-se seriamente para que o novo normal do Portugal do último quartel do século XX não se diferenciasse do que ia sendo a Comunidade Económica Europeia enquanto modelo económico alternativo ao soviético através da tão consagrada fórmula social-democrata. O pior foi que, com a queda do muro de Berlim e a implosão do regime protocomunista (que nunca o chegou a ser!) essa estratégia ocidental também se esboroou para dar lugar ao neoliberalismo da escola de Chicago. A financeirozação que se seguiu foi, apenas, uma evolução perversa da ideologia segundo a qual se deve dar livre curso á mão invisível dos mercados por ser essa a estrada de tijolos amarelos, que conduz ao palácio mágico onde se acumulam as riquezas com que o povo se deleitará.
Dos defensores desta trapaça ideológica sobram estarolas hoje congregados na Iniciativa Liberal e no Chega, embora também com lugar certo dentro dos demais partidos da direita.
Repensar o marxismo é, segundo Žižek, algo de perigoso: a tal ponto que estudantes chineses interessados na matéria acabam por desaparecer durante semanas para, depois, surgirem em tribunal acusados de quererem subverter o regime de Pequim. Mas entre a financeirização das economias, que prosseguirá depois da pandemia e acelerará ainda mais a separação entre os cada vez mais ricos e a enorme maioria que sobreviverá dentro das contingências das remunerações miseráveis e da precariedade dos postos de trabalho, e aquela faísca que Mao dizia capaz de incendiar toda a pradaria para a deixar preparada para algo de novo, vai um prazo, que só depende da agudização de uma crise social potenciada pelos efeitos da pandemia.
É por isso que a União Europeia se apressou a aprovar um pacote de apoios económicos, que pretenderão restabelecer o antigo normal. Mas muitos dos que o congeminaram sabem bem quanto eles apenas adiarão uma evolução, que tenderá a sacudir uma vez mais a história dos povos feita da tal luta de classes tal qual Marx e Engels começavam por referir no seu Manifesto. E, a exemplo do que faz Žižek, convirá que pensemos nesse futuro - ademais igualmente condicionado pela possível catástrofe ecológica! - para que, no momento do possível caos, haja quem saiba indicar os caminhos por onde ele se reestruture.
Sem comentários:
Enviar um comentário