quinta-feira, 31 de julho de 2025

Os Predadores e a Lógica da História

 

Depois de desvendar-nos os labirintos do Kremlin e as intrincadas teias digitais dos "Engenheiros do Caos", Giuliano da Empoli aprofunda, em "A Hora dos Predadores", uma análise que, embora pertinente, entra numa espiral de pessimismo cada vez mais acentuada. Os pressupostos de Empoli sobre a fragilidade das democracias ditas liberais e a inevitabilidade da ascensão de regimes autoritários, que operam com a lógica da força e da manipulação, são, sem dúvida, perturbadores e encontram eco em muitos eventos contemporâneos. A perspetiva sobre a "política da emoção" e a erosão da verdade é uma lente poderosa para compreender o cenário atual.

No entanto, vale a pena relativizar até que ponto esses pressupostos são omnipresentes ou inelutáveis. A análise de Empoli, ao focar-se na eficácia das estratégias dos "predadores", corre o risco de subestimar a resiliência das sociedades civis e a capacidade de reação das próprias democracias, ainda que tardia. O pessimismo latente que transparece em "A Hora dos Predadores" sugere uma espécie de marcha inexorável para um cenário onde a manipulação e o autoritarismo dominam, questionando a própria capacidade de contraofensiva das forças que defendem os valores democráticos.

Mas a História, essa velha mestra, não ensina uma lição fundamental? Mesmo quando um determinado poder, por mais absoluto e avassalador pareça ser, atinge o auge de força, é precisamente nesse momento que as condições para o seu esgotamento e eventual colapso já começam a acentuar-se. A hegemonia excessiva, a rigidez na aplicação do poder, a incapacidade de adaptar-se ou de escutar vozes dissonantes – tudo isso, paradoxalmente, semeia as sementes da própria destruição. Impérios caíram, ditaduras ruíram, e mesmo regimes totalitários aparentemente inquebrantáveis acabaram por ruir sob o peso das contradições internas, da exaustão dos povos ou da emergência de novas realidades que não conseguiram controlar.

A "Hora dos Predadores" é um espelho útil para os perigos que enfrentamos, mas talvez a maior esperança não esteja na negação do seu diagnóstico, mas na lembrança de que nenhum poder é verdadeiramente invencível. A própria natureza do sistema que Empoli descreve, assente na volatilidade das emoções e na constante necessidade de criar novos "inimigos" e "caos", pode ser a sua maior fraqueza a longo prazo. A exaustão da própria narrativa, a desconfiança que se instala quando a manipulação é desmascarada vezes demais, ou simplesmente o desejo humano por autenticidade e estabilidade, podem ser as forças que levarão os "predadores" a encontrar o seu próprio limite. E essa é uma lição que a História, por mais que Empoli se debruce sobre o presente, continua a sussurrar.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Quando as Palavras Servem o Poder

 

Sandra Guerreiro tem razão quando afirma, em “A Esquerda”, que as palavras e os rótulos nunca são neutros. A escolha entre "direita radical" e extrema-direita, entre "populistas" e fascistas, não é um capricho semântico – é uma operação política deliberada que visa normalizar o inaceitável e tornar palatável o que deveria repugnar qualquer democrata.

Esta manipulação linguística não é exclusiva da política nacional. Aplica-se igualmente à forma como o Ocidente trata o genocídio em curso na Palestina, onde "operação militar" substitui massacre, "colonos" substitui criminosos de guerra, e "complexidade do conflito" substitui cumplicidade com o extermínio. A morte de Awdah Hathaleen, uma das vozes centrais do documentário "No Other Land", assassinado por um colono israelita, é apenas mais um exemplo desta violência sistémica que a linguagem diplomática teima em camuflar.

Quando a direita tradicional decide apropriar-se das bandeiras que até há pouco eram exclusivas da extrema-direita, não está a radicalizar-se por acaso. Está a implementar uma estratégia calculada de sobrevivência política que passa por absorver o discurso fascista como antídoto à própria irrelevância.

