sexta-feira, 19 de março de 2021

Porque continuo a ler a imprensa do outro lado

 


Agora que o «Expresso» sai à sexta-feira antecipa-se um dia à esclarecedora leitura da bíblia pela qual se rege algum empresariado, que vive traumatizado pelo convívio com um governo socialista e não sabe como se livrar de tal desdita. São muitos os amigos, que evitam esta leitura por ela lhes causar fácil urticária, mas mantenho a metodologia de ir lendo este tipo de imprensa por ser asizada a estratégia de conhecer o que se vai passando na trincheira contrária para melhor aferir da bondade daquilo que contra ela vai sendo disparado.

Nunca mais esqueci um determinado dia de 1978 em que fui embarcar no «Gerês» da Soponata e, na estação fluvial onde esperava pelo catraeiro, vi um fulano, alto, encorpado, de porte algo ariano a comprar o jornal então mais à direita de quantos se publicavam. Então ainda enfeudado aos ardores da extrema-esquerda olhei-o com imediata antipatia, ciente de ter ali fidalgal inimigo acaso ele também fosse para o navio, que me serviria de morada nos meses seguintes.

Veio a pequena embarcação e ambos a tomámos em direção ao petroleiro fundeado em frente ao Porto Brandão. Pouco depois ambos nos apresentávamos ao Chefe de Máquinas, ele na qualidade de 2º Oficial e eu na de 3º. Na altura satisfez-me o facto de não nos colocarem no mesmo turno de serviço, ele na casa das turbinas, eu na das caldeiras. Julgava assim acautelar ásperas discussões como as que então abundavam entre os que defendiam o aprofundamento da Revolução de Abril, como era o meu caso, e os que a quereriam fazer regredis ao seu dia anterior, como era quase certa a vontade dos compradores do tal jornal.

O preconceito a seu respeito não durou mais do que um par de dias, porque logo ele se mostrou ativo nos animados debates às refeições, confrontando com galhardia as opiniões fartamente reacionárias do comandante, do imediato ou, mesmo, do tal chefe de máquinas, que aceitavam com desgosto a perda de estatuto e de efetivo poder, que os galões na farda lhes garantiam no tempo da outra senhora.

Não admira que esse colega demonstrasse tão afirmativa postura: além de ativo sindicalista, também não escondia a simpatia - desconheço se efetiva militância - comunista.

Algum tempo depois confidenciei-lhe a antipatia que, intimamente, por ele sentira ao vê-lo pela primeira vez, ainda não aceitando que se gastasse dinheiro com tão execrável imprensa.

“Se os queremos vencer temos de conhecer o que dizem e o que pensam”. Foi resposta que não mais esqueci. E se hoje fujo de certa (des) informação televisiva como o meu gato evita aproximar-se da banheira, quando tomo banho, confesso preferir a forma escrita de conhecer o pensamento inimigo porque permite-me ter o tal conhecimento sem me saltar tão facilmente a tal urticária que os meus amigos não conseguem evitar para esse tipo de discurso, seja ele visto, ouvido ou lido.

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