No final da terceira temporada de «House of Cards» a série já me parecia tão esgotada, que perspetivei a hipótese de nem sequer espreitar os episódios deste ano. Acabei por me decidir a vê-los quando gente a quem atribuo alguma confiança revelaram entusiasmo com as novas vicissitudes por que passava o casal Underwood, ele seriamente atingido num atentado e ela a ambicionar o cargo de vice-presidente.
Concluído o 13º episódio encontrei-me no mesmo estado de alma em que me vira no ano anterior: sem grandes apetências pela quinta temporada, a estrear-se no início do próximo ano. E a razão é fundamentalmente uma: embora possa condescender com a possibilidade de replicar uma realidade política mais frequente do que desejaria, recuso-me a aceitar que o exercício de cargos públicos e a militância política sejam apenas jogos de massacre onde tudo é permitido: chantagem, manipulação, tráficos de influência, etc.
Até poderia aceitar que uma boa parte dos personagens - fossem eles democratas ou republicanos! - correspondessem a esse estereotipo do político = corrupto. Mas, para aceitar a benignidade da série, exigiria modelos positivos com gente proba, dotada de um sentido ético e de serviço público, que lhes servissem de contraponto.
Não é difícil imaginar o sentimento da maioria dos espectadores da série, quando ela acaba: a política é o lugar pouco recomendável onde todas as faltas de escrúpulos se evidenciam.
Vem isto a propósito de ler um comentário sobre a suposta traição de Michael Gove a Boris Johnson, depois de já ter apunhalado David Cameron. “Parece um episódio da ‘House of Cards’”, concluiu alguém.
Como é fácil iludir jornalistas sempre apostados em acreditar nas versões onde estejam garantidas cenas impressionantes de «sangue às pázadas».
O que está aqui em preparação é uma jogada sábia de Boris Johnson, que deu a cara pelo Brexit para afastar Cameron do seu caminho para o nº 10 de Downing Street, mas aonde ainda não lhe convirá chegar devido às dificuldades governativas dos próximos meses, confirme-se ou não a decisão de forçar a definitiva separação com a União Europeia.
Por agora Michael Gove serve de lebre atirada para diante a fim de forçar o sprint de Theresa May decidida a não perder de vista a meta ambicionada por todos eles.
Embora haja gente credível, que atribui à atual ministra do Interior a capacidade para gerir com sucesso o imbróglio aberto pelo referendo da semana passada, Johnson espera que lhe suceda o mesmo que ao carro com piloto automático agora acidentado num dos seus primeiros testes: estampar-se no primeiro cruzamento.
Boris Johnson poderá vir então com vestimenta de salvador a propor o que realmente defende: a permanência na União Europeia, mesmo à custa da raiva dos mais ferrenhos militantes do UKIP.
É por isso que não vejo no episódio da candidatura de Gove à liderança do partido Conservador uma cena shakespeariana retirada de «Júlio César».
Resta a expectativa de ver os Trabalhistas deitarem a perder essa estratégia com uma nova vitória de Corbyn, apoiado nos sindicatos e nos universitários e capaz de lhe possibilitar um grupo parlamentar mais consonante com o pensamento maioritário da base social de apoio do partido.
Não acredito, pois, nem na tradução em solo inglês dos comportamentos políticos explorados nas séries norte-americanas, nem ainda dou como irrevogável a saída do Reino Unido da União...
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