segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Uma estratégia intencional

Normalmente não costumo dar grande importância ao que diz o filósofo José Gil. Embora muito incensado por uma panóplia de admiradores, que chega a colocá-lo no mesmo patamar de um Eduardo Lourenço, raramente ele diz ou escreve algo de perdurável pela sua pertinência quanto à leitura da realidade.
Mas, porque não há regra sem excepção, até se pode aceitar como adequado o seu diagnóstico na revista «Visão» sobre o estado da Nação: Nunca, como agora, tão numerosas e grandes incertezas minaram a vida dos portugueses. Não controlamos o presente e o futuro - o nosso e o dos nossos filhos, a quem não sabemos se poderemos assegurar mais tarde a educação, uma carreira, um emprego. A cada momento pode surgir na vida de cada um o imprevisto com o rosto do desastre. A incerteza que invadiu todos os aspectos da vida dos portugueses tem este carácter surdo, que se não anuncia mas que se sabe que pode acontecer, imprevisível mas sempre possível.
O desemprego e a perda da qualidade de vida de quase todos nós tem assumido tal dimensão, que até Cavaco Silva veio demonstrar como o impensável se torna possível, com o caso concreto do queixume quanto às suas “exíguas” remunerações.
Querem-nos, porém, enganar com as mais falaciosas explicações - ora fomos uns gastadores viciados em consumo, ora fomos vitimas de um governo incapaz, ora devemos ajudar os accionistas da Banca a recuperarem os créditos perdidos em negócios ruinosos - que visam convencer-nos da inevitabilidade dos esforços, que nos são impostos por tenebrosas troikas.
Mas, na mesma revista, Áurea Sampaio, que tanto se distinguira em condenar as políticas de José Sócrates, já não encontra ponta por onde se pegue na governação de Passos Coelho identificando-lhe até uma intencionalidade orientada para ínvios objectivos: Eis o roteiro de uma governação cuja imagem de marca é, também, o discurso mais depressivo de que há memória. E o normal era que o não fosse, apesar da crise e das dificuldades. Esse discurso, que não é normal nem natural, não deve ser confundido com um discurso de verdade, porque obedece a uma estratégia.
Por agora ela parece surtir efeito: perante tantas vilanias, que lhes vêm fazendo, os portugueses acomodam-se num conformismo de quem já nada crê de diferente em relação ao que lhe vendem em mensagens milhentas vezes repetidas pelos corifeus da maioria. Daí que o Governo ainda mantenha sondagens favoráveis, que espantam os mais lúcidos por irem a contracorrente do que seria lícito imaginar. Fosse Sócrates a legislar uma pequena parcela do que este Governo tem publicado em desfavor de quem trabalha ou está reformado, e já teríamos uma insurreição imparável nas ruas.
Para Pedro Camacho existe, ainda, o benefício da dúvida quanto á possibilidade de o Governo não compreender tudo quanto está em jogo. E até reitera o que muitos já começam a constatar: não é só a esquerda a propor uma outra política baseada no crescimento e na criação de emprego, como forma de sair deste atoleiro. Nesta altura até a fundamentação da agência de rating, que mais recentemente atirou para a categoria de «lixo» a dívida portuguesa se confunde com o texto de um Daniel Oliveira:
O Governo não está apenas a esticar a  corda, parece apostado em parti-la. Ou então, ainda não percebeu o que está a acontecer. Ao contrário da Standard & Poors, que não só percebeu como já tirou também as devidas ilações. Aquelas de que Gaspar, não aceitando a substância, percebe muito bem a forma: o risco de desemprego generalizado e de conflito social, resultando de uma austeridade sem perspectivas de crescimento, colocam Portugal numa zona de alto risco, levando a nossa dívida pública para o nível do «lixo», do «investimento especulativo».
Foi Carvalho da Silva, em vias de se despedir da liderança da CGTP, quem indignou o Ministro da Solidariedade Social, quando o incitou a comparar a sua actuação com a dos colaboracionistas franceses entre 1940 e 1945. Ter-lhe-á dito: Páre um bocadinho e vá ler os discursos dos governantes do Governo de Vichy, do período de ocupação nazi. Noutro tempo, teríamos aqui uma ocupação militar.
Mas é o mesmo dirigente sindical quem reconhece a incapacidade da esquerda em encontrar um discurso público eficaz na apreensão pela grande maioria dos descontentes, lamentavelmente atraídos pelo populismo mais à direita:
A direita e a extrema-direita estão sempre em vantagem, porque não têm de esclarecer. Usam a manipulação para vender populismo. A esquerda não pode fazê-lo. Não há soluções à esquerda na base de slogans ou soundbytes. As soluções passam por imensa discussão, confronto e diálogo. As pessoas têm de ser ganhas para ouvir. Pensar dá trabalho…
Isso mesmo se constata na Hungria, aonde são os defensores de políticas fascistas quem mais estão a ganhar com as pressões democratizadoras da União Europeia contra as políticas autoritárias do presidente Orban, como o constata o sociólogo Antal Orkeny: A crise está a atingir em cheio a classe média e a deixar os pobres sem protecção social. A extrema-direita ganha cada vez mais apoios entre estas pessoas (, Visão)
E até em França Marine Le Pen ameaça imitar o progenitor na passagem à segunda volta das próximas presidenciais restando saber se levará consigo Sarkozy ou Hollande. Por agora a militância dos seus apoiantes vai-se fazendo à porta do Teatro do Rond Point aonde uma peça é vista como blasfemadora, e como tal passível de censura. Que no país da revolução emancipadora, que deu corpo à importância da liberdade de expressão do pensamento, estas manifestações são reveladoras de um aproveitamento inquietante das incertezas do presente por quem mais por elas deveria ser arrasado.

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