A observação de Sandra Guerreiro é certeira: este assalto ao poder começou há muito, e a estratégia passa precisamente por tornar "normal" o que era considerado extremo. Quando ouvimos a candidata à liderança da Iniciativa Liberal admitir que foram "demasiado tecnicistas" e que é preciso "explicar as coisas de forma mais simples", assistimos em direto a esta operação de domesticação do populismo.

A simplificação não é inocência – é cálculo. Transformar argumentos políticos em chavões e frases feitas serve para camuflar as verdadeiras linhas de força dos projetos políticos. E é particularmente perverso quando vem de quem se arroga defender a "liberdade" enquanto promove um Estado mínimo que, na prática, maximiza a liberdade dos mais poderosos para explorarem os mais vulneráveis.

Esta manipulação linguística encontra o seu exemplo mais grotesco na forma como o Ocidente trata Israel. Como escreve Caitlin Johnstone, os apoiantes de Israel "vão mentir, vão manipular, vão fingir acreditar em coisas em que não acreditam" para facilitar "algumas das piores atrocidades que se possa imaginar".

E é exatamente isso que vemos todos os dias: uma máquina de propaganda que transforma vítimas em agressores, que chama "terroristas" a crianças palestinianas e "direito à defesa" ao massacre sistemático de civis. O assassinato de Awdah Hathaleen – documentarista que mostrava ao mundo a realidade da ocupação – é emblemático desta violência que se esconde atrás de eufemismos.

Hathaleen era uma das vozes que desmontava a narrativa oficial israelita, mostrando a brutalidade quotidiana da ocupação. A sua morte não é um "incidente isolado" – é o resultado lógico de um sistema que funciona através da eliminação física de quem ousa contar a verdade.

A linguagem não é apenas um meio de comunicação – é um instrumento de poder. Quando permitimos que "extrema-direita" se torne "direita radical", quando aceitamos que "genocídio" se transforme em "operação defensiva", estamos a ceder terreno fundamental na batalha pelas ideias.

Esta não é uma questão académica ou de correção política. É uma questão de sobrevivência democrática. Porque quando as palavras perdem o significado, quando a linguagem torna-se uma ferramenta de ocultação em vez de revelação, ficamos indefesos perante a manipulação e a mentira sistemática.

A morte de Awdah Hathaleen deveria ser um escândalo internacional. Em vez disso, será provavelmente arquivada como mais um "incidente" na "complexa situação" do Médio Oriente. As aspas não são minhas – são da linguagem diplomática que serve para branquear crimes e tornar aceitável o inaceitável.

Sandra Guerreiro aponta para algo fundamental: a necessidade de questionar as alterações graduais da linguagem e perceber o que está por detrás delas. Não podemos aceitar passivamente que os fascistas se transformem em "populistas", que os criminosos de guerra se tornem "colonos", que o genocídio vire "operação militar".

Cada cedência linguística é uma vitória dos que querem normalizar o horror. Cada eufemismo aceite é um passo em direção à banalização da violência. E quando chegamos ao ponto em que documentaristas são assassinados por mostrarem a verdade, percebemos que já não se trata apenas de semântica – trata-se de vida e morte.

A linguagem pode ser uma arma ao serviço do poder, mas também pode ser uma ferramenta de resistência. Depende de nós escolher que lado servimos: o da clareza que liberta ou o da confusão que oprime. 

terça-feira, 29 de julho de 2025

A Subversão da Democracia

 

Giuliano da Empoli, com "O Mago do Kremlin", ofereceu-nos uma janela perturbadora para as entranhas do poder russo, personificando a manipulação e a construção de realidades através da figura enigmática de Vadim Baranov. Este, um ex-produtor de reality shows, transformado em eminência parda de Putin, orquestra um teatro político onde a verdade é maleável e a emoção, a moeda corrente. Mas, ao virar as páginas, a inquietante pergunta que me assaltava era: será que esta narrativa, por mais distópica que pareça, não encontra um eco ainda mais alarmante na política ocidental, nomeadamente no trumpismo? E, nesse caso, não estaremos perante uma caricatura, talvez, mais perigosa ainda do que a de Putin?

