sábado, 2 de novembro de 2019

O que se aprende com as visitas às Ilhas Britânicas


Já devem ter passado uns oito anos desde a última visita às Ilhas Britânicas, na altura destino frequente pelo aparente motivo, que terá levado Clara Ferreira Alves a ali deslocar-se recentemente: estando a progenitura emigrada, as viagens planeiam-se em função das saudades ou da necessidade de lhe prestar algum apoio.
Dessa última vez fica a satisfação de ter cumprido um dos objetivos a que, como melómano, me autocomprometo: ver espetáculos nas grandes salas europeias. Naquele caso tive como prenda de aniversário assistir aos «Mestres Cantores de Nuremberga» de Wagner no Royal Albert Hall no âmbito da programação dos concertos Promenade desse ano.
Menor sorte teve a jornalista do «Expresso», disposta a aproveitar a exposição dos retratos de Gauguin na National Gallery, quando um acidente nas escadarias do metro lhe causou a fratura dos ossos de um dos pés.
O que se seguiu, e ela descreveu na crónica semanal no seu jornal, foi muito elucidativo quanto à comparação entre os Serviços Nacionais de Saúde da Inglaterra e de Portugal. Longas esperas, sucessivas indecisões e a recusa taxativa a operarem-na no hospital a que se dirigiu, apesar da legislação europeia a tal obrigar pelo menos enquanto o Brexit não se confirma.
Agora que anda a ver o problema resolvido no forçado regresso antecipado a casa, adivinha-se na autora do texto uma maior admiração pelo nosso SNS e pelos prodígios, que todos quanto nele trabalham, concretizam diariamente.
Não foi, porém, o único caso de uma jornalista a trazer das Ilhas Britânicas algumas revelações surpreendentes. No caso de Fernanda Câncio conseguiu ler a tese de doutoramento do deputado da extremíssima direita no nosso parlamento, apesar da restrição à sua consulta exigida pelo próprio. O que essas 267 páginas lhe revelaram deixaria atónito o mais niilista dos seres humanos: em primeiro lugar se o autor da tese a pôde fazer na irlandesa universidade de Cork a nossas expensas a concretizou, porque subsidiado com uma bolsa da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, o que justificaria um daqueles inquéritos populistas dos programas da manhã e que, neste caso, poderia guiar-se pela pergunta: sente-se satisfeito por ter dado uns trocos para que o Ventura ficasse doutor?
Mas se a surpresa ficasse por aí ainda era de somenos: o pior é o teor da tese em que a criatura defendeu a proteção aos direitos das minorias (mormente islâmicas), condenou a excessiva margem de intervenção dos aparelhos policiais e alertou para a deriva populista dos sistemas judiciais. Cereja em cima do bolo: elogios frequentes, com citações a condizer, do professor Boaventura de Sousa Santos, como se sabe objeto do ódio de estimação de muitos comentadores das direitas, que o veem como um académico ferozmente esquerdista.
À primeira vista poderíamos conjeturar pela existência de um Jekyll Ventura, orientado à esquerda de acordo com os pressupostos da sua tese e um Hyde Ventura mascarado em deputado do Chega. Mas como a criação literária de Stevenson vale pela metáfora, e como prenúncio das teses freudianas, sem que tenham tão arreigado decalque na realidade, só podemos supor o que já imaginávamos: o Ventura não passa de um charlatão capaz de vender as suas mezinhas de acordo com os objetivos pretendidos. Perante o júri da sua tese em Cork adivinhou o sucesso de se disfarçar de esquerdista enquanto no nosso espaço e tempo português, previu as vantagens de assumir um discurso fascista, que encontraria eleitores suficientes para lhe garantirem quatro anos muito descansados numa das cadeiras mais à direita do hemiciclo.
Infelizmente ainda existem demasiados compatriotas, que são tolos facilmente iludidos com bolos de fancaria.

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