Sandra Guerreiro tem razão quando afirma, em “A Esquerda”, que as palavras e os rótulos nunca são neutros. A escolha entre "direita radical" e extrema-direita, entre "populistas" e fascistas, não é um capricho semântico – é uma operação política deliberada que visa normalizar o inaceitável e tornar palatável o que deveria repugnar qualquer democrata.
Esta manipulação linguística não é exclusiva da política nacional. Aplica-se igualmente à forma como o Ocidente trata o genocídio em curso na Palestina, onde "operação militar" substitui massacre, "colonos" substitui criminosos de guerra, e "complexidade do conflito" substitui cumplicidade com o extermínio. A morte de Awdah Hathaleen, uma das vozes centrais do documentário "No Other Land", assassinado por um colono israelita, é apenas mais um exemplo desta violência sistémica que a linguagem diplomática teima em camuflar.
Quando a direita tradicional decide apropriar-se das bandeiras que até há pouco eram exclusivas da extrema-direita, não está a radicalizar-se por acaso. Está a implementar uma estratégia calculada de sobrevivência política que passa por absorver o discurso fascista como antídoto à própria irrelevância.
A observação de Sandra Guerreiro é certeira: este assalto ao poder começou há muito, e a estratégia passa precisamente por tornar "normal" o que era considerado extremo. Quando ouvimos a candidata à liderança da Iniciativa Liberal admitir que foram "demasiado tecnicistas" e que é preciso "explicar as coisas de forma mais simples", assistimos em direto a esta operação de domesticação do populismo.
A simplificação não é inocência – é cálculo. Transformar argumentos políticos em chavões e frases feitas serve para camuflar as verdadeiras linhas de força dos projetos políticos. E é particularmente perverso quando vem de quem se arroga defender a "liberdade" enquanto promove um Estado mínimo que, na prática, maximiza a liberdade dos mais poderosos para explorarem os mais vulneráveis.
Esta manipulação linguística encontra o seu exemplo mais grotesco na forma como o Ocidente trata Israel. Como escreve Caitlin Johnstone, os apoiantes de Israel "vão mentir, vão manipular, vão fingir acreditar em coisas em que não acreditam" para facilitar "algumas das piores atrocidades que se possa imaginar".
E é exatamente isso que vemos todos os dias: uma máquina de propaganda que transforma vítimas em agressores, que chama "terroristas" a crianças palestinianas e "direito à defesa" ao massacre sistemático de civis. O assassinato de Awdah Hathaleen – documentarista que mostrava ao mundo a realidade da ocupação – é emblemático desta violência que se esconde atrás de eufemismos.
Hathaleen era uma das vozes que desmontava a narrativa oficial israelita, mostrando a brutalidade quotidiana da ocupação. A sua morte não é um "incidente isolado" – é o resultado lógico de um sistema que funciona através da eliminação física de quem ousa contar a verdade.
A linguagem não é apenas um meio de comunicação – é um instrumento de poder. Quando permitimos que "extrema-direita" se torne "direita radical", quando aceitamos que "genocídio" se transforme em "operação defensiva", estamos a ceder terreno fundamental na batalha pelas ideias.
Esta não é uma questão académica ou de correção política. É uma questão de sobrevivência democrática. Porque quando as palavras perdem o significado, quando a linguagem torna-se uma ferramenta de ocultação em vez de revelação, ficamos indefesos perante a manipulação e a mentira sistemática.
A morte de Awdah Hathaleen deveria ser um escândalo internacional. Em vez disso, será provavelmente arquivada como mais um "incidente" na "complexa situação" do Médio Oriente. As aspas não são minhas – são da linguagem diplomática que serve para branquear crimes e tornar aceitável o inaceitável.
Sandra Guerreiro aponta para algo fundamental: a necessidade de questionar as alterações graduais da linguagem e perceber o que está por detrás delas. Não podemos aceitar passivamente que os fascistas se transformem em "populistas", que os criminosos de guerra se tornem "colonos", que o genocídio vire "operação militar".
Cada cedência linguística é uma vitória dos que querem normalizar o horror. Cada eufemismo aceite é um passo em direção à banalização da violência. E quando chegamos ao ponto em que documentaristas são assassinados por mostrarem a verdade, percebemos que já não se trata apenas de semântica – trata-se de vida e morte.
A linguagem pode ser uma arma ao serviço do poder, mas também pode ser uma ferramenta de resistência. Depende de nós escolher que lado servimos: o da clareza que liberta ou o da confusão que oprime.
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