Existem épocas da História em que se torna assaz intenso o combate entre o velho e o novo. 1871 foi, nesse aspeto, um ano lapidar. Enquanto Paris se incendiava por conta da luta dos revolucionários da Comuna, a monarquia lusa tremia perante o que se começou a discutir sob a capa das Conferências do Casino. Viviam-se tempos de impasse nas várias geografias e sobrava muita vontade em sacudir a letargia e dar espaço para a afirmação de novas formas de pensar, agir, organizar e, em última instância, governar.
No ensaio, que ontem apresentou no Teatro da Trindade, o Professor Sampaio da Nóvoa relembrou esse esforço de Antero e seus companheiros para dar asas a uma nação tolhida pela incompetência e preconceito de quem nela insistia em mandar. Apesar da repressão e das proibições, promovia-se a mudança, a transformação, por muito que faltassem quase quarenta anos para ela se concretizar.
O sentido maior das palavras do antigo candidato à Presidência da República foi o dever de nos escusarmos a desculpas por nos sentirmos demasiado pequenos face ao que temos como tarefa: reduzir as iníquas relações entre quem nada tem, sujeitando-se à pobreza e à precariedade, e quem acumula riqueza de forma tão escandalosa, que oito indivíduos conseguem concentrar em si tanto dinheiro quanto a metade mais desfavorecida da população mundial. Lembrando Borges cego perante as pirâmides, já teremos feito alguma coisa se nos esforçarmos por mudar a posição de um punhado de areia no conjunto do deserto.
Importa ainda adotarmos um comportamento de abertura perante o que de novo se vai produzindo. Nas artes, nas ideias, na economia, na política. Podemos estar tão formatados em cristalizadas certezas, que nos fechamos a alternativas com potencialidades tidas por inexequíveis. A mesma História, que vai avançando no confronto dialético entre quem dela não quer sair e quem nela anseia por irromper, está cheia de exemplos de anunciadas impossibilidades depois concretizadas numa qualquer fulgurante manifestação de contrapoder, depressa convertido em novo poder.
Um dos alertas explícitos deixados pelo conferencista teve a ver com o que une muita gente das esquerdas e das direitas: os tempos idos não voltam para trás. Por muita nostalgia, que sintam, os modelos de sociedade e de valores, entretanto ultrapassados por outros, não podem ser reconstruídos. Quem anseia pelo regresso ao salazarismo só poderá vê-lo refletido nas suas versões atualizadas (Passos Coelho é disso um exemplo), mas que não são mais as mesmas. Quem julga possível regressar à pureza dos regimes soviéticos, só pode sentir-se incomodado pela persistência criminosamente quixotesca do atual líder norte-coreano.
O impasse em que hoje vivemos é o de um capitalismo sem respostas para as monstruosidades sociais, que criou. E, sobretudo, para as que pretende dar vida na descontrolada corrida para o próprio fim. A desenfreada busca do lucro e da acumulação de capital em número cada vez mais exíguo de mãos, não chegará ao desenlace previsível de uma disrupção apocalítica. O instinto coletivo pela sobrevivência tomará conta da derrapagem antes que se torne ainda mais desvairada.
Como? Caber-nos-á encontrar resposta pela problematização constante do desafio, na discussão intensa e aprofundada do que ele implica, sem chegar ao extremo de repetir-se o erro dos que, perante o cerco de Constantinopla, teimavam em prosseguir a discussão sobre o sexo dos anjos. É, nesse âmbito, que faz todo o sentido olhar para os jovens, para aqueles que, um dia, na Praça do Rossio, em Viseu, terão dito a Sampaio da Nóvoa que estavam verdadeiramente interessados na política e até dela tinham conhecimentos insuspeitados para o então candidato - tentado a proferir-lhes discurso paternalista e moralizador sobre a importância de se entregarem aos deveres da cidadania! - mas que afirmavam a convicção de ainda não ser este o seu tempo. E essa é outra questão que a realidade nos está a sugerir: há quarenta anos, quando tínhamos a frescura da juventude, avançávamos, destemidos, para os grandes combates políticos, porque a esperança de vida nos consideraria velhos aos cinquenta, aos sessenta anos. Hoje, perante a forte possibilidade de chegarem a octogenários, os jovens têm menos pressa de se chegarem à frente do palco, dão-se tempo e espaço para viverem a intensidade dos afetos e das experiências radicais, sem descurarem a atenção para esse mundo onde, mais tarde ou mais cedo, sentirão a inevitabilidade de empunharem o testemunho.
Numa conferência, que seria possível abordar por tantos outros aspetos, pois foram múltiplas as pistas de reflexão, que Sampaio da Nóvoa deixou, talvez a maioria dos presentes tenha saído tão pessimista perante o futuro quanto para ali entrou. Mas para os que não se conformam com este impasse e continuam apostados em substitui-lo por novas formas de aproximação à Utopia, as ideias enunciadas para Projetar Portugal fizeram todo o sentido e deram alimento ao otimismo de tudo continuar a ser possível. Andamos tão poluídos com as tropelias dos Trumps do nosso espaço mediático, que nos esquecemos de quão perecíveis são. E como, em alternativa, vão-se pressentindo sinais encorajadores, ainda incapazes de se tornarem mais do que isso. Bernie Sanders, por exemplo, poderia ter subido à ribalta como cabeça-de-turco dessa irrupção do que estará para vir sob a forma de novos valores, novos costumes, novos comportamentos para com os outros, e nomeadamente para com este planeta exaurido, que tanto exige ser respeitado.
Neste cantinho atlântico da Europa esse prenúncio do que será o futuro já se manifesta através da convergência das esquerdas. E por isso tudo está a mudar - na Economia, na atitude mais descontraída das pessoas, nas perspetivas do que poderá vir a ser o país. Talvez sirva de exemplo para que seja o punhado de areia enunciado por Borges, pondo em movimento a aparente imutabilidade deste deserto global.
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