sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Com Carlos do Carmo a cantiga foi mesmo arma!

 

É claro que Carlos do Carmo merece todos os elogios dele expressos ao longo deste dia, que inicia o ano, mas ao mesmo tempo nos remete para um futuro em que só contaremos com a sua voz nas muitas canções, que nos legou. Dele só ouvi dizer mal a broncos fascistas no pós-25 de abril, que não lhe suportavam as opções ideológicas, absolutamente contrárias às suas. Porque, a todos os outros quantos conheci e dele ajuizaram, só encómios se prodigalizaram.

Para falar dele prefiro, no entanto, revelar uma história pessoal. No início dos anos 80 eu estava a sair daquela fase antifado, que ganhara sustentabilidade nos versos de uma conhecida cantiga de José Mário Branco (“O faduncho choradinho/ de tabernas e salões/ semeia só desalento/ misticismo e ilusões/ canto mole em letra dura/ nunca fez revoluções”) quando um camarada da Comissão de Trabalhadores da Soponata, que ambos integrávamos - o Gaspar Costa - me desafiou a ver o cantor no espetáculo marcado para essa semana no então enorme auditório da Academia Almadense.

Lá comparecemos os dois casais perante um cantor, que já muito me agradara com o belíssimo tema com que fora à Eurovisão, mas ainda assim cultor de género musical a que era avesso.

Não poderei dizer que tivesse uma epifania, mas não esteve longe disso. Não tardei a ver que o Costa e a esposa acompanhavam o cantor em quase todas as canções, sendo secundados por quantos ali assistiam ao espetáculo. Olhando para trás, para as filas da frente ou para os dois lados parecia que as centenas de pessoas presentes sabiam de cor todos os poemas e tinham prazer em fazer do concerto uma inolvidável festa em que todos comungavam uma mesma empatia. Os únicos ali silenciados éramos nós, eu e a Elza, manifestamente rendidos a uma convicção: quando um deslumbramento coletivo daquela natureza se produzia à nossa volta, seguramente não éramos nós quem detínhamos alguma forma de razão. Eram todos os outros, que mostravam como a cantiga, mesmo quando sob a forma do fado, conseguia ser uma arma contra quem também nós a pretendíamos ver virada.

Escusado dizer que, desde então, ouvimos o fado com outra atitude. Se não com a paixão, que muitos a eles devotam, pelo menos com o respeito de o saber muito para além do preconceito dos versos do Zé Mário. Que também ele se rendeu ao fado produzindo alguns trabalhos memoráveis de Camané e ... Carlos do Carmo!

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