domingo, 14 de setembro de 2025

O Ricochete da Incompetência

 

Cem dias de governo de Luís Montenegro bastaram para confirmar o que muitos já suspeitavam: as direitas portuguesas não têm ponta por onde se lhes pegue. Os principais problemas que os governos de António Costa não tinham conseguido resolver – na saúde, na habitação, na educação – não só se mantêm como estão visivelmente piores. E se a competência dos ministros socialistas nunca esteve verdadeiramente em causa, a indigência atroz dos atuais titulares das pastas é de tal ordem que faz ter saudades até dos tempos mais conturbados da anterior governação.

Esta realidade expõe a natureza profundamente cínica da operação que levou à queda do governo socialista. Ano e meio depois da conjura judicial com origem na Procuradoria-Geral da República – apoiada por Marcelo e por uma imprensa abocanhada pelo grande capital –, os autores da façanha começam a deparar-se com o ricochete da sua estratégia golpista. Porque uma coisa é derrubar um governo, outra muito diferente é ter algo para pôr no seu lugar.

À semelhança do que Carlos Moedas faz em Lisboa, Montenegro tenta iludir os incautos com paliativos enganadores, como os recentes benefícios atribuídos aos reformados. São migalhas lançadas na expectativa de aguentar mais uns tempos nos cargos e beneficiar a sua base social de apoio, particularmente através de uma legislação laboral a contento dos patrões. Mas esta estratégia pode trazer-lhes grandes dissabores se os sindicatos da CGTP e da UGT se unirem num grande movimento grevista com potencial para pôr a andar a ministra do Trabalho.

O problema das direitas portuguesas é estrutural: não têm visão de futuro para o país, enredam-se nas suas próprias intrigas e não transmitem a mínima confiança a quem anseia por um país mais próspero e justo. Limitam-se a gerir o dia-a-dia com expedientes e a distribuir benesses pelos seus apoiantes, enquanto os problemas reais se agravam.

Esta incompetência não é casual – é o resultado lógico de uma mentalidade que vê a política como oportunidade de negócio e não como serviço público. Quando se chega ao poder através de expedientes judiciais e mediáticos em vez de propostas consistentes, o resultado só pode ser a mediocridade que agora se exibe sem pudor.

Enquanto em Portugal assistimos a este espetáculo deprimente, outros países mostram que é possível manter os princípios democráticos mesmo em tempos difíceis. O Supremo Tribunal brasileiro acabou de condenar Bolsonaro a justa pena de prisão, numa demonstração de que a legalidade democrática pode sobrepor-se aos intentos fascistas. Quatro juízes íntegros – alguns deles até com passado vinculado à direita – não deixaram de ser fiéis à Constituição e decidiram de acordo com o que ela impõe.

Que contraste com os nossos juízes e procuradores golpistas, que nem sequer dão mostras de ter argumentos suficientes para dar substância a tudo de quanto acusaram José Sócrates. Enquanto a justiça brasileira se distingue pela coragem e pela coerência constitucional, a portuguesa distingue-se pela subserviência aos poderosos e pela incapacidade de fundamentar as suas decisões mais mediáticas.

Este contraste revela algo fundamental: a qualidade das instituições democráticas não depende apenas das leis, mas sobretudo da integridade de quem as serve. No Brasil, juízes conservadores puseram a Constituição acima das suas preferências ideológicas. Em Portugal, magistrados supostamente impolutos puseram os seus cálculos políticos acima do rigor jurídico.

Nos Estados Unidos, a situação é ainda mais preocupante. A morte recente de um trumpista ultraconservador no Estado do Utah é apenas mais um episódio na escalada de violência que Trump polarizou de tal forma que tende a multiplicar o sangue derramado – tanto dos que se lhe opõem como dos que o apoiam.

Ao contrário do que aconteceu no Brasil, onde as instituições resistiram aos ataques antidemocráticos, Trump conseguiu capturar parte significativa do sistema judicial e político americano. A sua deriva autocrática não encontra os travões institucionais que funcionaram em Brasília, e o resultado é uma sociedade em polvorosa com um "xerife" que se julga nos tempos do Faroeste.

Esta comparação internacional é esclarecedora: mostra como a qualidade da democracia depende da firmeza das suas instituições e da integridade de quem as dirige. No Brasil, as instituições resistiram; nos Estados Unidos, foram capturadas; em Portugal, foram instrumentalizadas.

