terça-feira, 29 de dezembro de 2020

No rescaldo da chacina na herdade da Torre Bela

 

Há uns anos costumava passar quase diariamente por uma estrada com um importante coberto florestal. Um dia deflagrou ali um enorme incêndio, que dificilmente teria outra explicação senão a intenção criminosa. E, de facto, um par de anos depois, numa parte desse território incendiado já estava plantada uma vasta área com painéis solares, noutra extraiam-se quantidades impressionantes de areia para alimentar a industria da construção enquanto na remanescente cresciam novas vivendas como cogumelos. Não tendo provas de nada, constatei porém a provável relação causa-efeito entre o aparatoso incêndio e os investimentos privados surgidos na área ardida.

Vem isto a propósito de um artigo de Demétrio Alves no «Público» de ontem em que ele qualifica de «mostrengo energético» à colonização de boa parte do território nacional com fins energéticos a cargo de poderosos interesses predatórios de cunho financeiro, energético e industrial. Muitos dos sítios escolhidos para plantar turbinas eólicas ou painéis fotovoltaicos não têm condições efetivas para gerarem o prometido retorno ambiental sugerido pelos investidores, sobretudo interessados nos lucros decorrentes dos apoios oficiais facultados a tais negócios.

O problema da transição energética está no facto de ser protagonizado por quem vê na urgência de a concretizar uma boa oportunidade para encher os bolsos. Daí não haver o mínimo escrúpulo em promover chacinas como a agora constatada na herdade da Torre Bela. Quando o ministro veio esconder o sol com a peneira, dissociando quem ali quer instalar painéis solares dos que dispararam cobardemente contra os veados e os javalis, não pode iludir-se em julgar tolos quem percebe estar em causa precisamente o contrário. Se os «caçadores» executaram o crime, os seus mandantes foram obviamente os que pensam lucrar muito mais do que com a venda dessas atrozes carcaças: a venda de eletricidade à rede energética nacional durante um indefinido número de anos terá justificado a ordem para acabar com a vida animal naquela área.

É triste constatar que já poucos falam de uma chacina, que deveria perdurar duradouramente nas nossas memórias. Para que o crime não compensasse frustrando muito justamente a quem maior culpa deveria ser assacada. Muito embora não possamos ter muitas ilusões: quem foi capaz de tal morticínio repeti-lo-á noutro qualquer sítio do país tão só se lhe apresente a oportunidade para tal... 

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