segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

IVG, turismo, hipercapitalismo e livros a arderem

 

1. No meio do frenesim noticioso, que tende a valorizar o frívolo imediato em detrimento do que tem maior substância e efeitos duradouros, vem passando quase despercebido o sistemático boicote à interrupção voluntária da gravidez no SNS, complementado com relatos de afrontosa desconsideração para com as mulheres, que ali a pretendam concretizar.

Quando, vencendo os preconceitos das direitas e da Igreja Católica, a Assembleia da República derrubou essa barreira, iludimo-nos com a irreversibilidade de tal conquista civilizacional. Afinal não basta relativizar esse otimismo com os recuos verificados nos Estados Unidos por conta dos fanatismo republicano. Também por cá se verifica esse recuo, singularmente numa altura em que as esquerdas alcançaram maiorias confortáveis, que deveriam acautelar a consolidação dessa e doutras conquistas em tempos tidas como fraturantes.

O ministro Manuel Pizarro parece ter ficado genuinamente surpreendido com a notícia. Esperemos que se incumba de a tornar numa espécie de passo atrás, que justifica o salto para os dois adiante, que todo o progresso pressupõe.

2. Desde 2019 o turismo constitui mais de metade das exportações tendo um peso no PIB que é quatro vezes maior que o da Alemanha, superando igualmente os dos principais destinos turísticos europeus.

Seria estulta a atitude de não se aproveitar o providencial maná, que nos tem caído do céu por obra e graça de uma guerra a leste da qual se querem distanciar, tanto quanto possível, os que usufruem as suas férias. Mas mal seria que o governo esquecesse a importância de preparar o futuro imediato, quando essa atividade, polarizada nos setores turísticos e imobiliários, transferir-se-á para outros destinos obedecendo à atração por novas modas.

A riqueza produzida terá de provir de investimentos, que garantam consolidados e menos efémeros retornos.

3. Em entrevista a pretexto do lançamento do seu mais recente título (“Medir o Racismo, Vencer as Discriminações”), Thomas Piketty continua a apostar na alternativa socialista ao ainda dominante hipercapitalismo. Aquele que, segundo dados de 2021, faz com que menos de três mil pessoas possuam 3,5% da riqueza mundial, enquanto mais de 50% da população apenas detenha 2%. Ou que, relativamente a Portugal, o mesmo relatório revele que o “1% constituído pelos mais abonados possuam quase 26% da riqueza, com 10% a serem donos de 61% e 50% a apenas deterem 3,5%. Os 40% das classes médias não conseguem mais de 10% da riqueza individual.

Perante tais desigualdades como acreditar que a marxista luta de classes não continua na ordem do dia?

4. Não será assunto que pareça incomodar quem olha para a guerra na Ucrânia por filtros maniqueístas, mas parece particularmente revelador a depuração - até mesmo a pública queima! - das obras de Tolstoi ou Dostoievski das bibliotecas do país liderado por quem Marcelo agora agraciou com mais do que discutível medalha. É que, na Alemanha dos anos 30, o mesmo sucedeu com os livros associados aos judeus...

1 comentário:

  1. Alguém disse um dia que onde se queimam livros em breve se queimarão pessoas, penso ter sido o poeta alemão Heinrich Heine. Atribuir a Ordem da Liberdade a quem promove tais queimas não pode senão deixar de merecer um repúdio total. É uma atitude que não me representa, como não me representam as recentes e lamentáveis declarações do primeiro-ministro e do seu boy dos estrangeiros.

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