Se há colunista com quem mais facilmente me identifico nesta altura, quando se trata de pensar sobre a guerra na Ucrânia, ela é Carmo Afonso, que bem nos compensa dos dias em que a mesma última página do «Público» é ocupada por João Miguel Tavares. Se este teima num tipo de reflexão rasteira, muito primária quanto à definição dos seus inimigos e heróis, aquela convida à reflexão com o nível de complexidade já requerido por Boaventura Sousa Santos quanto à forma como olhamos para os acontecimentos no leste europeu.
Do texto de hoje vale a pena reter alguns trechos particularmente elucidativos. Por exemplo aquele em que critica os defensores de uma análise a preto-e-branco sem os matizes que ela merece: “As pessoas não toleram que se pense. Quem não adere na íntegra à versão Hollywood desta guerra é desconsiderado. O próprio jornalismo acusa o toque de caixa que se impõe. As imagens de crianças armadas, algumas nem sequer verdadeiras, e de um modo geral a romantização da guerra fazem-se notar. A narrativa é simples: o heroico povo ucraniano trava no seu território uma luta desigual por todos nós e devemos apoiá-lo, até militarmente, nesse conflito, mas não na paz que seria sempre injusta.”
Para esses defensores do gatilho fácil nas palavras ficam dois alertas pertinentes: um sobre a forma como olham para os direitos humanos, parecendo apenas devidos aos ucranianos, que não ao de outros muitos povos nesta altura tão sofredores quanto eles do mesmo tipo de agressões (palestinianos, iemenistas, rohyingas, etc.). Constata Carmo Afonso que “a forma como tratamos os refugiados ucranianos em comparação com os restantes e a comoção com as vítimas desta guerra comparativamente às de outras guerras revelam uma falha na compreensão do significado dos direitos humanos.” E a relatividade das votações na assembleia da ONU, quando os 24 países que se abstiveram de condenar a Rússia a representarem mais de metade da população mundial.
Na sua conclusão, Carmo Afonso prevê um mundo mais perigoso no pós esta guerra e o quanto é inútil convertê-la numa mistificada descrição do que ela vai comportando: “o mundo está perigoso, a lógica dos blocos irá reforçar-se. Eventualmente deixarão de ser dois e deixaremos de assistir à globalização ditada pela imposição de valores culturais. O nosso bloco não representará a maioria. É claro que a invasão da Ucrânia deve ser condenada e é certo que nada a justifica. Mas em que é que mais uma fábula poderá ser útil?”
Um artigo que devia ser lido por todos, porque e suficientemente esclarecedor.
ResponderEliminarO problema deste tipo de raciocínio à Carmo Afonso é que acaba a fazer uma condenação frouxa da ação russa. Pergunta-se, se fossem os EUA, seria ela capaz de demonstrar tal flexibilidade, ou não estaria ao invés a cair justamente na condenação sem reservas (a atitude correta, note-se)?
ResponderEliminarComo os moralistas de Esquerda parecem incapazes de chamar a uma invasão uma invasão (o PCP chama-lhe intervenção militar, sempre é melhor do operação militar especial), parece que só sobram os moralmente impuros do centro para defender os ucranianos.
E convenhamos, estes primeiros que não se façam de virgens ofendidas, porque os ucranianos têm bastantes mais problemas do que a desconsideração a que os petizes são aparentemente votados. A capacidade da Esquerda em se deixar ofender quando lhe é dirigida uma retórica com o tom que habitualmente utiliza para condenar o capitalismo é infinita...
Isto tem um nome, vem na Bíblia e chama-se hipocrisia...
Putin e os russos até podem ter tido razão relativamente ao avanço da NATO para Leste, mas a criação de conflitos congelados na Moldova, Geórgia e Ucrânia, cortesia do Kremlin, tornava a adesão de qualquer desses Países impossível. Não existia qualquer ameaça premente à Rússia vinda da Ucrânia, não existia um genocídio dos russófonos e sim uma guerra que já tinha feito 14.000 vítimas de ambos os lados, e a ideia de que se podem criar vírus para atacar grupos étnicos específicos é saída de um mau filme do James Bond. Logo, se alguma razão Putin tinha perdeu-a toda quando se lançou numa campanha de violência inaudita.
Também me custa o apelo do habitualmente idealista Jorge Rocha ao realismo político. É que me cheira a um apelo ao sacrifício da Ucrânia para não termos chatices com Putin. E se a seguir se tiver que sacrificar os Estados Bálticos, a Finlândia ou a Polónia, que também já pertenceram ao Império Russo, diz-se o quê, 'tough luck you have such a bad geography'?