segunda-feira, 4 de maio de 2020

A nova realidade


1. Despertamos para o primeiro dia útil depois do fim do estado de emergência e vemo-nos confrontados com o novo normal. Somos incentivados à paranoia de atentarmos em quantos andam à nossa roda e possam-nos transmitir o vírus. Acaso o apanhemos, eis-nos apontados como os pecadores bíblicos sujeitos às piores represálias desse deus que Saramago disse não ser de fiar. Porque tudo constituindo sua obra - é o que creem os prosélitos! - impõe-lhes o sofrimento da doença e a irreversível morte como “recompensa”.
Os que não se reconhecem na submissão à invisível e imaterial criatura condicionam-se adotando uma racionalidade, que minimize as tentações psicóticas e religiosas. Se Darwin nos ensinou a prodigiosa capacidade de todos os seres se mostrarem resilientes perante as circunstâncias mais adversas, assim seremos nós, que continuaremos a viver o melhor possível, com máscara quando necessário, lavando as mãos sempre que possível e reprimindo a vontade de apertar a mão aos amigos e conhecidos sempre que, no dia-a-dia, com eles nos cruzarmos.
Na idade provecta em que alguns de nós se situam, cada dia vivido é mais um, ganho à conta de uma existência que esse deus injusto se apressaria a tornar imortal porventura quisesse redimir-se de todas as pretéritas malfeitorias. Mesmo que concluíssemos, tal qual o dizia o grande poeta José Gomes Ferreira, que viver sempre também cansa. E para isso se aprovou a ainda insuficiente lei da morte assistida.
2. Estava escrito nas estrelas: evidenciada a intenção do Ministério da Saúde em recorrer aos hospitais privados para reduzir os prazos das consultas e cirurgias no SNS, o presidente da Associação Portuguesa da Hospitalização Privada, Óscar Gaspar, já veio dizer que os preços não podem ser aqueles que eram praticados antes da crise, porque, sem os fundamentar, diz serem outros os custos envolvidos. Não sobram dúvidas quanto à intenção desses grupos privados já salivarem por antecipação perante a oportunidade de se compensarem, com lautos juros, dos prejuízos sofridos nestes últimos dois meses e meio.
3. Pesaroso, o presidente da Federação Portuguesa de Futebol veio carpir-se com o que antevê como realidade pós-covid 19: “o futebol, durante muitos anos, parecia o centro da vida de muitas pessoas, mas já todos percebemos que não é. As pessoas conseguem viver sem futebol”. E acrescento eu que, nestas coisas, não tenho papas na língua: para quem sempre teve o futebol como um dos tais F’s, que distraiam as multidões ululantes das bem mais relevantes preocupações, e execrou aquela gente enfatuada horas a fio a perorar nos ecrãs sobre jogadas e táticas de vinte e dois tipos a correrem atrás de uma bola com três outros, de preto, a apitar-lhes as supostas faltas, estas semanas têm sido agradavelmente benignas. Até por dar menor ensejo ao Aldrabão de aumentar a quota de mercado junto dos tolos que nele acreditam, à conta de se fazer seu cúmplice clubista. De facto se algo há de que podemos prescindir, o futebol, na sua vertente mais alienante, é uma das prioritárias...

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