segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Lições da História para o Presente

 

Três artigos no “Público” de hoje — de Ricardo Paes Mamede, Francisco Louçã e Ana Sá Lopes — oferecem uma leitura inquietante mas esclarecedora do momento político que atravessamos. Lidos em conjunto, revelam algo mais grave do que a habitual alternância partidária: estamos perante uma potencial transformação estrutural do regime democrático português.

Ricardo Paes Mamede usa um recurso invulgar: a história da China imperial como espelho para compreender o presente português. A lição é simples mas devastadora: ao longo de dois milénios, as dinastias chinesas consolidaram-se ou caíram consoante a sua capacidade de manter três pilares essenciais — instituições fortes, inovação contínua e legitimidade ética da governação.

Quando estes elementos diluem-se, escreve Mamede, as pessoas "começam a procurar outras saídas, muitas vezes agarrando-se a qualquer mensagem de rutura, mesmo que ofereça poucas perspetivas de futuro". Soa familiar? É precisamente esta erosão institucional e ética que explica o momento que vivemos.

A advertência é clara: não é por acaso que os regimes políticos entram em colapso. É porque aqueles que governam, "por ação ou inação", deixam degradar os fundamentos da sua própria legitimidade.

Francisco Louçã vai mais fundo no diagnóstico. Identifica uma "dupla crise" que está a reconfigurar o país. A primeira foi o colapso abrupto da maioria absoluta do PS, que abriu espaço à instalação da direita "como o lugar da política", excluindo do campo do possível as referências aos problemas concretos das pessoas: segurança no trabalho, habitação, salários dignos.

A segunda crise é ainda mais profunda: a normalização da desigualdade e a glorificação de um "liberalismo insaciável e despótico". O resultado? A vida tornou-se "um tormento para a maioria da população" — precisamente a que é depois manipulada para acreditar que "a culpa é da cor do imigrante".

Este é o paradoxo cruel do momento: as pessoas sofrem com a exploração económica de uma elite, mas são levadas a dirigir a sua raiva não contra quem as explora, mas contra os mais vulneráveis.

Louçã introduz um conceito fundamental: a "passificação" da esquerda e do centro. Não se trata apenas de perder eleições, mas de desistir de apresentar alternativas. O PS apoia um Orçamento que considera "mau" e "sem credibilidade". O candidato presidencial socialista parece fazer campanha a desmentir "o valor dos valores de esquerda", numa "manobra eleitoral inédita" em que se "apela enfaticamente a um voto que se declara inútil".

Esta rendição não é acidental. Corresponde à "passificação" da própria política: quando o ex-primeiro-ministro lamenta que "as pessoas se sentem estrangeiras na sua própria terra", e o deputado do Chega vocifera a expulsão de uma deputada negra "para a sua terra", estamos perante a colonização total do debate público pela agenda xenófoba.

É aqui que a análise de Louçã encontra a de Mamede: quando a política perde legitimidade ética e deixa de responder aos problemas reais, abre-se o caminho para a deriva autoritária.

Ana Sá Lopes traz a dimensão estratégica e operacional. O regresso de Passos Coelho não é um capricho pessoal, mas parte de um projeto político específico: a unificação explícita da direita com a extrema-direita.

Os factos são conhecidos mas importa recordá-los: foi Passos quem indicou Ventura como candidato do PSD em Loures; foi Passos quem não lhe retirou a confiança após o discurso anticiganos; é Passos quem Ventura admite apoiar para Belém; é Passos quem agradeceu publicamente esse apoio, dizendo não ver "por que havia de ficar incomodado" com quem diz que votaria nele.

Ao contrário de Montenegro, que mantém um "não é não" tático com o Chega, Passos representa a ponte explícita para o acordo de governação. Com ele na liderança do PSD, esse acordo será não apenas possível, mas natural.

Louçã não tem ilusões sobre os interesses materiais por trás desta transformação. Chama-lhes "a casta": magnatas que montam candidaturas presidenciais, empresários das armas e de contratos públicos que "despejam dinheiros no Chega", grupos económicos que financiam o ecossistema mediático Observador-Iniciativa Liberal.

