terça-feira, 29 de julho de 2025

A Subversão da Democracia

 

Giuliano da Empoli, com "O Mago do Kremlin", ofereceu-nos uma janela perturbadora para as entranhas do poder russo, personificando a manipulação e a construção de realidades através da figura enigmática de Vadim Baranov. Este, um ex-produtor de reality shows, transformado em eminência parda de Putin, orquestra um teatro político onde a verdade é maleável e a emoção, a moeda corrente. Mas, ao virar as páginas, a inquietante pergunta que me assaltava era: será que esta narrativa, por mais distópica que pareça, não encontra um eco ainda mais alarmante na política ocidental, nomeadamente no trumpismo? E, nesse caso, não estaremos perante uma caricatura, talvez, mais perigosa ainda do que a de Putin?

A grande diferença reside na premissa. O "Czar" de Empoli opera num regime autoritário consolidado, onde a orquestração da desinformação e a fragilização das instituições são ferramentas de um poder já estabelecido. No trumpismo, a invasão das táticas de Baranov ocorre no coração de uma suposta democracia que, até então, se imaginava robusta. É a subversão de dentro para fora, a erosão de pilares democráticos não por um Estado já totalitário, mas por um movimento que, ironicamente, se apresenta como defensor do povo contra as "elites".

Pensemos na forma como a administração Trump operou: a insistência em "factos alternativos", a negação descarada de evidências, a demonização da imprensa como "inimigo do povo". Tudo isto remete para a lógica de Baranov de criar uma realidade própria, imune à verificação e à crítica. Se na Rússia de Putin a população já estava acostumada a uma certa dose de propaganda estatal, nos EUA, a capacidade de desmantelar a confiança em instituições como a CBS e apresentadores como Stephen Colbert, do Late Show, que foi alvo de intensas pressões e apelos por parte da Casa Branca de Trump para que fosse silenciado e até demitido, sugere uma fragilidade até então subestimada. A sua postura crítica e a própria essência do jornalismo de late night que representava foram frontalmente atacadas pela retórica trumpista. Essa campanha de deslegitimação, que se manifestou de várias formas ao longo dos tempo e culminou mais recentemente no anúncio do fim do programa por alegadas razões financeiras, mas com fortes suspeitas de motivações políticas, espelha a forma como os regimes autoritários trabalham para anular qualquer voz independente.

E quem seria, então, o Baranov americano? Embora seja difícil apontar uma única figura com a mesma influência discreta mas total que Empoli atribui ao seu personagem fictício, a mente de imediato divaga para figuras como Steve Bannon. Ex-estratega-chefe da Casa Branca, Bannon, com o passado em media e a visão ideológica de "desconstrução" do establishment, parece ser o mais próximo arquiteto da "política quântica" no contexto americano. Tal como Baranov, Bannon compreende o poder da narrativa, da polarização e do uso de plataformas digitais para agitar as paixões e desmantelar a ordem existente. Ele não precisava de um autocrata para iniciar o processo; ele próprio era, e é, um catalisador de caos, um engenheiro da desordem que explora as fissuras da sociedade para reconfigurar o poder.

A grande ironia e o maior perigo residem aqui: se o "Mago do Kremlin" opera para solidificar um autoritarismo já existente, a "caricatura" americana parece operar para criá-lo de raiz numa democracia. O livro de Empoli, para além de ser uma leitura interessante sobre a Rússia, torna-se um espelho inquietante do que pode estar a acontecer mais perto de nós, e um aviso sobre a fragilidade das nossas próprias defesas contra os engenheiros do caos que operam à vista de todos.

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