quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Autocrítica versus destruição

 

Em vez dos comentários à fantochada das ditas comemorações do 25 de novembro, a leitura do dia foca-se no texto de Pedro Nuno Santos no «Público» sobre os dez anos passados desde a formação da Geringonça. Vale a pena dedicar-lhe atenção porque contrasta brutalmente com o que se passa no presente.

Pedro Nuno analisa a experiência governativa de 2015-2019 e extrai lições para o futuro da esquerda portuguesa. Começa por reconhecer as conquistas: a solução PS-PCP-BE-PEV representou uma inovação democrática importante, demonstrando que era possível formar governo através de maioria parlamentar e que o PS podia governar sem depender da direita.

Crucialmente, provou-se que o equilíbrio orçamental não exige austeridade. Pelo contrário: a reposição de rendimentos e direitos cortados pela troika acelerou a recuperação económica. Houve aumentos históricos do salário mínimo sem provocar desemprego, descongelamento de pensões, redução de propinas, eliminação de taxas moderadoras, gratuitidade de creches e manuais escolares. Foi um período de elevada confiança institucional.

Mas Pedro Nuno não se limita ao elogio. Identifica falhas importantes: devia-se ter investido muito mais nos serviços públicos e nos salários da função pública. Na habitação, era preciso não só construir mais cedo como regular o mercado para travar a especulação financeira. Nas políticas migratórias, houve cedência excessiva às dinâmicas do mercado - a entrada de mais de um milhão de pessoas em meia dúzia de anos sem preparação adequada gerou problemas sociais que a esquerda não pode ignorar, sob pena de perder as pessoas que pretende representar.

A conclusão é clara: recuperar a confiança é essencial, mas vencer eleições só vale a pena se for para transformar estruturalmente como vive a maioria dos portugueses. É uma análise honesta, autocrítica e estratégica. Exatamente o oposto da postura de José Luís Carneiro, que prefere facilitar a vida a Montenegro em nome de uma moderação que não serve ninguém exceto a direita.

E o que faz Montenegro enquanto uns fazem autocrítica sobre não ter investido o suficiente nos serviços públicos? Destrói ativamente o que resta. A destruição do SNS prossegue conforme planeado. O governo impôs restrições brutais ao recrutamento de novos profissionais para o Serviço Nacional de Saúde. O limite de contratação foi fixado em 1,9% para 2025, uma redução dramática em relação ao limite de 5% de 2024.

As metas para cirurgias, consultas médicas e percentagem de utentes com médico de família também foram revistas em baixa. Em vez de aumentar as metas para responder às necessidades crescentes, o governo baixa-as. Assim fica mais fácil cumprir os objetivos - basta reduzir as expectativas e pronto, missão cumprida.

Em 2026, o SNS pode perder cerca de 2.000 profissionais, incluindo 575 médicos especialistas e 381 enfermeiros. Recordemos: há 832 idosos abandonados em hospitais à espera de vaga em lares, as cirurgias oncológicas caíram 16%, 1,5 milhões de portugueses não têm médico de família. E a resposta é cortar em 2.000 profissionais.

Não é incompetência de Ana Paula Martins. É execução do plano. Destruir o setor público até ao ponto em que quem pode foge para o privado e quem não pode fica sem nada. E enquanto o SNS colapsa deliberadamente, dois outros sectores revelam sinais preocupantes de infiltração da extrema-direita: as polícias e os bombeiros. Não é coincidência que nesses mesmos sectores cresçam as notícias de crimes hediondos.

Nas forças de segurança, descobriram-se militares da GNR e um agente da PSP envolvidos nos crimes de exploração de emigrantes repulsivamente explorados em herdades da zona de Beja. Os mesmos que deveriam proteger os mais vulneráveis estavam a colaborar na sua escravização.

Nos bombeiros, houve o caso da praxe com atos sexuais típicos de uma violação sobre um novo recruta de uma Associação dita Humanitária no Fundão. O adjetivo "humanitária" ganha contornos grotescos quando aplicado a quem pratica ou tolera violência sexual sobre os seus membros.

Não havendo provas dos envolvidos serem apaniguados do partido de Ventura, os seus crimes estão em consonância com os muitos que regularmente se noticiam sobre gente ligada a essa organização indevidamente legalizada. O padrão repete-se: violência, abuso de poder, exploração dos mais fracos, racismo institucional.

A extrema-direita faz trabalho de recrutamento sistemático nas forças de segurança e nos bombeiros, aproveitando o descontentamento com salários baixos, falta de meios e desvalorização profissional. E quando a extrema-direita se instala, normaliza-se a brutalidade, o abuso de autoridade, a cumplicidade com quem explora e viola. São os mesmos que se dizem defensores da lei e da ordem, da família e dos valores tradicionais. Enquanto escravizam emigrantes e violam recrutas.

O contraste não podia ser mais claro. De um lado, quem faz autocrítica honesta sobre o que podia ter feito melhor quando governou. Do outro, quem destrói deliberadamente o que ainda funciona e infiltra as instituições com quem normaliza a violência e o abuso. De um lado, quem quer transformar para melhor. Do outro, quem transforma para pior, sistemática e conscientemente.

A hipocrisia é estrutural, não acidental. E o tempo para a travar esgota-se. 

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