Com a conivência das televisões, que lhe dão palco privilegiado, Passos Coelho continua a desenvolver a estratégia que os seus titereiros gizaram para ele. Em conjugação com Ventura. Ao anunciado falhanço do governo de Montenegro, pretendem trazer de volta uma versão recauchutada do que o país conheceu durante os quarenta e oito anos de ditadura fascista.
Agora veio dizer que não há mais nenhuma oportunidade para adiar as "reformas". Imaginamos bem quais serão: o desmantelamento acelerado do que resta do Estado social, a entrega de serviços públicos ao grande capital, a precarização total do trabalho, a liquidação dos direitos conquistados ao longo de décadas de luta.
Nunca como agora o levantamento coletivo antifascista se tornou tão urgente. Passados cinquenta anos sobre a manhã clara em que nos iludimos com a definitiva derrota da besta, é tempo de reconhecer que ela apenas hibernava. E que regressa, agora travestida de tecnocracia e eficiência, mas com os mesmos propósitos de sempre: subordinar o país aos interesses de uma oligarquia que não tolera democracia económica nem justiça social.
Os sinais dessa destruição programada estão por todo o lado. Eu ainda sou do tempo em que a ministra socialista do governo de António Costa teve de se demitir porque uma mulher grávida, vinda de fora do país, morreu na maternidade por não ter chegado a tempo de a salvarem, nem ao bebé.
Agora, para Ana Paula Martins, nada a remove do lugar a que o princípio de Peter a guindou, muito acima das suas capacidades e competências. São frequentes os fechos das Urgências de Obstetrícia dos hospitais públicos, ocorrem dezenas de partos em ambulâncias, morrem mulheres grávidas por falta da devida assistência.
E o que faz a ministra? Nada. Em cinco horas de audição parlamentar, nem sequer soube dizer onde vai cortar os milhões que Montenegro lhe surripiou do orçamento para 2026. Incompetência sobre incompetência, inação sobre inação. Quantas mulheres terão ainda de parir em ambulâncias? Quantas urgências terão ainda de fechar? Quantas mortes evitáveis serão necessárias?
A duplicidade de critérios é escandalosa. Marcelo, que foi venenoso com ministros socialistas por muito menos, mantém agora uma complacência obscena. A direita, que exigia cabeças por cada falha do SNS, protege agora quem preside ao seu colapso programado.
E não é só a saúde. A notícia do Público apenas dá substância ao desprezo que este desgoverno tem pelos problemas da habitação. O arquiteto Ricardo Bak Gordon não esconde o espanto: "Deixámos tudo pronto, desde o ano passado, e agora fomos surpreendidos com este anúncio de que, afinal, o terreno vai ser vendido a privados. E não nos deram uma palavra."
Trata-se da Quinta das Conchinhas, no bairro lisboeta de Chelas, onde estava previsto um conjunto habitacional com 168 fogos para arrendamento a custos acessíveis. Tudo pronto, projetos concluídos, expectativas criadas. E de repente o terreno vai ser vendido a privados.
É esta a resposta do governo à crise da habitação: entregar ao mercado o que poderia servir para alojar famílias com rendimentos modestos. Não se trata de incompetência. É opção política deliberada: o solo público vai para as mãos de quem pode pagar mais, não para quem mais precisa. A habitação acessível fica para a retórica dos discursos. A realidade é entregue aos interesses privados que financiam campanhas e lucram com a escassez.
Saúde, habitação, direitos laborais - o padrão é sempre o mesmo. O que é público vai sendo destruído, entregue, liquidado. E quem deveria fazer oposição prepara-se para sentar à mesa e negociar os termos da rendição. A besta não hibernava. Estava apenas à espera do momento certo para regressar.