A grande diferença reside na premissa. O "Czar" de Empoli opera num regime autoritário consolidado, onde a orquestração da desinformação e a fragilização das instituições são ferramentas de um poder já estabelecido. No trumpismo, a invasão das táticas de Baranov ocorre no coração de uma suposta democracia que, até então, se imaginava robusta. É a subversão de dentro para fora, a erosão de pilares democráticos não por um Estado já totalitário, mas por um movimento que, ironicamente, se apresenta como defensor do povo contra as "elites".

Pensemos na forma como a administração Trump operou: a insistência em "factos alternativos", a negação descarada de evidências, a demonização da imprensa como "inimigo do povo". Tudo isto remete para a lógica de Baranov de criar uma realidade própria, imune à verificação e à crítica. Se na Rússia de Putin a população já estava acostumada a uma certa dose de propaganda estatal, nos EUA, a capacidade de desmantelar a confiança em instituições como a CBS e apresentadores como Stephen Colbert, do Late Show, que foi alvo de intensas pressões e apelos por parte da Casa Branca de Trump para que fosse silenciado e até demitido, sugere uma fragilidade até então subestimada. A sua postura crítica e a própria essência do jornalismo de late night que representava foram frontalmente atacadas pela retórica trumpista. Essa campanha de deslegitimação, que se manifestou de várias formas ao longo dos tempo e culminou mais recentemente no anúncio do fim do programa por alegadas razões financeiras, mas com fortes suspeitas de motivações políticas, espelha a forma como os regimes autoritários trabalham para anular qualquer voz independente.

E quem seria, então, o Baranov americano? Embora seja difícil apontar uma única figura com a mesma influência discreta mas total que Empoli atribui ao seu personagem fictício, a mente de imediato divaga para figuras como Steve Bannon. Ex-estratega-chefe da Casa Branca, Bannon, com o passado em media e a visão ideológica de "desconstrução" do establishment, parece ser o mais próximo arquiteto da "política quântica" no contexto americano. Tal como Baranov, Bannon compreende o poder da narrativa, da polarização e do uso de plataformas digitais para agitar as paixões e desmantelar a ordem existente. Ele não precisava de um autocrata para iniciar o processo; ele próprio era, e é, um catalisador de caos, um engenheiro da desordem que explora as fissuras da sociedade para reconfigurar o poder.

A grande ironia e o maior perigo residem aqui: se o "Mago do Kremlin" opera para solidificar um autoritarismo já existente, a "caricatura" americana parece operar para criá-lo de raiz numa democracia. O livro de Empoli, para além de ser uma leitura interessante sobre a Rússia, torna-se um espelho inquietante do que pode estar a acontecer mais perto de nós, e um aviso sobre a fragilidade das nossas próprias defesas contra os engenheiros do caos que operam à vista de todos.

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Os Engenheiros do Caos

 

Não é que Giuliano da Empoli tenha um currículo respeitável, já que foi conselheiro do político italiano, Matteo Renzi,  que quis aplicar na "bota" transalpina a lógica ideológica da equívoca Terceira Via. Mas fazem sentido algumas das suas denúncias sobre como a extrema-direita tem progredido no cenário europeu. É o que lhe deu matéria para o ensaio que restringe as alternativas às democracias ditas liberais e as que as querem substituir por sucedâneos do que chegou-se a imaginar inviável depois da Segunda Guerra Mundial. Como se a via socialista estivesse morta e enterrada.

Em "Os Engenheiros do Caos", Empoli mergulha nas profundezas da nova estratégia política que tem catapultado figuras e movimentos populistas de extrema-direita para o assalto ao poder. Longe das plataformas ideológicas tradicionais, o que revela é uma máquina sofisticada de manipulação da perceção e exploração das emoções. Para Empoli, a ascensão desses "engenheiros" não se baseia em grandes ideias ou programas de governo, mas na capacidade de subverter a verdade e instrumentalizar a desinformação.

