segunda-feira, 25 de maio de 2020

Quando certos elogios soam como vitupérios!


1. O uso da metáfora enriquece certos textos jornalísticos, colorindo a abordagem de temas, de outra forma condenados a suscitar o bocejo entediado em quem os lê. Vem isto a propósito da tese de Vítor Matos no «Expresso Diário» de hoje, que associa António Costa à ardilosa raposa, Passos Coelho ao inflexível ouriço, com Marcelo dividido entre uma e outra tendência. Para embalar os partidos, hoje e amanhã consultados sobre o Plano de Emergência para a recuperação económica do país, o primeiro-ministro tenderá a evidenciar uma habilidade que as palavras do jornalista indiciam ter como pejorativa. E por isso o texto pode ser lido como um alerta aos convidados incentivando-os à devida atenção para não serem endrominados pelas palavras doces do anfitrião.
Adivinha-se que Vítor Matos admira a capacidade empática do primeiro-ministro em criar as pontes necessárias para ir levando por diante os intentos, mas, ao mesmo, tempo, sente-se-lhe a frustração por ver dilatadamente afastados do poder quem desejaria nele sentado.
Como diria um dos talentosos autores do saudoso programa radiofónico Pão com Manteiga, elogio em boca de alguns acaba por ser vitupério.
2. Essa ambivalente malícia teve neste fim-de-semana uma expressão divertida na falsa capa da Folha de São Paulo sobre ser Bolsonaro o maior presidente da história do Brasil. Quem a imaginou e editou garantiu-nos saborosa gargalhada, quando se dá conta de, em recente reunião com os colaboradores, ele ter dito que um elogio do jornal ou da Globo implicaria a sua perda do cargo. Conclusão divertida de quem criou a brincadeira: Só estamos testando um negócio aqui!
3. Imaginativa, e sem a hipocrisia dos elogios de Vítor Matos, foi a comparação de Jorge Almeida Fernandes no «Público» deste domingo entre a presente crise sanitária e o memorável combate de Kinshasa entre Muhammad Ali e George Foreman em 1974.
Recordemos os factos: perdendo o título mundial de pesados em 1966, por recusar o alistamento para a Guerra do Vietname, Muhammad Ali voltou aos ringues para reconquistar o que lhe era devido, embora a idade fosse outra e a antiga ligeireza de pés uma qualidade definitivamente perdida. Razão porque, tão só tocado o sino para o primeiro assalto, refugiou-se junto às cordas, protegendo-se tanto quanto possível, e encaixando os sucessivos golpes do adversário.
Os espectadores, que esperavam a antiga agressividade, desesperaram com o que parecia a aceitação de uma derrota anunciada num dos assaltos seguintes. Desconheciam que Ali ia cansando Foreman e enervando-o ao perguntar-lhe se não conseguia fazer melhor do que os esforçados socos, que lhe ia disparando. Até que, sentindo o momento oportuno, lhe desferiu o inesperado KO, que o deixou pregado ao tapete.
Inteligente na equiparação, Fernandes diz ser este o tempo de nos mantermos encostados às cordas  - ou seja usando o distanciamento social, as máscaras e outras estratégias de proteção face ao vírus. Porque o nosso oitavo assalto só sucederá quando houver vacina ou tratamento eficaz, que dele dê definitiva conta.

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