Numa das suas últimas entrevistas, Luís Sepúlveda contava como viveu o nosso 25 de abril de 1974: preso num campo de concentração no sul do Chile era costume os militares sujeitarem os presos a quotidianos arraiais de pancadaria apenas pelo prazer de os manter acossados pelo medo e pelas dores dos sofrimentos físicos infligidos. Naquele dia nada aconteceu, nenhum preso foi sujeito a público espancamento para intimidação dos restantes. Motivo porque os mais afoitos questionaram os carcereiros quanto a esse inesperado refrear da repressão.
- É porque em Portugal vocês ganharam!
Assim soube o escritor chileno, e todos os companheiros, como aqui se finara a mais prolongada ditadura europeia, ganhando o alento de não existir mal que sempre durasse. Sepúlveda lembrou-nos que no distante país sul-americano, e também em muitos outros, o modelo português, para manter o povo amordaçado numa realidade diminutiva, foi estudado e replicado por outros aprendizes de ditador predispostos a declararem os respetivos povos como inimigos a oprimir.
No entanto, apesar de moribunda por quase quatro anos mais, a versão portuguesa do fascismo foi a enterrar com o seu criador, morto há precisamente cinquenta amos. Nesse dia, sentido com profundo alívio pela enorme maioria dos que nunca se haviam iludido com o sucessor, oantigo comissário da Mocidade Portuguesa, e por quantos constatavam nada ter mudado desde a famosa queda da cadeira, pressentia-se imprevisível e iminente futuros, particularmente animador para quem dava os primeiros passos na rebeldia contra tão insuportável estado das coisas.
Quando a sinistra figura morreu eu tinha catorze anos e uma vontade enorme de mudar o mundo. Ainda me era mais fácil odiar o homem transformado em símbolo do que compreender todos os motivos, que se acumulavam, para ele jazer tão definitivamente enterrado na tumba quanto os dráculas, que na época me comprazia a ver nas versões da Hammer, depois de espetados os peitos com eficiente estaca de madeira. Aquele que era culpado por terem vindo buscar o Mariano a casa de madrugada para dele não se voltar a saber. Aquele que mandara o meu primo João Carlos para a guerra em África, dela voltando meio estarola. Aquele por cuja responsabilidade aquela aluna de Letras perdera o filho de que estava grávida ao atirar-se do primeiro andar do edifício para escapar à investida dos gorilas. Aquele que mandara os pides irem buscar o Vítor ao Técnico para o prenderem e depois o expedirem para a guerra, de que só se livrou ao escapar-se-lhes miraculosamente na estação de metro da Alameda pondo-se em fuga tão acelerada, que só parou na Suécia. Aquele que...
Eram tantos os exemplos de crimes cometidos por tão ruim defunto, que passaria aqui o resto da manhã a recordá-los embora esses meus catorze anos ainda parecessem escassos para tantas memórias inconformadas. ´
Cinquenta anos depois só se justifica recordá-lo como forma de exorcizar um mal que por demasiado tempo nos assombrou.
Sem comentários:
Enviar um comentário