sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

As facetas contraditórias da herança de Mário Soares

 

Cometerei para alguns dos meus camaradas socialistas uma heresia, mas nunca fui um indefetível soarista, embora considere que as comemorações do seu centenário pequem por defeito sabendo-se o quanto o regime em que vivemos a ele tanto deve. Legitimamente bem merece o epíteto de “pai da Democracia” e, no entanto, não gostei nada da forma como andou de braço dado com um confesso espião da CIA (Carlucci) para torpedear o PREC e, nos tempos seguintes, tanto contribuiu para um atávico preconceito anticomunista em muitos militantes do partido.

E, se anos a fio, andou a  contrariar esse pecado freudiano de matar o pai (ou seja o partido onde chegou a militar!), ainda conseguiu discernir num tal Passos Coelho as qualidades que depressa se confirmariam serem só defeitos.

Os últimos anos, aqueles em que mobilizou as fracas forças físicas para contrariar esse passismo, e apoiar a mudança no seu PS, por algum tempo tentado a indecoroso conúbio com a direita, reconciliaram-no com esse passado mais glorioso em que afrontou valentemente o salazarismo e o marcelismo, sofrendo por isso as mágoas da deportação e do exílio.

Incomoda-me por isso que alguém como Sérgio Sousa Pinto ande numa azáfama, aqui e acolá, a vestir-se de viúvo do soarismo como se reivindicasse o estatuto de seu mais fiel continuador.

Como riquíssimo fenómeno político não existe um, mas vários soarismos e cada um - desde esse centro reformista disposto à concubinagem com a direita, como sucede com esse deputado, que nunca percebemos porque o é há tantas legislaturas! - pode encontrar o seu. No caso pessoal adivinho em Soares a lucidez de ter compreendido, antes do próprio Álvaro Cunhal, que a Revolução dos Cravos estava condenada, porque viriam novamente ao de cima os tais defeitos que Almada Negreiros referia como imprescindíveis a todos os povos completos, voltando os portugueses a esquecerem-se de muitas das qualidades, que haviam emergido até ao 25 de novembro de 1975.

No fundo o maior mérito de Soares foi o de colher a sábia lição de Karl Marx segundo o qual não seria avisado forçar a História, quando ainda não estavam reunidas as condições materiais e objetivas para que transitasse para o ciclo seguinte - o da sociedade pós capitalista, que antevia comunista, mas hoje exige a associação dos valores socialistas com os da preservação sustentável do planeta.

Nesse sentido, embora facilmente dado a emoção, tê-lo-á guiado a inteligência de não ter mostrado escrúpulo em travar uma dinâmica, que se revelaria perigosa nos efeitos e contraproducente quanto à possibilidade de, entretanto, pôr os portugueses a viverem bem melhor do que até então.

É por esse facto que lhe devemos tributo! 

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