Não é que o nosso dia-a-dia venha a ser alterado a curto prazo pela notícia do choque entre os dois enormes buracos negros, que geraram as ondas gravitacionais chegadas à Terra no ano passado, depois de percorrerem zilhões de quilómetros desde as profundas do universo, e agora capazes de entusiasmarem a comunidade científica internacional por significarem mais um conjunto de dados imprescindíveis para se entender como funciona o cosmos no seu todo.
Se os cientistas querem explicar o espaço infinito onde somos um ínfimo ponto, os que se interessam por política pretenderão entender os efeitos de outras ondas de choque provenientes das mais diversas direções e passíveis de poderem ajudá-los a transformar a sociedade humana de acordo com a sua ideologia e valores. Sendo eu um desses aprendizes de feiticeiro, tudo analiso no sentido de detetar os sinais tendentes a aproximar-nos da sociedade socialista em que já não conseguirei viver, mas acessível às minhas netas e a quem elas gerarem como continuadoras do meu ADN.
Tomemos, quase de forma aleatória, as notícias que nos chegam do Brasil: o pastor evangélico, que batizara Bolsonaro nas águas do rio Jordão, está acusado do roubo de recursos financeiros destinados ao combate à pandemia, numa exemplar demonstração de como ganha ricochete o discurso anticorrupção dos populistas. É que, ao contrário do propalado por outros evangélicos, mormente o que lidera a IURD, não se trata de um caso de ovelha negra num rebanho de imaculada brancura: quase é regra, que bem prega frei Tomás, quando faz da luta contra a corrupção o cerne das campanhas políticas. Como se vê neste exemplo a carta ruim acaba por sair à casa.
Igualmente no Brasil, e noutro culto evangélico, uma mediática pastora, que conseguiu ser eleita deputada e é amiga próxima da ministra Damares e da primeira-dama Michelle, matou o marido com a ajuda dos sete filhos e permitiu que se desvendassem os seus inconfessáveis segredos: antes de casar com esse Anderson, cujo final abrupto precipitou, ele era seu genro, pois vivia com uma das filhas. Mas a situação familiar até nem terá mudado no essencial, porque o incesto era regra na família e todos acabavam por dormir com todos. Quando se entediava dos fervores caseiros Flordélis - assim se chama a protagonista da história! - ia a casas de swing e enfiava as filhas nas camas de outros pastores da mesma igreja. Para quem se multiplicava em discursos moralistas de acordo com a mais reacionária defesa dos valores familiares, o escândalo equivale a um choque tremendo, sobretudo sabendo-se que 31% dos brasileiros andavam a considerar-se enquadrados nos valores de tão singular criatura.
Podemos escolher outro destino. Por exemplo o Reino Unido, onde Boris Johnson vai dando conta daquilo que dele se pressentia: ser demasiada parra para tão pouca uva. Em poucos meses os 26 pontos percentuais, que ganhou de avanço aos trabalhistas nas mais recentes legislativas esvaíram-se e o desespero torna-se-lhe óbvio, quando as sondagens o dão como potencial perdedor de eleições acaso elas hoje ocorressem. Esta semana, sem quaisquer provas que suportassem a acusação, não encontrou melhor argumento para responder aos do líder da oposição do que dizê-lo aliado do IRA.
São, porém, mais notórias as ondas suscitadas pelas notícias cá do burgo. A começar pelo santuário de Fátima, que prevê o despedimento de 50 dos seus 308 trabalhadores, porque os cofres andam a esvaziar-se há vários anos e a pandemia só acelerou a tendência anterior. Os milagres da senhora, que aparecera aos atarantados pastorinhos, devem agora focalizar-se na salvação do próprio embuste.
Há também o movimento de uma centena de mentes ultramontanas - porque será que não estranhamos o nome de Sérgio Sousa Pinto ao lado do de Cavaco Silva, Passos Coelho ou Manuela Ferreira Leite? - a porem em causa a presença obrigatória dos petizes da primária e do secundário nas aulas de Cidadania e Desenvolvimento, secundando o boicote de um empresário de Famalicão, representado em tribunal por João Pacheco Amorim, um advogado que integrou as listas do Chega por Coimbra às últimas legislativas. Para esta gente a educação sexual constitui um tabu, representante dos moralistas tipo Flordélis, que enchem a boca de virtudes públicas e albergam os mais escandalosos vícios privados. Ademais, essa matéria é apenas ínfima parte da que procura formar cidadãos democráticos, participativos e humanistas, mediante o conhecimento dos direitos humanos e dos animais, a igualdade de género, a educação rodoviária e ambiental e a prevenção contra radicalismos violentos.
Que as direitas extremas procurem ganhar uma batalha numa guerra civilizacional em que acumula muitas outras entretanto perdidas diz bem do seu projeto totalitário, o mesmo perfilhado pelos meus conterrâneos, hoje dispostos a uma manifestação contra a festa do Avante num movimento que merece do historiador Manuel Loff um comentário definitivo nas páginas do «Público»: “se os comerciantes algarvios se comportassem como alguns da Amora, o Algarve teria fechado. Que praticamente não haja novos casos no Algarve, no meio de toda a gente que por lá andou, é notícia que, pelos vistos, não chegou à Amora. Nada disto é sério. Que se queira fazer do medo uma virtude cívica não é simplesmente um absurdo moral; é um projeto totalitário, sustentado na irracionalidade.”
É certo que para a semana, passada a Festa, só dela se lembrarão os que tiverem tido o privilégio de a usufruir. Mas fica a execração dos comunistas numa campanha da SIC, que se revestiu das mais inaceitáveis práticas jornalísticas. O ódio às esquerdas é tanto por aquelas bandas, que vale tudo para impor a António Costa a sabotagem do seu esforço em tê-las convergentes no projeto de recuperarem a economia do país e desenvolvê-la no sentido de mais justa distribuição dos rendimentos. Assim possam comunistas e bloquistas seguir o conselho do sábio Lionel Jospin, saído do silêncio, que durava desde a sua derrota nas presidenciais francesas de 2002, para dizer: “os insubmissos deverão escolher entre a exaltação e a oposição radical ou a lucidez imposta pela necessidade de uma verdadeira responsabilidade para com uma transformação profunda.”
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