quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Don’t cry for me

 

A coincidência de duas mortes em simultâneo - a física de Gorbatchov e a política de Marta Temido - demonstra que, perante situações que justificam a pertinência da Lei de Murphy, é difícil encontrar quem esteja à altura das circunstâncias.

O último presidente da época soviética fez um diagnóstico pessimista em relação ao futuro do regime, acreditou em terceiras vias embalado pelos cantos de sereia capitalistas e abriu uma caixa de Pandora, que nunca mais conseguiu, ou quis, fechar. O resultado foi a alavancagem do capitalismo selvagem, que tantos danos causou nestes últimos trinta anos em que os trabalhadores ocidentais perderam junto dos patrões o efeito dissuasor de uma potencial alternativa capaz de os pôr em causa. A precariedade no emprego, a aposta nos baixos salários, a desindustrialização e outras malfeitorias praticadas sobre quem ficou ainda mais acantonado na parte inferior da pirâmide social, são heranças de um suposto (e falacioso) fim da História anunciado pela queda do muro de Berlim, que teve ainda por efeito a imposição de um estado comatoso a quase toda a esquerda europeia, ainda incapaz de dele emergir com o ímpeto de uma renascida fénix.

A ex-candidata a integrar o lote de sucessores de António Costa à frente do Partido Socialista, não conseguiu resistir por mais tempo a uma situação semelhante à de um enfezado guarda-redes numa enorme baliza e para a qual diversos rematadores atiravam várias bolas ao mesmo tempo. Daí ter aproveitado um fait divers, pelo qual não lhe poderia ser assacada qualquer culpa, para se pôr a milhas. Para trás deixou patente a incapacidade em levar a sério as propostas subscritas por António Arnaut e João Semedo para suster os sucessivos ataques que os grupos privados há muito direcionavam contra o Serviço Nacional de Saúde. Perante os demolidores ataques das Ordens e dos Sindicatos dos médicos e enfermeiros - quase todos enfeudados aos interesses dos defensores do lema quem quer saúde paga-a - Marta Temido estava há muito condenada. Sobretudo, porque as reconhecidas capacidades, com que chegara ao governo enquanto independente, não puderam omitir as fragilidades emocionais perante tão pérfidos e contínuos ataques.

Agora, quer na Rússia, entregue a um autocrata capitalista, quer no Ministério da Saúde onde tanto haverá a reconstruir, anseiam-se por rostos novos, capazes de trazerem soluções que, nem Gorbatchov, nem Marta Temido conseguiram implementar. 

1 comentário:

  1. Geralmemte concordo com os seus textos. Neste caso não, Marta Temido é o cordeiro imolado e António Costa o algoz. Foi sempre ele que decidiui não investir/melhorar o SNS, a bem dos grupos privados.
    DuarteO

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