sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Ter cão ou não tê-lo

 


Em setembro de 1978 o «Inago», navio petroleiro onde então era Oficial de Máquinas, saiu do porto líbio de Zawia em direção a Nova Iorque. Se no Mediterrâneo a viagem não teve história, ao passarmos Gibraltar as coisas mudaram de figura. A ondulação cresceu, os céus acinzentaram-se, a chuva e o vento abateram-se sobre o convés, com a linha de água muito próxima porque os tanques tinham sido cheios até quase ao topo.

Por essa altura navegava à nossa vista um outro navio - já não me recordo de que nacionalidade! - mas com o qual o Comandante entrou em contacto, porque carregara numa boia próxima da que nos abastecera e dirigia-se ao mesmo destino. Cumprimentos da praxe, votos de boa viagem, e cada um seguiu a sua rota. Que foi diferente, como adiante se verá.

Seguindo os conselhos dos manuais de navegação, e atendendo à época outonal em que nos víamos, Duarte Silva desenhou a régua e esquadro a linha pela qual avançaríamos. E que foi tormentosa: o mau tempo foi-se agravando, a meteorologia anunciou que nos confrontaríamos com a periferia de um furacão e assim foi de facto. Os dias seguintes foram muito duros com os turnos da Casa da Máquina  a cumprirem-se com grandes dificuldades, porque tinha o fogueiro e o ajudante totalmente enjoados, incapazes de se afastarem dos sítios mais próximos onde pudessem vomitar ou manterem-se minimamente despertos da tentação de atordoamento contínuo. Com as turbinas a operarem a rotação limitada, aproávamos às incessantes vagas, prolongando a viagem muito para além do previsível. Já saído dos períodos de trabalho lembro-me de ir à cozinha à popa e, pela vigia, impressionar-me com a rapidez com que ora me via a olhar o mar do cimo de uma imensa montanha, ora o navio ia para a cava entre as ondas e elas me pareciam prontas a engolir-nos . E quem dizia que se conseguia pregar olho? Mesmo amarrando-me à cama com os lençóis e os cobertores bem presos debaixo do colchão, não havia forma de ora ser empurrado para um lado, ora para outro da cama, depressa se desfazendo a prudente estratégia de conseguir alguma forma de nela me estabilizar.

Quase a chegar à foz do Hudson, com o temporal finalmente a aliviar, os pilotos do navio surpreenderam-se quando se cruzou connosco o navio com que haviam contactado logo à entrada no Atlântico. Já tinha chegado e descarregado, partindo agora para nova viagem. Como fora possível? Não tinham sofrido transtorno igual ao nosso? A pergunta teve resposta lapidar: pelo contrário até haviam tido uma travessia muito normal. Então que rota tinham seguido? Mais a norte uns quantos graus na carta por opção do seu comandante. E assim concluímos que tivéramos pouca sorte com a opção tomada a bordo do nosso navio.

Mas teria sido inépcia do nosso comandante? Numa altura em que a informação meteorológica não tinha a sofisticação da atual, seria injusto considera-lo. Pelo contrário ele seguira o que indicavam os especialistas nos manuais sobre a navegação no Atlântico, prevendo maiores possibilidades de temporais a norte. Sorte tivera o comandante do outro navio, que tomara decisão a contrario do preceituado e tivera maior sucesso. Mas, e se tivesse sido o contrário? Se tivéssemos nós tido uma viagem mais calma como no-lo prognosticariam as probabilidades e fosse o outro navio a levar com o tal furacão?

Vem isto a propósito dos que andam agora a querer zurzir no governo por ter sido demasiado brando nas medidas restritivas tomadas durante a época natalícia e que justificam os atuais 10 mil novos casos diários de contágios e mortes acima dos 150. Podemos imaginar o sururu que se levantaria se o confinamento agora imposto tivesse sido obrigatório nessa quadra? Quantos políticos da oposição bradariam contra a falta de sensibilidade do primeiro-ministro para com os portugueses culturalmente formatada para celebrar a data na companhia de tantos familiares e amigos quantos em volta de si gostam de congregar?

Correu mal? Pois correu! Mas alguém, para além dos urubus do costume, especialistas na previsão dos mais infaustos apocalipses, prediziam a dimensão do que agora se comprova? Houve algum político a propor que se tomassem as medidas que, agora, muitos se apressam a considerar que deveriam ter sido impostas? Eu que tenho passado por todos estes meses com as cautelas do mais precavido misantropo não deixo de conhecer muitos casos de amigos e conhecidos, que não se eximiram de terem ao almoço ou à ceia natalícia muitas pessoas para além do convencionado como aconselhável. E, ainda assim, com a informação mais do que bastante para conhecerem os riscos em causa. Fará o decidido pelos outros, por aqueles que agem de acordo com o princípio de só aos outros acontecerem os males, que afinal acabam por lhes virem bater à porta!

Daí que seja execrável uma crónica como a que o diretor do Expresso hoje assina no seu editorial: chegámos a uma fase equiparada à queda de um avião todos os dias? Pois é! Mas quem apostaria que iria ser mesmo assim? Porque, tivéssemos agora uma situação semelhante à de setembro ou outubro, os mesmos criticariam o governo por ter sido demasiado rígido, quando afinal se justificava a mais serena das branduras. No fundo algo parecido com o que sucedeu há uns anos, quando o governo socialista da altura comprou vacinas para a gripe em demasia e não faltaram, então, os que, acabada a época dos surtos invernais, vieram causticá-lo a propósito do gasto desnecessário com verbas passíveis de serem utilizadas com melhor proveito noutros investimentos.

A verdade é esta: na vontade de tudo maldizer, os que se opõem ao governo querem-no sempre prender por ter cão ou por o não ter. 

2 comentários:

  1. O Velho, o Rapaz e o Burro:
    O Velho, o Rapaz e o Burro conta a história de um menino que vai com o seu avô à cidade, para tentarem vender um burro. Pelo caminho cruzam-se com várias pessoas que ora dizem que deve ser o menino a viajar em cima do burro, ora acham que deve ser o avô ou mesmo que não devem sobrecarregar o animal com tanto peso. É impossível agradar a gregos e a troianos, sobretudo quando os Troianos são radicais de direita e os Gregos só veem de um olho.

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  2. Bom, com respeito à tal crónica do director do "espesso", nada de novo, pois normalmente as crónicas do dito sr. são a nojice que se sabe.
    Quanto aos que "andam agora a querer zurzir no governo", temos aqui dois bons exemplos:

    PSD defende alívio de restrições no Natal e reposição de medidas no Ano Novo
    4 de Dezembro de 2020

    O vice-Presidente do grupo parlamentar do PSD, [...] considera que o Governo "falhou na preparação do inverno e no aliviar das medidas do Natal"
    12 de Janeiro de 2021


    CDS pede ao Governo "sensibilidade, humanidade e bom senso" nas medidas para o Natal
    12 de Dezembro de 2020

    Presidente do CDS-PP responsabiliza Governo por necessidade de novo confinamento
    11 de Janeiro de 2021

    Haverá melhor exemplo de falta de vergonha na .... da cara?

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