A realidade atual é bem elucidativa quanto à mistificação em torno da ideia de Democracia, que as classes dirigentes tanto enfatizaram enquanto as circunstâncias impunham ser essa a forma de manterem aquietadas as frustrações das dirigidas - ao mesmo tempo que lhes dava ensejo para tomarem conta da comunicação social e darem cabo dos sindicatos e dos partidos de esquerda! - e depressa a transformam numa forma musculada de reprimir os crescentes descontentamentos.
A União Europeia é um exemplo devastador de como políticos sem engenho, nem visão, estão a criar as condições para a China afirmar-se como grande superpotência da segunda metade do século a que nem sequer o bacoco voluntarismo nacionalista do trumpismo conseguirá opor-se. E a tentação para ignorar as alterações climáticas autorizando os construtores de automóveis a prolongarem o recurso a motores de combustão vai nesse sentido. Como escreve hoje Tiago Luz Pedro no "Público": "O carro elétrico não é uma moda nem uma utopia verde, é o símbolo de uma mudança inevitável que, se adiada, se fará noutro continente. E a marcha-atrás que hoje se anuncia nos planos de eletrificação das marcas pode ser o primeiro passo de um retrocesso significativo: o de uma Europa que, por medo de mudar, acaba por perder o direito de liderar."
Liderar já agora com um conceito de Democracia, que não sirva só de instrumento oportunista para essas tais classes dominantes salvaguardarem os lucros de curto e médio prazo, mesmo se com reflexos apocalípticos no futuro que se seguirá.
O texto de José Pedro Teixeira Fernandes vai no mesmo sentido: "A China dá agora uma lição estratégica notável. Mostra como se converte uma capacidade de produção industrial sem rival no mundo, acrescida de um domínio do comércio internacional (de bens) e de uma primazia na extracção e refinação de matérias-primas críticas para as indústrias electrónicas, a indústria militar e a nova economia descarbonizada — elementos de terras raras e outros minerais críticos — numa eficaz arma de pressão sobre rivais e competidores. (Ironicamente, imitando armas clássicas dos EUA). A sua ameaça de imposição de controlo às exportações deixou à vista o terreno armadilhado sobre o qual foram construídas as cadeias de abastecimento globais que levam (quase sempre) à China."
A China apropriou-se das próprias ferramentas que os EUA usaram durante décadas - controlo de cadeias de abastecimento, domínio de recursos críticos, capacidade de estrangulamento económico - e agora volta-as contra o Ocidente. O resultado de décadas de complacência ocidental que presumiu que a globalização seria sempre governada a partir de Washington. A convergência de capacidade industrial sem rival, controlo de matérias-primas críticas (não apenas extração, mas sobretudo refinação) e domínio das cadeias de abastecimento revela um "terreno armadilhado" onde a interdependência económica se transformou em vulnerabilidade unilateral do Ocidente.
A Europa quis fazer a transição verde sem garantir autonomia nas cadeias que a possibilitam. Uma Europa que recua na eletrificação por pressão de lobbies obsoletos está simultaneamente a perder a corrida tecnológica e a aumentar a dependência em relação a quem já venceu essa corrida. É uma capitulação em dois tempos.
Internamente, está à vista uma das razões porque as direitas e os seus instrumentos no ministério público, quiseram acabar com o governo de António Costa tão depressa: transferir verbas do PRR do interesse público para os bolsos dos donos das empresas privadas. A revisão agora decidida pelo governo subtrai verbas para o Wi-fi das escolas, tal como milhares de vagas em lares, creches e no SNS transferindo 617 milhões de euros para as empresas (e seus donos).
A operação tem uma arquitetura reveladora: desestabilização política via ministério público (invocando combate à corrupção), mudança de governo em contexto de aparente crise institucional, e reorientação de 617 milhões - do investimento público estrutural para transferências privadas. A ironia é cruel: usa-se a retórica anticorrupção para viabilizar aquilo que, em termos de impacto no interesse coletivo, é funcionalmente equivalente - a apropriação de recursos públicos por interesses privados, apenas com outra roupagem legal.
O que sai de cena com esses 617 milhões são investimentos em capital humano e coesão social: capacidade educacional, rede de proteção social, sistema de saúde público. Precisamente o que distingue sociedades resilientes de sociedades fragmentadas. Áreas que não geram retorno financeiro imediato, mas que constroem capacidade coletiva de longo prazo.
Enquanto Pequim investe maciçamente em infraestrutura, educação, capacidade industrial estratégica, a Europa transfere 617 milhões do investimento estrutural para lucros privados. A miopia estratégica europeia face à China e a captura do Estado por interesses de curto prazo são faces da mesma moeda. Não é possível competir com planeamento estratégico chinês quando os recursos nacionais são constantemente desviados do investimento estrutural para rendas privadas, quando a própria capacidade institucional do Estado é deliberadamente enfraquecida.
A democracia mistificada revela-se incapaz de tomar decisões estratégicas de longo prazo precisamente porque está capturada por interesses de curto prazo - enquanto a China, livre dessa contradição, planeia em décadas. É a pulsão suicida do capitalismo rentista europeu em formato de política pública. E quando daqui a uma década Portugal e a Europa estiverem ainda mais atrasados relativamente à China, a narrativa será sobre "inevitabilidade" e "forças de mercado" - nunca sobre as escolhas políticas deliberadas que nos trouxeram até lá.
Os 617 milhões são o preço, em numerário, da mistificação democrática.

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