O ensaio desvenda como os algoritmos das redes sociais tornaram-se nas novas armas da guerra cultural e política. A "política quântica", termo que Empoli utiliza, descreve um cenário onde a realidade objetiva é desintegrada. Cada indivíduo é cercado por uma bolha de informações personalizada, criada por dados e algoritmos, que reforça preconceitos e amplifica o medo. Nesse ambiente, a verdade torna-se irrelevante; o que importa é a narrativa, por mais absurda que seja, desde que mobilize as paixões e fragilize o senso crítico.

Empoli mostra que esses novos arquitetos do poder não se furtam a dialogar ou construir consensos. Pelo contrário, o objetivo é gerar polarização e desconfiança nas instituições democráticas, na imprensa e até mesmo na ciência. O caos não é um subproduto indesejável, mas uma ferramenta deliberada para exaurir a opinião pública e forçar a necessidade de um líder "forte" que prometa ordem no meio da confusão.

O autor não oferece soluções fáceis, mas propõe um alerta. As democracias ditas liberais, com regras e burocracias, parecem lentas e impotentes diante da agilidade e falta de escrúpulos desses "engenheiros". O livro é um convite urgente a compreender a nova lógica do poder, proveniente dos bastidores digitais e alimentando-se da fragilidade das sociedades contemporâneas.

No entanto, se a análise de Empoli é perspicaz sobre a ascensão de novas formas de autocracia, só implicitamente levanta a questão do que tem faltado às alternativas progressistas. Num cenário em que a democracia dita liberal vê-se sitiada e a extrema-direita prospera no terreno da emoção e da desinformação, talvez a via socialista possa encontrar um novo fôlego.

A aposta reside na capacidade das forças progressistas redesenharem o seu apelo. Isso não significa abandonar os princípios de justiça social, igualdade e solidariedade, mas encontrar novas linguagens e estratégias para ir ao encontro das aspirações e medos das pessoas. O desafio é combater a manipulação do caos com propostas concretas que respondam às ansiedades reais da população, ao mesmo tempo que recuperem a confiança na verdade e na possibilidade de um futuro comum.

Talvez a resposta ao populismo não resida na defesa do status quo dito liberal, mas em apresentar uma visão mais radical e esperançosa de transformação social, que aborde as causas profundas do descontentamento e da alienação, e seja capaz de mobilizar as pessoas para valores que transcendem as bolhas algorítmicas. Ou seja a reinvenção de uma via que pode ressurgir das cinzas para oferecer uma alternativa real ao avanço dos "engenheiros do caos". 

sábado, 26 de julho de 2025

A intenção de nos fazer voltar ao tempo das ceroulas

 

Eu ainda sou do tempo em que Wilhelm Reich era um dos nossos gurus e a Revolução Sexual um objetivo político e cultural, que parecia incontornável no final do século XX. O problema foi terem-se vindo a instalar demónios, que nada têm a ver com o nu como ideal de beleza e o sexo como aquilo que Manuel Fonseca lembraria num poema como sendo aquilo que de mais belo alguém pode partilhar na vida. A proliferação da pornografia, a pedofilia, as violências sexuais não consentidas vieram manchar o que tenderia a ser uma evolução, que já se sugeria na Antiguidade, mas as religiões quiseram proibir de forma mais ou menos ostensiva nos séculos desde então decorridos. Hoje, como o demonstra a prevista eliminação da sexualidade dos currículos escolares, há quem queira voltar ao tempo, também traduzido em versos por Ary dos Santos, em que o sexo era praticado por viris procriadores vestidos de ceroulas. Razão para voltarmos a defender o papel do Nu e do Sexo como pilares de uma afirmação progressista da evolução humana.

É precisamente neste cenário de aparente retrocesso que se inserem as polémicas atuais no mundo das artes internacionais sobre o uso do nu. O que outrora era celebrado como o pináculo da forma humana e da expressão artística – pensemos na perfeição do Davi de Michelangelo ou na paixão esculpida em O Beijo de Rodin – é hoje alvo de censura em contextos tão banais como salas de aula ou plataformas digitais. A arte, que deveria ser um espaço de liberdade e reflexão, vê-se enredada numa batalha contra um puritanismo crescente, que parece ignorar séculos de história da arte e o valor intrínseco da representação do corpo.

