Três notícias de ontem revelam, cada uma à sua maneira, o retrato da extrema-direita contemporânea: corrupção disfarçada de moralismo, hipocrisia elevada a sistema, e a tentação recorrente de procurar explicações biológicas para aquilo que é, simplesmente, uma escolha política.
Comecemos pela TAP. O Ministério Público investiga suspeitas de que os empresários David Neeleman e Humberto Pedrosa compraram a companhia em 2015 com o dinheiro da própria empresa. O consórcio Atlantic Gateway adquiriu 61% da TAP por apenas 10 milhões de euros, seguindo-se uma capitalização de 226,75 milhões de dólares com suspeitas de que os fundos vieram da Airbus. A compra de 53 aviões está ligada à privatização e é alvo de investigação por possíveis preços inflacionados.
A operação de buscas incluiu três grandes sociedades de advogados: PLMJ, Vieira de Almeida e Cuatrecasas. Uma auditoria da Inspeção-Geral de Finanças revelou pagamentos de 4,3 milhões de euros a administradores sem evidências de critérios claros. Humberto Pedrosa e David Neeleman foram constituídos arguidos, suspeitos de fraude fiscal qualificada e fraude à Segurança Social.
Detalhe relevante: a família Pedrosa, dona da Barraqueiro, é conhecida como financiadora do Chega. O partido que se diz contra a corrupção é financiado por quem está a ser investigado por ter comprado uma empresa pública com o dinheiro dessa mesma empresa.
E a inépcia junta-se à velhacaria: o deputado do Chega Manuel Magno Alves pediu reembolso de viagem nas mesmas datas em que faltou por doença. O presidente da Assembleia recusou o pagamento porque, pela segunda vez, o deputado atrasou-se a pedir autorização prévia para as deslocações ao Brasil. Pequenas fraudes quotidianas que revelam o carácter de quem as pratica.
Enquanto isto acontece, uma terceira notícia completa o quadro: há 15 anos, o Rendimento Mínimo Garantido concedia um apoio entre 60% e 80% do limiar da pobreza. Em 2023, já rebatizado como Rendimento Social de Inclusão, garante apenas 40% daquele valor. Um estudo apresentado ontem demonstra a "deterioração do RSI em relação ao limiar da pobreza". O dinheiro existe. Está é nas mãos erradas.
Do outro lado do Atlântico, os admiradores do trumpismo também enfrentam embaraços. O Congresso dos EUA aprovou, com quase unanimidade, uma lei que obriga o Departamento de Justiça a publicar todos os documentos relacionados com Jeffrey Epstein, o financeiro acusado de exploração sexual de menores e morto na prisão em 2019.
Trump, inicialmente contrário à divulgação, acabou por apoiar a medida após forte pressão da sua própria base republicana. O episódio revela uma perda de controlo sobre o seu partido desde o regresso à Casa Branca. Para parte do movimento MAGA e adeptos da teoria conspirativa QAnon, o caso Epstein simboliza um suposto "Estado profundo" envolvido em redes de pedocriminalidade. Trump, que alimentou estas narrativas em campanha, tenta agora desvalorizá-las como "embuste democrata", mas vê-se ultrapassado pelos seus apoiantes.
Sobreviventes de Epstein manifestaram-se diante do Congresso, exigindo justiça e denunciando a politização do seu sofrimento. Algumas acusaram Trump de proteger aliados e doadores ao resistir à publicação dos documentos. E apesar de negar qualquer ligação direta a Epstein, emails divulgados pelos democratas sugerem que Trump tinha conhecimento de certos abusos.
A ironia é cristalina: o líder populista que alimentou teorias conspiratórias sobre pedofilia nas elites vê-se agora encurralado pela própria base, que exige transparência sobre as suas ligações a um predador sexual. Tal como os financiadores do Chega em Portugal, que estão a ser investigados por fraude fiscal qualificada.
Perante tanta podridão moral, poderíamos ser tentados a procurar explicações biológicas. Seria o ADN dos apoiantes do Chega semelhante ao dos nazis? A propósito de um documentário do Channel 4, o médico-legista francês Philippe Charlier repudia essa tentação.
O documentário britânico "Hitler's DNA: Blueprint of a Dictator" fundamenta-se nos trabalhos de quem sequenciou o ADN de Adolf Hitler, sugerindo predisposições genéticas para autismo, esquizofrenia, bipolaridade.
Charlier é demolidor na crítica. Primeiro, não há garantia de que o material genético seja realmente de Hitler. Segundo, os resultados são apenas probabilidades estatísticas aplicáveis a populações, não a indivíduos. Terceiro, e mais grave, este tipo de abordagem pode levar a justificar ou relativizar os crimes como consequência de doenças genéticas, o que é cientificamente errado e moralmente perigoso.
O ADN é apenas uma parte mínima da equação. O ambiente, a experiência individual e o contexto histórico são determinantes. O documentário recorre ao sensacionalismo sem rigor científico, caindo paradoxalmente na mesma lógica da obsessão nazista pela "pureza genética".
Hitler foi um monstro pelas suas ações, não pelos seus genes. E os apoiantes do Chega que financiam o partido enquanto roubam empresas públicas, ou que pedem reembolsos fraudulentos, não o fazem por determinismo genético. Fazem-no por escolha, por ganância, por cumplicidade com um projeto político que normaliza a corrupção enquanto acusa os outros dela.
O ADN não é destino. A hipocrisia não tem limites. Mas a velhacaria é sempre uma opção consciente. E deve ser tratada como tal.

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