terça-feira, 1 de maio de 2012

AS COISAS NÃO CONTINUARÃO A SER COMO SÃO


Na mais recente edição do suplemento das sextas-feiras do Jornal de Negócios, Manuel Alegre dava uma excelente entrevista a Anabela Mota Ribeiro onde, às tantas, desmentia a condição portuguesa de «povo de brandos costumes»:
Os portugueses são um povo para o qual é preciso olhar com atenção. Alguém dizia: “Gostam de encostar os portugueses à saudade. Parece que aguentam tudo, e de repente atiram com tudo ao ar.”
Obviamente que o poeta alertava para os riscos inerentes à presente política de austeridade do Governo, que tem atirado com tanta gente para a miséria e para o desespero traduzido num número crescente de suicídios. Mas que, mais tarde ou mais cedo, se infletirá para uma violência que transita de uma opção pessoal e virada contra si, para outra diretamente orientada para os símbolos maiores da sua desgraça.
Os acasos das leituras conduziram-me, entretanto, a um dos mais conhecidos romances de Alves Redol - «Horizonte Cerrado» -, o primeiro do chamado ciclo do «Port Wine». Nele vive-se uma situação social muito parecida à agora vivida. Senão vejamos: o tempo é o da Primeira República e o espaço é o do Douro vinhateiro e existe nos mais pobres uma fome endémica, com os pequenos agricultores incapazes de venderem o vinho das suas adegas, os operários agrícolas despojados de trabalho e os especuladores e fabricantes de vinho a martelo a prosperarem com o lucro obtido da diferença entre o parco preço a que acedem pagar aos mais desesperados e aquele que cobram nos mercados externos.
Porque a revolta é grande, Alves Redol descreve um terrível episódio em que a violência parece orientar-se na direção errada: para iludirem a fome uns miúdos  divertem-se a perseguir um podengo escanzelado, que foge para dentro de uma taberna e busca proteção entre as pernas dos homens aí desocupados. Mas estes decidem vencer esse nada fazer, exercendo requintes de malvadez contra o pobre bicho. Assim, regam-no de aguardente e atiçam-lhe o fogo, que se mantém aceso até ele silenciar os ganidos plangentes e morrer carbonizado numa vereda.
O leitor é levado a pensar que, violentados pelos poderosos que os exploram, não resta aos explorados senão a vingança catártica sobre os que ainda se lhes mostram mais desgraçados. E ficando-se por aí, o romance daria razão aos que apostam em como «as coisas continuarão a ser como são».
Só que, o mesmo poema de Brecht a que pertence este verso, é esclarecedor quanto à falsidade de tal conclusão: a mudança é inevitável e até as ditaduras aparentemente mais sólidas são derrubadas de um momento para o outro, como temos assistido nos últimos anos. E, por isso, vemos o velho António Teimas a reagir quase inconscientemente ao desatino em que vive e pôr-se a tocar o sino da aldeia. E com ele, sem saberem porquê, homens e mulheres pegarem em paus e alfaias e dirigirem-se ao armazém de um dos seus mais óbvios exploradores para o deixarem em ruínas fumegantes.
A imagem do Douro a arder com as chamas a dançarem voluptuosamente na superfície das águas cobertas de vinho falsificado, corresponde a uma forte imagem do que pode suscitar uma situação social explosiva. Em que os Gaspares se enganam quanto à possibilidade de ainda mais se acentuarem os já enormes sacrifícios atuais.
Voltando à entrevista de Manuel Alegre vale a pena sacudir este conformado desânimo em que  nos encontramos e darmos largas ao nosso insubmisso repúdio por todo este modo de exercer uma governação só pensada em benefício de uma minúscula faixa de exploradores.
No dia primeiro de maio eis algo que vale a pena sempre considerar...

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