Não se trata apenas de esculturas. Fotografias, pinturas e até performances artísticas que exploram a nudez, não como vulgaridade, mas como verdade, vulnerabilidade e beleza, são sistematicamente atacadas. Assiste-se a uma estranha inversão: enquanto a pornografia, muitas vezes violenta e desumanizante, prolifera em espaços digitais pouco regulados, a arte que humaniza o corpo é banida. Este paradoxo revela uma profunda confusão moral e uma perigosa deturpação do que é o nu artístico. O problema não é o corpo na sua essência, mas a incapacidade de discernir entre a celebração da forma e a sua exploração mercantilizada ou violenta.

A tentativa de eliminar ou restringir a sexualidade nos currículos escolares não é um ato isolado; é parte integrante desta mesma batalha. Ao negar aos jovens uma educação abrangente e descomplexada sobre a sexualidade – que naturalmente inclui a sua representação artística e histórica –, estamos a privá-los das ferramentas essenciais para a distinção crítica. Como poderão eles diferenciar a beleza da anatomia humana de representações objetificadoras, ou o consentimento da coerção, se o assunto é silenciado e relegado ao tabu?

Defender o papel do nu na arte e de uma sexualidade livre de preconceitos não é promover a libertinagem. Pelo contrário, é reafirmar o humanismo. É advogar por um conhecimento que permite aos indivíduos compreender e respeitar o seu próprio corpo e o dos outros, celebrar o afeto e o prazer de forma saudável e consensual, e reconhecer as perversões não como parte da sexualidade inerente, mas como desvios que devem ser combatidos com educação e justiça, e não com censura e ignorância.

O receio da nudez e da sexualidade expressa-se, paradoxalmente, no medo de ver e de saber. Voltar aos "viris procriadores vestidos de ceroulas" é voltar a um tempo de escuridão moral, onde o corpo era uma fonte de vergonha e o prazer um pecado. A arte, através do nu, e uma educação sexual livre, através do conhecimento, são os faróis que nos guiam para longe dessa regressão. Elas são a linha de frente de uma luta que visa resgatar a integridade da experiência humana e a liberdade individual, permitindo que a sexualidade seja vivida na sua plenitude, como algo belo, consensual e fundamental para a nossa evolução, tal como a história e os poetas já nos ensinaram. 

sexta-feira, 25 de julho de 2025

A Voracidade do Poder em Três Atos

 

A substituição de Mário Centeno por Álvaro Santos Pereira na governação do Banco de Portugal é mais do que uma simples mudança de nomes. É a manifestação clara de uma voracidade política que não hesita em quebrar tradições institucionais, sacrificar competências técnicas reconhecidas e até recorrer à difamação para justificar o injustificável. Quando um governo rompe com a prática estabelecida de reconduzir governadores do banco central para segundos mandatos, não o faz por zelo institucional, mas por pura ganância de poder.

Esta lógica do loteamento partidário, que transforma cargos técnicos em prémios de consolação para "boys" do regime, revela uma mentalidade que infelizmente não se circunscreve às nossas fronteiras. É a mesma lógica que permite genocídios, que protege redes de pedofilia, que corrói as instituições democráticas em nome de interesses particulares.

Mário Centeno, independentemente das opiniões que se possam ter sobre as suas posições, construiu um percurso de inegável competência técnica. Foi ministro das Finanças em tempos difíceis, presidiu ao Eurogrupo, e granjeou reconhecimento internacional pela sua gestão. A sua substituição por Álvaro Santos Pereira quebra uma tradição que existia precisamente para blindar o banco central das ingerências políticas.

Mas o que é verdadeiramente repugnante é a tentação, já visível em alguns sectores próximos do governo, de denegrir Centeno com insinuações e meias-verdades para justificar uma decisão que é puramente política. Esta é a face mais sórdida do exercício do poder: quando não conseguem justificar racionalmente as suas opções, recorrem à calúnia.