Há um fio condutor que liga estas três realidades: a crise das instituições democráticas quando são postas ao serviço de interesses particulares em vez do bem comum. Em Portugal, a justiça foi instrumentalizada para derrubar um governo; nos Estados Unidos, foi capturada para proteger um autocrata; no Brasil, resistiu a ambas as tentações.

O resultado está à vista: onde as instituições foram corrompidas, a governação tornou-se incompetente e a violência política aumentou. Onde resistiram, a democracia saiu fortalecida. A lição é clara: as instituições democráticas ou servem todos os cidadãos ou acabam por não servir ninguém.

Montenegro e os seus ministros são a prova viva desta verdade. Chegaram ao poder através de expedientes antidemocráticos e mostram todos os dias que não têm capacidade para o exercer. Como diz o ditado, quem vai à guerra dá e leva. E quem mina a democracia para chegar ao poder acaba por descobrir que não sabe o que fazer com ele. 

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Oportunismo em vez de responsabilidade

 

O acidente com o elevador da Calçada da Glória, que deixou várias vítimas — muitas delas turistas de diferentes nacionalidades — não foi apenas um episódio local. Teve repercussão internacional, manchando a imagem de Lisboa como cidade segura e bem gerida. Era, portanto, um momento que exigia responsabilidade, transparência e liderança firme por parte dos responsáveis políticos. Em vez disso, assistimos a um espetáculo de oportunismo protagonizado por Carlos Moedas, presidente da Câmara Municipal de Lisboa.

De todos os intervenientes políticos, foi Moedas o único que tentou capitalizar politicamente sobre o acidente. Fez-se convidar para um Conselho de Ministros onde nada havia a decidir sobre o sucedido, numa manobra que parece mais destinada a alimentar manchetes do que a resolver problemas. A sua presença não trouxe esclarecimentos, soluções ou medidas concretas — apenas mais ruído mediático. Depois passeou-se com Marcelo e Montenegro pelo cenário da tragédia seguida da absurda missa em que teve a oportunidade de assumir a pose compungida, que julga garantir-lhe votos nas temidas eleições, não só pelo pífio legado deixado a quem vier a seguir, mas sobretudo por quanto pode significar o seu definitivo ocaso politico.

Este comportamento contrasta com a postura que o próprio Moedas adotou no passado. Foi célere, quase impaciente, a exigir a demissão de Fernando Medina por motivo fútil,  desproporcionado. Agora, perante um acidente grave envolvendo uma empresa sob a sua tutela, não aplica a mesma bitola. Não há pedidos de demissão, não há assunção de responsabilidade — apenas silêncio e encenações.

Mais grave ainda é a tentativa de se colocar no papel de vítima. Em vez de prestar contas, Moedas aparece a "exigir respostas", como se fosse um mero espectador e não o presidente da autarquia responsável. Essa inversão de papéis é não só desonesta como profundamente reveladora: quem deveria estar a averiguar e esclarecer é precisamente quem se escuda atrás de indignações encenadas.

Carlos Moedas, homem de pequena estatura física, revela ser ainda menor na estatura moral. A liderança exige coragem, transparência e responsabilidade — não encenações, fugas e oportunismo. Lisboa merece mais do que um presidente que se esconde quando devia enfrentar. 

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

O alívio térmico e a incompetência perene

 

Esta semana promete um alívio das temperaturas, descendo finalmente abaixo dos 30 graus. É uma boa notícia para os bombeiros, verdadeiros heróis nacionais cujos esforços sobre-humanos, e por vezes o sacrifício final, têm sido a única barreira entre a tragédia e a população. Enquanto o país respira aliviado com a meteorologia, outro tipo de alívio, bem mais questionável, será certamente sentido em certos círculos do poder.

Para Luís Montenegro e a sua equipa, o arrefecimento do tempo é uma bênção disfarçada. Os dias que se seguiram à festa no Pontal revelaram, num ricochete de consequências amargas, a ligeireza e a incompetência com que exercem esta (des)governação. Afastado o espectro dos incêndios, o governo pode agora regressar à estratégia preferida: a manipulação da opinião pública, na esperança de conseguir um resultado auspicioso nas próximas autárquicas. Contudo, a prova final está marcada no calendário: as chuvas de finais de setembro. Se forem copiosas, exporão de forma crua a irresponsabilidade de um executivo que nada fará para acautelar as enxurradas, deixando encostas rapadas de vegetação à mercê da força das águas. Em São Bento, multiplicar-se-ão as rezas aos santinhos, na esperança de que a sorte não lhes escape e esta frágil perspetiva de sucesso não se estrague de vez.

