domingo, 21 de outubro de 2018

Valeu a pena, pois!


A exemplo de muitos amigos, que se gabam de dispensar a leitura do «Expresso», gostaria de contar com alternativas menos direcionadas para as direitas e com substância menos diáfana do que as especulações aí frequentes. Mas, helas, enquanto elas não surgem, lá me vejo obrigado a pegar no semanário da família Balsemão, usando luvas nas mãos e máscara protetora do nariz e da boca para me poupar aos odores e a acrescidas contaminações do que por lá se vai lendo.
O interesse reside em saber o que dizem os veículos de manipulação dos inimigos como forma de melhor os conhecermos e deles nos sabermos defender. Vale a pena aqui lembrar a primeira vez que, em 1976, conheci um colega de profissão, que compartilhava comigo o grupo dos Engenheiros Maquinistas do petroleiro «Gerês» da Soponata. Para apanhar o catraeiro, que me levaria ao navio, fundeado em frente a Belém, tive de o esperar na respetiva estação fluvial, onde algumas pessoas entretinham-se na leitura de jornais. Sim! Era uma época em que quase toda a gente os lia na expetativa de compreender todos os meandros das lutas políticas intensas então em causa.
Uma dessas pessoas era um sujeito alto e encorpado, de cabelo louro, e que, sem complexos, lia «O Dia», jornal assumidamente de direita, que ostentava um notório saudosismo pelo Estado Novo.
Pode-se imaginar o que pensei. Normalmente mandava bocas foleiras a quem se atrevia a mostrar dessa forma o seu reacionarismo, sempre pronto para que se passassem das palavras aos atos. Mas olhando para o sujeito em causa, com quase um palmo a mais de altura do que eu, e um corpo de jogador de râguebi, eximi-me de proferir as provocações. A meu exemplo, também ele entrou na pequena embarcação, que nos levou a bordo, e não tardei a compreender que, se eu faria os turnos das 8/12 e 20/24 na Casa das Caldeiras, ele renderia a minha equipa no lado das turbinas nos que se seguiriam.
Nos dias seguintes conheci-o melhor e arrisco até dizer, que ficámos amigos. À exceção de alguns, que nem vale a pena serem recordados por quão escassos de qualidades se revelaram, aquela tripulação tinha nos oficiais um conjunto de pessoas brilhantes, que tornavam as refeições na messe um grande momento de discussão e debate. E esse oficial, que eu julgara fascista, era afinal próximo dos comunistas e dele colhi a lição acima expressa: aos inimigos ideológicos há que os conhecer tão bem quanto possível para melhor estratégia criarmos no sentido de os derrotar.
Como ainda mantemos vínculo pelo facebook, quem aqui lembro decerto se reconhecerá e aqui lhe deixo um abraço com o agradecimento de com ele ter colhido proveitosa lição.
Mas olhemos para o Primeiro Caderno do «Expresso» neste fim-de-semana e, depois de conhecido o Orçamento para 2019, vejamos como os seus comentadores reagiram.
É claro que Pedro Adão e Silva e Daniel de Oliveira, que são alibis de que a família Balsemão se serve para aparentar alguma (falsa) objetividade, só existem palavras positivas e desmistificadoras do pretenso eleitoralismo de que o documento seria portador. “Se eleitoralismo é satisfazer os eleitores, é bom que todos os orçamentos sejam eleitoralistas, sob pena de se frustrar, ainda mais, a confiança no regime”, defende o professor do ISCTE, que argumenta com o que contraria essa tentativa de desqualificação: “um orçamento com contenção nominal da despesa, saldo primário positivo e um défice sem paralelo, num contexto de diminuição da dívida, dificilmente pode ser classificado como eleitoralista de acordo com os padrões de leitura que nos são, literalmente, impostos.”
Daniel Oliveira vai mais longe e mostra como o termo «eleitoralismo» está pervertido no seu verdadeiro significado: “dantes dizia-se que a ‘geringonça’ governava para as clientelas (funcionários públicos e pensionistas), agora diz-se que faz pior: governa para os eleitores. Ou seja, para os cidadãos. Reduzir o preço dos transportes públicos urbanos, a fatura energética, as propinas e o custo com livros escolares é aumentar os salários indiretos da classe média. Aquela que não ganha o suficiente para que estes custos não pesem no seu bolso mas o suficiente para não estar isenta deles. E esta opção é mais progressiva do que baixar impostos ou aumentar deduções.” E dá uma interpretação lógica do que seria para as direitas ir pelo caminho «não eleitoralista»: “governar para os que têm muito poder e poucos votos.”
Estamos, pois, num período difícil para a oposição à maioria parlamentar, que vê escoarem-se os argumentos, que pudessem fazê-la definhar em votos. Conclui Pedro Adão e Silva: a direita não está a conseguir lidar com a aproximação do término da legislatura. Afinal são quatro orçamentos aprovados, sem necessidade de retificativos, nem violações da Constituição — e tudo com um défice estimado de 0,2%
Compreende-se, pois, que os comentadores dessa direita sejam obrigados a revelar a sua rendição argumentativa no meio de textos, que pretendem ser críticos para com o governo. Pedro Santos Guerreiro não consegue evitar o elogio a António Costa: “não é sorte, é habilidade e trabalho, porque Costa concentra toda a gestão política do seu Governo limitando erros, porque controla os fluxos e refluxos no PS, porque usa a graça que tem para desarmadilhar perguntas difíceis, porque sabe usar a força. Incluindo sobre o hiperpopular Marcelo, que nunca foi rottweiler contra o Governo nem nunca pareceu tão dócil como nas últimas semanas.” Por seu lado o Caim da família do primeiro-ministro tem de reconhecer que “o simples facto de a legislatura poder terminar com superavit, com a trajetória da dívida em queda firme e com o ministro das Finanças à frente do Eurogrupo destrói qualquer ideia de insucesso.” E Miguel Sousa Tavares recorda o terror financeiro dos quatro anos de desgovernação de Passos Coelho (“brutais aumentos de impostos, de milhares de falências de empresas, de meio milhão de postos de trabalho destruídos, de 400 mil portugueses, na sua grande maioria jovens, mandados emigrar, e de ruinosas privatizações como a TAP, a ANA, a EDP, os CTT. Sem falar, ao inverso, dos milhões injetados a acorrer ao sistema financeiro, que os banqueiros, o regulador e o Governo deixaram em roda livre e a que acorreram tarde e com desastrosas soluções, que hoje ainda pagamos e pagaremos”) para dar razão à justeza das medidas previstas para o próximo exercício orçamental: “Vai gastar mais 3,8% em despesas sociais — como o embaratecimento do passe social, o aumento do abono de família, das pensões mais baixas, etc. — que são medidas justas, que devem caracterizar um governo de esquerda e que são, afinal, aquilo para que a justiça fiscal existe.”
Digam lá que a leitura - mesmo que, amiúde, indigesta! - não valeu a pena?

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