É o mesmo padrão que vemos repetir-se quando Montenegro distribui cargos pelos seus fiéis, independentemente da competência dos substituídos. A questão não é se Santos Pereira será um bom ou mau governador – é o princípio subjacente: transformar instituições técnicas em feudos partidários.

Entretanto, do outro lado da Europa, até Emmanuel Macron – não propriamente um radical de esquerda – já anuncia o reconhecimento do Estado da Palestina. A reação histérica de Tel Aviv, acusando-o de "recompensar o terror", seria cômica se não fosse trágica. Como se Gaza, transformada num campo de extermínio onde mais de 60.000 civis foram massacrados, não fosse o verdadeiro terror que a História registará.

A hipocrisia é de tal ordem que causa náuseas. Um país onde mais de 80% da população apoia os crimes de Netanyahu, onde ministros falam abertamente em "solução final" para os palestinianos, onde hospitais e escolas são bombardeados sistematicamente, tem a lata de falar de "terrorismo" quando alguém ousa reconhecer o direito dos palestinianos à autodeterminação.

O reconhecimento do Estado palestiniano por Macron – tardio, mas necessário – expõe a cumplicidade obscena das democracias ocidentais com um genocídio transmitido em direto. E revela como o poder, quando não tem limites, transforma-se numa máquina de morte que devora tudo à sua frente.

Nos Estados Unidos, o The New York Times publica uma lista de aniversário de Jeffrey Epstein onde figura Donald Trump como convidado. Não é uma revelação – é a confirmação do óbvio. As ligações entre Trump e o criador de uma das mais sórdidas redes de pedofilia foram sempre evidentes para quem quisesse ver.

Mas esta é precisamente a questão: o poder protege-se a si próprio. Durante anos, a imprensa mainstream minimizou estas conexões, tratou-as como "teorias da conspiração", desvalorizou testemunhos. Agora, quando Trump regressa triunfalmente à Casa Branca, descobrem-se documentos que confirmam o que muitos já sabiam.

É o mesmo padrão: o poder corrompe, protege os seus, e só ocasionalmente – quando já é tarde demais – a verdade vem à superfície. Quantos mais Jeffrey Epsteins andam por aí protegidos por redes de influência? Quantos mais crimes se cometem em nome da "razão de Estado"?

Montenegro a lotear o Banco de Portugal, Netanyahu a massacrar Gaza, Trump protegido nas suas ligações pedófilas – são manifestações da mesma doença: a convicção de que o poder dá direito a tudo, de que as regras são para os outros, de que a força faz o direito.

É esta mentalidade que corrói as democracias por dentro, que transforma instituições em feudos, que permite genocídios em nome da "segurança", que protege criminosos em nome da "estabilidade". E é contra esta lógica que temos de nos bater, dia após dia, porque quando o poder perde limites, todos perdemos.

A voracidade do poder sobrepõe-se a tudo o resto – à competência, à justiça, à própria humanidade. E enquanto não enfrentarmos esta realidade de frente, continuaremos reféns de quem vê o mundo como um bem pessoal a ser repartido entre amigos.

terça-feira, 22 de julho de 2025

Imigração: Direitos Básicos e Integração Essencial

 

A dignidade de quem trabalha não pode ter passaporte. Como sublinha Ricardo Paes Mamede, é crucial garantir salários mínimos decentes, descontos para a segurança social, horários e condições de trabalho justas, o direito de associação e uma proteção social robusta para todos, sem exceção. Quanto mais assegurarmos estes direitos, menos atrativo será o nosso país para quem procura explorar a vulnerabilidade, e menos trabalhadores estrangeiros serão forçados a aceitar o que os nacionais, e bem, já recusam.

Mas a nossa responsabilidade não acaba aqui. A integração efetiva da população imigrante na sociedade portuguesa é um pilar de uma nação coesa. Isso passa por favorecer o reagrupamento familiar, para que as famílias possam estar juntas e criar raízes. Passa também por promover a aprendizagem da língua portuguesa, desde as crianças aos adultos, para que se sintam verdadeiramente parte de nós. E, claro, passa por combater todas as formas de discriminação e os discursos de ódio, que só servem para dividir e fomentar o ressentimento. Uma política de habitação pública que previna a criação de guetos é, igualmente, um passo vital para construir comunidades saudáveis e integradas.

