Clarifiquemos desde o princípio: nunca simpatizei com Michel Rocard cujo percurso político me pareceu sempre errático, ora à esquerda (raramente), ora à direita (quase sempre) da linha oficial do Partido Socialista Francês.
No entanto, a idade tem o condão de dar sapiência a uns quantos protagonistas políticos que, já sem a ambição de virem a conquistar postos relacionados com o poder, se sentem libertos de constrangimentos e peroram sobre o quanto viram e o estão a ver na sociedade dos nossos dias. Acertando numas, errando noutras como é aqui o caso.
Nesse enquadramento vale a pena determo-nos na entrevista desse ex-primeiro-ministro francês recentemente publicada no Nouvel Observateur, em considera urgente a transformação da presente realidade por se mostrar tão dissonante com o interesse colectivo dos europeus: A moralização das nossas sociedades é uma exigência, já que a sobrevivência da nossa organização social depende da recolocação da finança no seu devido espaço. Mas, atenção, não há sociedade produtiva sem finanças eficientes. Só que relegá-la para onde ela deve estar não é fácil. A lembrá-lo basta atermo-nos na intensa resistência do sector quando Roosevelt impôs a Lei Glass-Steagall, que separava os bancos de depósitos dos de investimentos, medida devido à qual vivemos sessenta anos sem crise financeira mundial. E já então os bancos tinham mais lucros na especulação do que na gestão de depósitos.
Estamos, pois, situados no mesmo paradoxo em que Rocard se situava há trinta anos atrás, quando as nacionalizações eram um imperativo da frente comum liderada por François Mitterrand e ele se opunha com o argumento da necessidade de uma sociedade descentralizada política e economicamente. Rocard sabe que o grande entrave à alteração da sociedade injusta em que nos situamos passa por um controle dos bancos, que se dedicam aos jogos da especulação, mas reconhece a dificuldade da tarefa. E acredita que eles próprios aceitarão a mudança face ao risco que se perfila:
O risco de explosão continua de pé e a possibilidade de crise das dívidas soberanas europeias só lhe servirá de pequeno detonador. Mas, paradoxalmente, parece que, finalmente, os mercados também começam a recear o crash e começam a exigir mais regulação.
Se vamos acreditar na «racionalidade» dos mercados para assegurar a mudança, bem podemos esperar sentados! Neste sentido Rocard mantém uma linha de pensamento coerente com o seu percurso passado de não fazer ondas, que assustem os senhores do capital. Mas é precisamente por continuar a personificar uma voz de defesa dos interesses destes últimos, que o seu alerta sobre a estratégia de combate à crise ganha maior ênfase. Porque ele diz aquilo que a maioria dos observadores mais lúcidos sobre o estado das coisas, anda a defender há muito tempo: Qualquer ideia de pagar a dívida em condições que enfraquecem o crescimento e provocam a recessão é irracional, porque amputa a possibilidade de continuar a pagar a dívida. É preciso inventar o equilíbrio entre o pagamento da dívida e a manutenção da despesa pública necessária a manter o poder de compra e o investimento.
É claro que se torna mais fácil subscrevermos as ideias de Rocard, quando expõe o tipo de sociedade, que defende. Porque viver com maior qualidade de vida, menos escravizados aos ditames de uma sociedade de exploração do homem pelo homem, continua a fundamentar a perspectiva de uma utopia social exequível em que o direito à felicidade constitua um objectivo colectivamente alcançado. O tal amanhã que canta!
É nessa lógica que ele conclui: Trata-se de construir uma sociedade menos mercantil e cúpida, menos energívora e dispondo de mais tempo livre. É preciso suscitar práticas culturais e desportivas mais massivas. Redescobrir o tempo para a família, as relações de amizade e associativas. Não é indigno não trabalhar quando se sabe dar sentido ao tempo livre. Paul Lafargue já o dizia em 1902, quando defendia o direito á preguiça. E Keynes, em 1930, em plena crise, dizia: «antes do fim do século, bastarão três horas de trabalho assalariado por dia para que a humanidade provenha às suas necessidades» e «mas quando vejo o que as pessoas abastadas fazem do seu dinheiro, pergunto-me se não deveremos temer uma depressão nervosa universal». Estamos mergulhados nela.
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