Para quem anseia pela mais do que previsível queda em desgraça deste elenco governativo, e pelo regresso de uma esquerda capaz de fazer um trabalho melhor, importa não alimentar ilusões. A história recente ensina-nos que a permanência no poder não é só decidida pela competência. António Costa resistiu à tragédia de Pedrógão Grande em 2017, apesar da contínua sabotagem de Marcelo Rebelo de Sousa, da ação de setores do Ministério Público e de uma imprensa conluiada no seu derrube.

Agora, Montenegro beneficia de um cenário radicalmente oposto. Tem um inquilino de Belém pródigo em elogios tão injustificados quanto eram ferinas as críticas aos governos socialistas. Tem um Procurador-Geral da República, o "amigo Amadeu", a refrear a curiosidade dos magistrados mais diligentes sobre as Spinumvidas e outros dossiês sensíveis. E conta com uma imprensa maioritariamente alinhada com a sua causa. Com este colete salva-vidas de instituições, o Primeiro-Ministro pode iludir-se com uma sensação de estabilidade.

Engana-se, claro. A questão de fundo permanece: ele e os que arregimentou são de uma falta de qualidade lastimável. A sua gestão é tão pobre, tão desprovida de visão e preparação, que a estratégia mais sensata é simplesmente deixá-los pousar. Os casos, as falhas, as tragédias decorrentes da sua incompetência irão, mais cedo ou mais tarde, emergir. E serão esses episódios, e não a oposição, sobretudo a mansinha da atual liderança socialista, que confrontarão os que neles votaram com a insensatez da sua opção. O alívio térmico é passageiro; o calor da sua incompetência é perene e acabará por os consumir. 

sábado, 23 de agosto de 2025

Os equívocos dos “safáris ecológicos”

 

Uma reportagem do canal Arte foi bastante esclarecedora: muitos dos parques africanos perderam a inocência de estarem vocacionados para a preservação da vida selvagem e converteram-se em operações comerciais focadas, sobretudo, no lucro proporcionado pelos turistas vindos do Hemisfério Norte para os supostos safáris ecológicos. Se há a vantagem de dissuadirem os caçadores furtivos, que dizimaram elefantes ou rinocerontes por causa do marfim dos dentes ou das equívocas propriedades afrodisíacas dos cornos, é um facto que esses parques nada trazem às populações circundantes, que até os veem com o rancor equivalente à sua crescente pobreza.

Esta é uma das contradições mais complexas da conservação moderna em África, onde a proteção da vida selvagem entrelaça-se com dinâmicas económicas e sociais profundamente desiguais.

Os parques naturais africanos nasceram, em grande parte, durante o período colonial, quando as autoridades europeias estabeleceram áreas protegidas seguindo modelos ocidentais que raramente consideravam as necessidades e tradições das comunidades locais. Décadas depois da independência, muitos destes espaços mantêm uma estrutura que privilegia os visitantes estrangeiros, perpetuando um modelo de "conservação de fortaleza" que exclui as populações autóctones.

O turismo de safáris, embora gere receitas significativas, cria frequentemente um sistema económico paralelo onde os benefícios fluem principalmente para operadores internacionais, hotéis de luxo e guias especializados, enquanto as comunidades rurais adjacentes permanecem marginalizadas. Esta situação é particularmente perversa porque muitas destas comunidades foram historicamente deslocadas das suas terras ancestrais para darem lugar aos parques.

A questão da caça furtiva ilustra bem esta complexidade. Enquanto os turistas pagam milhares de euros para fotografarem um elefante, um jovem local pode ver no marfim desse mesmo animal uma oportunidade de escapar à pobreza extrema. As redes internacionais de tráfico exploram esta vulnerabilidade, oferecendo quantias que, embora insignificantes no mercado final, representam fortunas para quem não tem alternativas económicas viáveis.

Alguns países tentaram implementar modelos mais inclusivos, onde as comunidades locais tornam-se parceiras na conservação através de programas de partilha de receitas ou gestão comunitária de recursos naturais. No Quénia, por exemplo, algumas entidades privadas trabalham diretamente com as comunidades masai, enquanto na Namíbia deram-se às populações locais direitos de gestão sobre a vida selvagem das suas terras.

