quarta-feira, 26 de agosto de 2020

As duas ou mais caras de um bastonário


Surpreendeu-me a rapidez com que António Costa recebeu o bastonário da Ordem dos Médicos numa altura em que o seu tom baixava, transparecendo o incómodo por ter exorbitado os seus poderes ao anuir a uma auditoria ilegítima, sobretudo numa altura em que sabia estar em curso uma alteração legislativa sobre as competências desse tipo de instituições a quem o Estado vem delegando a aferição da qualidade e conhecimentos dos seus profissionais.
Quando António Costa dissera na entrevista quais eram essas competências, e as sublinhava com um ponto final, julguei que cessasse aí uma novela artificial alimentada pela SIC, pelo Expresso e pelos partidos mais à direita dos que nesse lado da realidade política se situam.
Interpretei o gesto como magnânima deferência para com quem tão mal se portara nos meses anteriores, sempre vendo motivos de crítica nas ações do governo, dando-lhe agora a oportunidade a um novo recomeço, mais assertivo e de acordo com a necessidade de unidade nacional nesta altura de efetiva crise política, económica, social e sanitária.
Aparentemente foi esse dissipar de divergências que resultou da conferência de imprensa dada no final do encontro de mais de três horas entre o bastonário e o primeiro-ministro e assim o transmitiu a generalidade da imprensa. Quando o bastonário vem agora escrever aos médicos inscritos na Ordem que uma coisa foi o que se conversou lá dentro e outra o que se disse cá fora, revela uma cobardia, afinal justificando as palavras apanhadas em off  a António Costa depois da entrevista ao «Expresso» e aproveitadas para criar um caso político, que se virou precisamente contra quem o quis utilizar.
Se Miguel Guimarães pensou o que depois escreveu, porque não o disse ali aos jornalistas, quando estava ao lado do primeiro-ministro? Porque deixou passar um dia e veio agora demonstrar fúteis os esforços empreendidos pelo governo para pacificar o relacionamento com a Ordem?
Se perspetivávamos a hipótese de deixarmos de ter o bastonário como bombo da festa das nossas reiteradas e justificadas críticas, ele veio-nos demonstrar o contrário. E que, como aqui já escrevi, o melhor é dar-lhe o tratamento aplicado à sua parceira dos enfermeiros: tendo sido ignorada pela tutela do setor quem é que ainda lhe liga?

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