Deixemos claro: destruir o único teto que as pessoas têm, fomentar o ódio ou ser conivente com ele, restringir ao máximo o reagrupamento familiar ou entregar os direitos dos trabalhadores estrangeiros nas mãos de empregadores sem escrúpulos pode ter muitos nomes. Mas uma coisa não é, de certeza: não é uma política de imigração razoável, nem muito menos a base para a construção de uma sociedade decente. É, antes, a receita para a exclusão e o conflito, algo que devemos rejeitar veementemente. 

sábado, 19 de julho de 2025

As (ainda) impercetíveis novas qualidades do Mundo em mudança

 

Associo-me, muito naturalmente, à reação de muitos dos que viram o debate do Estado da Nação e sentiram-se indignados pela conduta de Aguiar Branco na condução dos trabalhos. A forma como Pedro Delgado Alves insurgiu-se contra ele, por ter advertido o líder socialista sobre o uso do termo "fanfarrão" para com André Ventura, foi um momento crucial.

É verdadeiramente desconcertante que tenha dado tanto peso a uma palavra como "fanfarrão", assaz moderada quando se aplica a alguém que faz da mentira uma estratégia reiterada de propaganda e não hesita em instrumentalizar nomes de crianças para promover discursos racistas e xenófobos. Parece que Aguiar Branco, ao contemporizar com o arruaceiro do Chega, e comportar-se quase como seu "guarda-costas" face a críticas que são mais do que justas, valida a visão de quem o considera o pior Presidente da Assembleia da República em democracia.

O debate só veio reforçar a coligação de facto que une a AD e o Chega e se tornará ainda mais evidente à medida que o PS, com uma liderança mais enérgica, retomar a linha de combate mais efetiva ao governo, possivelmente em maior ou menor concertação com as demais forças de esquerda.

Tenho a esperança de que as esquerdas voltem a ressurgir, impulsionadas pelo agravamento da inflação e da crise social e económica. É visível que esta (des)governação não tem qualquer ideia de como obviar a estes problemas. O aumento generalizado dos preços, a crónica falta de casas, a escassez de professores e a incapacidade de dar respostas no SNS são fatores que, inevitavelmente, tenderão a aumentar o descontentamento social que já começa a sentir-se nas ruas.

Neste contexto, vem à colação a newsletter de Ana Sá Lopes, onde aborda o discurso de ódio em crescendo nas redes sociais, que identifica como expressão de um racismo larvar na sociedade portuguesa. É irónico e triste pensar que, para essa gente que propaga o ódio, as consequências são ignoradas: sem imigrantes, o PIB decresceria e a Segurança Social não conseguiria continuar a pagar as pensões.

Muitos dos que se colam à agenda política de André Ventura e Leitão Amaro são os mesmos que, quando a economia definhar, não terão casa nem emprego. E, no caso dos reformados, arriscam-se a ficar com pensões ainda mais miseráveis.

Há um toque de cinismo na escrita da jornalista quando sugere que isso será o que merecerão "para não serem tão grunhos", mas ela própria admite ser desejo que é de bom tom não formular. É uma reflexão que, apesar de dura, sublinha a desconexão entre as posições ideológicas das direitas e a sempre dinâmica realidade económica e social.

quinta-feira, 17 de julho de 2025

O rotundo falhanço da politica de habitação

 

Os números são frios, mas a realidade por trás deles é devastadora. Quando o INE nos diz que o preço mediano das casas em Portugal disparou 18,7% no primeiro trimestre de 2025, em comparação com o ano anterior, não está a falar apenas de estatísticas. Está a falar de um desespero crescente, de famílias que já não conseguem pagar a renda, de jovens que veem o sonho de ter casa própria cada vez mais distante. E, no ponto mais brutal desta equação, está a falar do acelerado aumento das pessoas em situação de sem-abrigo.