Esta elite, "formada pelo Estado e alimentada pelo Estado", acumulou riqueza "suportada pelo saque dos impostos, a ameaça da espada e a ideologia colonial". O que estamos a ver é o seu regresso ao modelo de acumulação predatória, agora protegido por "leis que protegem a acumulação imobiliária e os descontos fiscais para os cofres das maiores empresas".

É por isso que o racismo contra "os colonizados de dentro" lhes é tão natural. "Estão a repetir a linguagem do berço", escreve Louçã com precisão cirúrgica.

Mas nem tudo está perdido. Apesar do tom necessariamente sombrio da análise, Louçã identifica as vulnerabilidades fundamentais deste projeto:

Primeiro, a arrogância da casta. A avidez ilimitada dos interesses que financiam esta viragem pode tornar-se demasiado visível. Há sempre um momento em que as máscaras caem e as pessoas percebem quem está realmente a beneficiar.

Segundo, e mais importante, esta política não responde a nada. Para as pessoas reais, significa apenas que "a vida nas nossas cidades se vai tornando uma tortura, que as pensões e os salários são pilhados pelas rendas e que o supermercado se torna exorbitante". O discurso xenófobo não paga a renda, não enche o frigorífico, não resolve a precariedade.

É nesta contradição — entre o espetáculo da xenofobia e a realidade da exploração económica — que reside a possibilidade de resistência e de construção de uma alternativa.

A lição que emerge da leitura conjugada destes três textos é clara: não basta denunciar o autoritarismo ou lamentar a deriva da direita. É preciso reconstruir os três pilares que Mamede identifica como essenciais a qualquer regime político estável e legítimo.

Instituições fortes: não as que servem os interesses da casta, mas as que protegem as pessoas comuns. Serviços públicos que funcionem, justiça acessível, regulação que limite o poder económico predatório.

Inovação contínua: não a inovação financeira que serve a especulação, mas a que responde aos problemas concretos. Habitação pública, transição energética, reindustrialização, combate às desigualdades.

Legitimidade ética: não o moralismo vazio, mas a demonstração prática de que a política pode melhorar a vida das pessoas. Isso implica acabar com a "passificação" e voltar a propor, a arriscar, a confrontar os poderes instalados.

Louçã termina o seu texto com uma inversão poderosa do discurso xenófobo: "Estamos a ser expulsos da nossa terra pela casta". Não são os imigrantes que nos expulsam — são os especuladores imobiliários, os patrões que pagam salários de miséria, os grupos económicos que capturam o Estado para seu benefício.

A palavra-chave, diz Louçã, é "viver". "A casta proíbe a esperança de uma vida normal à gente que trabalha e quer respirar. É preciso vencê-la para viver."

É nesta revolta contra a vida que se tornou insuportável — não por causa dos mais vulneráveis, mas por causa dos mais poderosos — que se pode construir uma nova maioria e um novo projeto para o país.

A leitura conjugada destes três artigos não deixa margem para dúvidas: Portugal está numa encruzilhada histórica. De um lado, o projeto de consolidação autoritária, a aliança entre o liberalismo económico predatório e a xenofobia institucionalizada, a erosão das salvaguardas democráticas. Do outro, a possibilidade — ainda em aberto — de construir uma alternativa que responda aos problemas reais das pessoas.

A história, como nos lembra Mamede através do exemplo chinês, ensina que nenhum regime dura para sempre. Os que parecem sólidos desmoronam-se quando perdem a capacidade de responder às necessidades da população. Os que parecem invencíveis revelam-se frágeis quando confrontados com a sua própria contradição fundamental.

A questão não é se este projeto autoritário é derrotável. É se haverá vontade, coragem e lucidez para o derrotar antes que seja tarde demais. Porque, como também nos ensina a história, há derrotas das quais uma democracia não recupera facilmente.

Baseado nos artigos "O passado da China e o nosso futuro" (Ricardo Paes Mamede), "Contra a 'passificação' da esquerda" (Francisco Louçã) e "Passos Coelho vai ser o unificador da direita" (Ana Sá Lopes), publicados no Público. 

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