domingo, 3 de maio de 2020

O tosquiador tosquiado


Dirão que assim se demonstra a minha costela perversa, mas apressei-me a ir ver em diferido a entrevista de Rodrigo Guedes de Carvalho à ministra Marta Temido, quando a soube exemplar daquele género divertido de ver o tosquiador ir à tosquia e sair de lá tosquiado.
Convenhamos que essa malévola propensão tem muito de humano e, por isso mesmo, os Lumière, quando se lançaram na aventura do cinematógrafo, logo exploraram a ideia do sujeito, que estava a regar o jardim e se viu alvo da partida de um mal intencionado, acabando ele próprio regado. As gargalhadas entoadas pelos espectadores de há cento e vinte cinco anos na pequena sala do Boulevard des Capucins poderiam equiparar-se às que concluíram a apreciação da entrevista com a fera amansada pela quase irrepreensível conduta da ministra.
Questionarão aqui: «quase?» E eu digo que sim, porque, logo de início, quando quis partir para o ataque à interlocutora, o Rodrigo começou com uma frase, que me irrita supinamente: «os portugueses querem saber blá-blá-blá...»
E eu teria gostado que Marta Temido devolvesse a pergunta com outra: «são os portugueses que querem saber ou é o Rodrigo?» Porque irrita esta tendência para os nossos telelocutores (que não jornalistas!) encherem os peitos de facúndia, todos inchados nos seus egos e julgarem-se os eleitos para servirem de transmissores das questões que gostariam ver assumidas por toda essa abstrata coletividade nacional.
No caso em apreço a questão até nem tinha nada a ver com o que eu queria saber: se achava bem que a CGTP tivesse organizado o 1º de maio na Alameda e a igreja continuasse tolhida na possibilidade de promover os seus prosélitos eventos. Em definitivo achei bem que a manifestação de anteontem se cumprisse, porque o 1º de maio tem o simbolismo de representar todos os trabalhadores enquanto as cerimónias religiosas apenas dizem respeito aos que acreditam nos deuses nelas celebrados. Entre os muitos milhões de trabalhadores que, a nível mundial, se identificam com os valores do 1º maio e a minoria dos humanos, que se dizem católicos, a comparação nem sequer se põe.
Mas outro motivo justifica que uns possam organizar uma manifestação e os outros sejam dissuadidos de fazerem as suas: é que ninguém contesta a capacidade de disciplina e de organização que os comunistas - para o bem e para o mal! - conseguem demonstrar em tudo quanto deles depende. Agora esperar algo de semelhante das ovelhas do rebanho de Deus não passa pela cabeça dos mais sensatos. E, estando em causa, uma questão de saúde pública, não houve razão para apontar ao evento de sábado passado os reparos que, facilmente, se justificariam aos que, de vela na mão ou de lenço a acenar a uma boneca num andor, sempre tendem a acotovelar-se...

Sem comentários:

Enviar um comentário