Não é por acaso que, enquanto os preços sobem a esta velocidade alucinante, o número de pessoas a viver na rua também dispara. Associações como a AMI e a Remar dão o alarme, confirmando o que os nossos olhos veem nas cidades: mais gente nas ruas, mais famílias desamparadas, e um perfil de sem-abrigo que está a mudar drasticamente, incluindo trabalhadores e jovens que simplesmente não conseguem aceder a um teto. Em 2023, mais de 13 mil pessoas já viviam nesta situação em Portugal Continental. É um falhanço coletivo que devia envergonhar-nos a todos.

É evidente que a tese de que a "mão invisível do mercado" resolve tudo não funciona na habitação. Pelo contrário, tem piorado a situação. Vemos isso com o aumento galopante das rendas, com a especulação a dominar, e com a priorização de interesses económicos em detrimento do direito fundamental à habitação.

As "soluções" que nos são apresentadas pelo governo, embora possam ter algum efeito a longo prazo, parecem ignorar a urgência da crise. Falam-nos de simplificação de licenciamentos e de incentivos à construção, que são importantes, sim, mas cujos efeitos só serão visíveis daqui a anos. E quem não tem onde morar hoje? Quem está a ser despejado amanhã? A gravidade do problema da habitação exige respostas imediatas e corajosas, não um horizonte temporal distante que condena milhares de pessoas à precariedade extrema.

É por isso que as propostas que há tanto tempo vêm das esquerdas tornam-se não só pertinentes, mas urgentes. Precisa-se de um verdadeiro controlo das rendas, que trave esta espiral de aumentos insustentáveis. É fundamental impor restrições eficazes ao Alojamento Local em zonas de pressão, devolvendo casas às pessoas e não aos turistas. Urge o aumento massivo do parque habitacional público, com construção e reabilitação de habitação a custos controlados, para garantir que o direito à casa não é um privilégio, mas uma realidade para todos. E, claro, combater ativamente a especulação imobiliária, taxando-a e acabando com incentivos perversos.

Não podemos continuar a ver os números da crise da habitação a subir sem uma ação decisiva e imediata. Dever-se-ia parar de esperar pela "mão invisível" e de usar a mão visível do Estado para garantir que ninguém fica para trás. 

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Pela Dignidade e o Humanismo em Loures e Amadora

 

É com indignação e sentido de urgência que me associo à voz de mais de uma centena de socialistas – entre deputados, antigos governantes, militantes e simpatizantes – para repudiar veementemente o abate de barracas nos concelhos de Loures e Amadora sem que fossem criadas alternativas habitacionais dignas para as famílias desalojadas.

Como militante do PS, reitero a posição que assumi desde o primeiro momento: este tipo de política contraria frontalmente os princípios socialistas e, mais amplamente, os de uma visão humanista da sociedade.

O Partido Socialista sempre teve como pilar a defesa dos mais vulneráveis e a garantia de condições de vida dignas para todos. A habitação é um direito fundamental, não um privilégio. Assistir à demolição de lares, por mais precários que sejam, sem oferecer uma solução habitacional que assegure a dignidade humana, é uma falha grave que não podemos ignorar.

Não se trata apenas de uma questão de infraestruturas, mas de pessoas, de famílias, de crianças que veem o pouco que têm ser-lhes retirado, ficando à mercê da incerteza e da exclusão social. Onde está a solidariedade que tanto apregoamos? Onde está o apoio social que deve ser a marca da nossa governação?

Exige-se que as entidades competentes revertam estas decisões e deem prioridade à criação de alternativas habitacionais que respeitem os direitos humanos e a dignidade das pessoas afetadas. É imperativo que se encontrem soluções justas e humanas, que passem pela integração e não pela segregação.

O socialismo constrói-se com base na equidade, na justiça social e no respeito pela dignidade de cada indivíduo. Não é admissível que ações como estas manchem o nosso percurso e contradigam os ideais pelos quais lutamos. Impõe a própria Constituição: nenhuma família deveria ficar sem teto e sem esperança.