terça-feira, 25 de novembro de 2025

A Reinvenção Política da Misoginia

 

Não assume ainda a gravidade do que se passa noutras geografias — onde a afirmação de uma masculinidade medrosa perante o ascendente social e profissional das mulheres traduz-se em números tremendos de violência doméstica e de violações —, mas a situação tende a replicar-se entre nós por obra e graça do Chega, que contém na sua essência todos os estereótipos de uma cultura misógina.

Há muito que sabemos que o antifeminismo não é um ruído periférico: é um sistema coerente de crenças, de medos e de narrativas sobre o que deve ser o lugar das mulheres na sociedade. O que mudou, nos últimos anos, foi a intensidade com que esse imaginário se diz em voz alta e a legitimidade pública que encontra em certos discursos políticos.

Muitos destes discursos não se limitam a contestar políticas de igualdade — apresentam as conquistas feministas como uma ameaça ontológica, como se a autonomia das mulheres fosse sinónimo de desordem. A retórica do “exagero feminista”, combinada com a fantasia da “dominação feminina”, cria um caldo de ressentimento que alimenta tanto as versões mais institucionais do antifeminismo como as suas vertentes subterrâneas, onde se misturam masculinismos belicosos, frustrações sexuais transformadas em ideologia e apelos explícitos à violência.

Quando Christine Bard fala da entrada numa época em que a misoginia é assumida sem véus, parece descrever precisamente esta fase de radicalização em que o ódio às mulheres já não precisa de subterfúgios. Nos Estados Unidos, a brutalidade verbal de Donald Trump tornou-se quase performativa; em França, a “manosphère” reorganiza-se com um vigor perturbador; e, em Portugal, certas figuras políticas captam, com eficácia, esse mal-estar difuso de homens que se imaginam superados, humilhados ou ameaçados pelo simples facto de as mulheres reclamarem igualdade. Não há aqui originalidade ideológica — há apenas reciclagem de um velho patriarcado munido agora de algoritmos e megafones digitais.

O mais preocupante é que esta nova vaga antifeminista, longe de ser apenas uma guerra de ideias, traduz-se em práticas concretas: ataques coordenados em linha contra mulheres que ocupam o espaço público; tentativas de descredibilizar vítimas de violência sexual; romantização de modelos familiares hierárquicos; reabilitação de mitos sobre “naturezas femininas” e “naturezas masculinas”; e, sobretudo, a reafirmação de que o corpo das mulheres deve permanecer disponível, regulamentado, controlado.

O que se passa não é apenas um conflito entre modernidade e tradição, mas uma verdadeira luta pelo imaginário social. De um lado, a reivindicação legítima de dignidade e segurança; do outro, a fantasia de que os homens estariam a perder algo que nunca lhes pertenceu por direito. Neste ponto, a história é clara: cada avanço feminista — do voto ao divórcio, do trabalho ao controlo da reprodução — gerou um contra-ataque. A novidade do presente reside no facto de esses contra-ataques acontecerem num ambiente saturado de desinformação, radicalização acelerada e erosão democrática.

Daí que a resposta feminista contemporânea não possa limitar-se à justiça ou à pedagogia. Exige vigilância, redes de apoio, coragem pública e, sobretudo, a capacidade de desmontar esta ficção persistente de que a igualdade seria uma forma de hostilidade. Porque o que verdadeiramente está em disputa não é o poder “das mulheres”, mas o direito de viver sem medo — e isso, para quem se beneficia do medo, é intolerável. 

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