sábado, 8 de novembro de 2025

Papalvices e outras mistificações

 

António José Seguro veio agora fazer o papel de Madalena arrependida, dizendo-se de esquerda na entrevista à RTP. Poderá enganar quem vá no logro. Para mim é isso mesmo: um logro para papalvos. Algo que pretendo não ser.

O homem que propôs a "abstenção violenta" perante Passos Coelho, que disse há dias que teria repetido o acordo com a troika se pudesse voltar atrás, surge agora travestido de progressista a reclamar credenciais de esquerda. É a mesma estratégia que tem seguido José Luís Carneiro: palavras à esquerda, ações à direita. Ou, pior ainda, inação quando a ação se impõe.

Seguro representa tudo aquilo que a Terceira Via trouxe de pior à social-democracia europeia: a capitulação perante o neoliberalismo disfarçada de pragmatismo, o complexo de inferioridade perante a direita, a preguiça da imaginação maquilhada de realismo. Mário Soares tinha-o percebido há décadas. Alguns de nós recusamo-nos a esquecer.

E se Seguro representa a fraude progressista, André Ventura personifica a fraude religiosa. Pacheco Pereira sublinha a incompatibilidade entre o Chega e a suposta filiação cristã do seu líder: "A Igreja Católica e muitas comunidades luteranas e protestantes dão um papel relevante à 'empatia' e à 'compaixão' e já têm falado na defesa dos mais fracos, em particular dos imigrantes, de uma forma que é claramente contra o populismo anti-imigrante do Chega."

A observação é certeira. Ventura invoca constantemente valores cristãos, mas pratica o oposto do que Cristo pregou. Onde está a compaixão no discurso de ódio contra imigrantes? Onde está a empatia na demonização de comunidades inteiras? Onde está o amor ao próximo na defesa de políticas que criminalizam a pobreza?

O cristianismo de Ventura é uma fraude tão grande quanto o progressismo tardio de Seguro. Ambos instrumentalizam valores que não praticam, ambos mentem descaradamente sobre aquilo que são. A diferença é que Ventura nunca escondeu a sua natureza - apenas a veste de religiosidade para a torná-la mais palatável. Seguro, esse, finge agora ser o que sempre combateu.

E por trás destas duas fraudes prepara-se uma terceira, mais perigosa. São José de Almeida manifesta dúvidas quanto à capacidade de Passos Coelho em voltar a liderar o PSD e vê-o como exemplo de um serôdio sebastianismo: "O sebastianismo é uma realidade cultural profunda, até estrutural da política portuguesa. A mitificação de líderes passados como potenciais salvadores no futuro faz parte dos mecanismos de pensamento popular em Portugal. Talvez seja esse o pano de fundo cultural das interpretações que têm sido feitas das intervenções de Pedro Passos Coelho. Ou pode ser que o próprio alimente esse desejo. É legítimo, repito. Mas tenho para mim que as soluções futuras de poder no PSD terão de ser outras."

A análise é pertinente, mas peca por excesso de generosidade. Passos Coelho não é um mito sebastianista surgido espontaneamente da cultura popular portuguesa. É um projeto deliberado de setores do grande capital e da direita mais reacionária, que veem no falhanço anunciado de Montenegro a oportunidade para regressar com um programa ainda mais brutal de destruição do Estado social.

As suas recentes intervenções não são nostálgicas nem inocentes. São preparatórias. Quando fala de "reformas" que não podem ser adiadas, todos sabemos o que significa: o desmantelamento acelerado de direitos, a entrega de serviços públicos ao privado, a precarização total do trabalho. E desta vez, ao contrário de 2011, em coligação explícita com o Chega.

Não se trata de sebastianismo. É fascismo recauchutado.

Mas se Seguro, Ventura e Passos Coelho representam três faces da mesma ameaça, há sinais de que a resistência começa a organizar-se. Intentando desfigurar a legislação laboral, despojando-a de direitos que se julgariam mais do que consolidados, o governo consegue um feito histórico: a UGT e a CGTP preparam a greve geral para o início de dezembro. As centrais sindicais unem-se contra as alterações à legislação laboral apresentadas pelo Governo. É a primeira vez desde 2013 que se juntam para uma greve no setor público e privado.

Quando o governo consegue unir a UGT e a CGTP, é porque ultrapassa todas as linhas vermelhas. A última vez que isso aconteceu foi precisamente contra Passos Coelho, em 2013, no auge da austeridade da troika. Onze anos depois, Montenegro repete a proeza: agredir de tal forma os direitos dos trabalhadores que as duas centrais, historicamente divididas, não têm alternativa senão juntar forças.

É este o caminho das tais "reformas" que Passos Coelho diz não poderem ser adiadas. É isto que o sebastianismo dos poderosos nos reserva: a destruição sistemática de décadas de conquistas laborais, o regresso à precariedade como norma, a liquidação da contratação coletiva.

Mas se o governo pensa que pode passar por cima dos trabalhadores sem resistência, está a cometer o mesmo erro de há onze anos. A greve de dezembro será apenas o começo. O rio começa a extravasar. 

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