domingo, 20 de dezembro de 2020

Uma lei que me saberá a pouco

 

Quase a concluir o excelente testemunho na edição de hoje do «Público» sobre a experiência de cuidadora da mãe, a escritora Dulce Maria Cardoso anota uma dos momentos desse convívio com uma octogenária em vias de perder o discernimento, com alzheimer, ou não, consoante o parecer dos especialistas: A minha mãe vê um programa da manhã. Interrompe-me várias vezes, esquece-se que estou a trabalhar, Ando preocupada com uma coisa, filha, quem vai cuidar de ti quando fores velha?”

A questão pode-se colocar ao casal de sexagenários, que somos cá em casa: com a família mais próxima definitivamente radicada noutras paragens, com os mais velhos de um lado e de outro a chegarem ao termo das vidas  e a desimpedirem-nos a passagem para chegarmos à margem do rio Hades, donde se apanha transporte para o nada definitivo, acalentamos com expetativa o que sairá da Assembleia como lei propiciadora da eutanásia. Sem ilusões imediatas, porque o fanatismo dos religiosos insiste em impedir quem não acredita em deuses de escolher o momento da partida e de a ele aceder sem dor e com tudo preparado para que os herdeiros do moderado legado não tenham trabalhos exagerados para recolherem o que será seu de direito.

Há uns meses atrás uns vizinhos do prédio em frente tomaram essa decisão e tiveram de recorrer aos meios, que lhes estavam disponíveis. De manhã a empregada da Associação, que lhes dava apoio domiciliário não teve acesso ao interior, chamou a polícia e encontrou o cenário esperado. O casal metera mãos á obra e cuidara de não sofrer mais com a angústia de uma degenerescência, que só se agravava e não existiria forma de travar.

Demos pelo sucedido quando vimos o aparato dos pirilampos do carro da polícia e, sobretudo, um locutor da Correio da Manhã TV a fazer o direto para ser emitido nesse mesmo instante para proveito dos necrófilos. Quando pressentem a morte por perto, os abutres logo se fazem convidados para o repasto...

Por essa altura víramos um filme do Robert Guédiguian - A Casa Junto ao Mar - em que situação exatamente igual se cinematografava. Ou tínhamos o exemplo, anterior, mas sempre presente, de Mireille Jospin, a notável enfermeira e resistente antinazi que, chegada aos noventas com inexcedível saúde e lucidez para essa idade, tomou por seus os versos de José Gomes Ferreira e decidiu que viver sempre também cansa. Por isso contratou esse desiderato com a empresa suíça, que propicia a morte assistida e pediu aos filhos, que a acompanhassem nesse última viagem além-fronteira. A filha Nöelle deu-lhe todo o apoio e anuiu a fazer esse trajeto de despedida da mãe. O filho, antigo-primeiro ministro socialista, mandou às malvas o teórico progressismo, zangou-se com a mãe, quis que ela abdicasse do projeto e escusou-se a juntar-se-lhe nesse final. Provavelmente arrependendo-se depois do seu egoísmo...

Tenho-o aqui dito e redito: sou pelo direito à eutanásia sem constrangimentos preconceituosos. Se entendo justificada a oportuna finitude antes de deixar de ser capaz de tomar tal decisão, e tendo um médico compreensivo, que me possa ajudar a alcança-la, não aceito que mais ninguém tenha algo a ver com o caso. É o pleno exercício da minha liberdade, ponto. Daí que a legislação espanhola acabada de aprovar ou a que o nosso parlamento ditará em janeiro, me saiba a pouco.

E, mais ainda, desejaria que o momento final tivesse algumas semelhanças com o de Edward G. Robinson numa cena inesquecível do filme À Beira do Fim: deitado numa cama com um ecrã gigantesco à sua volta a multiplicar-se em imagens coloridas de paisagens naturais e com a música de Tchaikovsky, Beethoven e Edward Grieg. O filme em causa decorria numa Terra apocalítica, razão porque o velho Sol Roth melhores razões tinha para livrar-se de tão intenso sofrimento.

A questão da eutanásia por vontade do próprio continuará a ser uma luta para os próximos anos, traçando uma linha de separação entre os que amam a Liberdade e a reconhecem como direito dos outros e aqueles que continuarão a defender dogmas religiosos e a querer impô-los a quem os acha completamente absurdos. 


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