segunda-feira, 21 de março de 2022

O contraponto da outra realidade tem muita força

 

Prossegue o persistente ataque dos defensores do «pensamento único» sobre a guerra da Ucrânia contra quem se escusa à lógica maniqueísta, que grassa na generalidade da imprensa escrita e audiovisual muito embora continuem a surgir textos, que alertam para outras interpretações, que não as tidas como maioritárias. Mesmo num jornal como o «Público» onde os editoriais do diretor, Manuel Carvalho, espelham esse primarismo, alguns dos colunistas acabam por relativizar.

Veja-se a conclusão do que hoje escreve José Pedro Teixeira Fernandes, quanto às origens do atual conflito, que ganham raízes na forma como o Ocidente tratou a Rússia depois da implosão da antiga União Soviética: “ninguém no Ocidente ligou muito ao profundo ressentimento russo que germinava desde 1991. A Rússia pós-soviética era fraca e só tinha um caminho: a democracia capitalista liberal. Agora estamos a ver o choque frontal com os valores ocidentais e a Ucrânia a descer ao inferno da guerra.” Anote-se, porém, a necessária correção de, em devido tempo, Mário Soares ter alertado para os perigos de humilhar o Kremlin e ninguém o ter levado a sério.

Muito interessante, igualmente, o texto do economista Ricardo Cabral, que contesta a eficácia das sanções decididas pelos dirigentes da União Europeia tendo em conta o efeito de ricochete, que comportam: por exemplo que “para reduzir um euro de PIB da Rússia, a União Europeia tem de estar disposta a sacrificar vários euros de atividade económica “doméstica”, porque a economia da União Europeia (de cerca de 14,4 biliões de euros em 2021) tem mais a perder, visto que é muito mais rica e de muito maior dimensão que a economia da Rússia (de cerca de 1,5 biliões de euros em 2021, à cotação do rublo no final de 2021). Ou seja, “mesmo com um impacto das sanções proporcionalmente muito superior para a Rússia, as perdas globais na atividade económica para a União Europeia seriam significativamente superiores às que seriam registadas pela Rússia.” Com o perigo inerente a Putin conseguir controlar com maior eficácia o descontentamento dos russos perante a perda da qualidade de vida em comparação com os governos ocidentais, impossibilitados ideologicamente de lhe replicarem os métodos contra os seus próprios descontentes. Acresce a improbabilidade da queda do PIB da Rússia alcançar a dimensão pretendida pelos governos ocidentais, tendo em conta que a China, a Índia e a maior parte dos países do mundo não as aplicarão.

Mais adiante Ricardo Cabral evidencia a impossibilidade de substituir completamente as importações de gás natural, petróleo e carvão provenientes da Rússia depois da própria OPEP ter descartado a possibilidade de aumentar a produção alternativa para compensar a dali proveniente. A menos que os governos ocidentais encontrem paliativo para convencerem os seus cidadãos a gastarem bastante mais com combustíveis e eletricidade, poderão contar com sobressaltos sociais de monta a curto prazo.

Talvez assim se explique o contraponto da realidade à retórica inflamada dos seus líderes, que justificou a autorização do Departamento do Tesouro dos EUA a permitir que a Rússia utilizasse as reservas no Citibank para pagar os juros da sua dívida, evitando-lhe o incumprimento financeiro. Ou a oposição do Senado norte-americano ao embargo das importações a partir da Rússia. Situação, que também tende a verificar-se na Alemanha, que pretende bolhas de isenções às sanções em certos mercados-chave.

E não se podem esquecer os cereais e fertilizantes provenientes da Rússia e da Bielorrússia, cuja falta no mercado mundial implica um tremendo aumento do problema da fome em África e no Médio Oriente, razão para se levantarem vozes esclarecidas quanto à necessidade de também serem isentados dessas sanções. Que, sendo assim, em que mais poderão assentar? Na execração dos oligarcas? É um passo, que até Piketty desejaria ver implementado. Mas nada que afete a determinação de Putin para prosseguir a meticulosa destruição do território vizinho... 

Sem comentários:

Enviar um comentário