Contudo, estes modelos alternativos enfrentam desafios enormes: pressão demográfica crescente, alterações climáticas que afetam tanto a vida selvagem como a agricultura de subsistência, e a necessidade de equilibrar a conservação com o desenvolvimento económico sustentável.

A verdadeira sustentabilidade da conservação africana passaria por repensar estes modelos, garantindo que a proteção da biodiversidade se tornasse não apenas compatível, mas fundamental para a melhoria das condições de vida das populações locais. Só assim se poderia quebrar o ciclo de ressentimento e exclusão que, paradoxalmente, ameaça a própria conservação que se pretende alcançar. 

domingo, 17 de agosto de 2025

A luta entre o velho e o novo

 

Em 1932, Walter Benjamin chegou a Ibiza em busca de refúgio. Fugia da Berlim sombria, onde a crise económica e o avanço do nazismo anunciavam tempos de catástrofe. Naquela ilha, longe do turbilhão alemão, Benjamin refletiu sobre a luta entre o antigo e o moderno, entre o capitalismo decadente e o socialismo ainda frágil, mas portador de uma promessa de futuro. A sua análise, enraizada no materialismo histórico, via naquele embate não apenas uma disputa económica, mas uma guerra de temporalidades: o passado que se agarra ao poder e o futuro que insiste em nascer, mesmo sob os escombros da crise.

Quase um século depois, Portugal (e o mundo) vive um conflito semelhante. O capitalismo global, envelhecido e disfuncional, recusa-se a morrer, financiando extremas-direitas que prometem restaurar uma ordem que já não existe — ou que só existiu para uns poucos. O espectro do fascismo reaparece, não como novidade, mas como último recurso de um sistema que vê as suas bases a desmoronarem-se. A habitação inacessível, a saúde privatizada, a educação precarizada e o emprego inseguro são sintomas de uma crise que não é apenas económica, mas civilizacional.

Benjamin alertou para o perigo de uma modernidade que, em vez de emancipar, reproduz as mesmas opressões sob novas roupagens. Hoje, assistimos a uma falsa modernidade: a dos governantes que fazem festas enquanto o país arde, a dos demagogos que vendem soluções autoritárias para problemas que eles próprios aprofundaram. O "novo" que eles oferecem não passa do velho disfarçado — mais violência, mais desigualdade, mais desespero.

Mas se o passado insiste em persistir, onde está o verdadeiro novo? Para Benjamin, a esperança estava nos oprimidos que, ao tomarem consciência da sua condição, poderiam romper o continuum da história. Em Portugal, essa força só pode vir dos jovens — não dos conformados, mas daqueles que, como os seus avós em 1974, perceberem que a liberdade não se conquista com promessas vazias ou com a brutalidade fascista. Quando entenderem que a solução não está nem nos que os asfixiam com falsos liberalismos nem nos que lhes prometem ordem à custa da democracia, talvez então o novo possa emergir.

O socialismo — não como dogma, mas como projeto de justiça e dignidade — continua a ser a única alternativa capaz de responder às crises do presente. Benjamin sabia que a história não é linear: há avanços e recuos, mas a luta nunca cessa. Se o velho mundo insiste em arrastar-nos para o abismo, caberá às novas gerações empurrá-lo, de vez, para as catacumbas da História. Para que, como diria Benjamin, os "amanhãs que cantem" deixem de ser uma utopia e se tornem, finalmente, uma possibilidade tangível.

O futuro não está garantido — terá de ser conquistado. 

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Quando a incompetência é rotina

 

No mesmo dia em que uma jovem grávida dava à luz na via pública, abandonada pelo 112, também enfrentei o desespero de um sistema de saúde que já não responde. Enquanto aquela família improvisava um parto na rua, eu estava do outro lado do telefone, à espera que a Linha Saúde 24 decidisse atender a minha chamada. Quinze minutos de mensagens automáticas, repetidas como uma zombaria, enquanto a Elza sofria com uma infeção urinária que exigia ação imediata.

Felizmente, consegui ajuda fora do sistema – amigos médicos que resolveram em minutos o que o Estado, com os seus serviços falhados, não foi capaz de fazer. Mas e quem não tem essa sorte? E aquela jovem que pariu no asfalto, sem um profissional por perto?

O que mais revolta não é apenas a incompetência, mas a hipocrisia de quem hoje governa. Quando estavam na oposição os mesmos, que hoje calam-se perante o colapso da Saúde eram especialistas em escândalos mediáticos. Nos tempos do PS qualquer falha mínima era motivo para exigências de demissões, protestos estridentes e manchetes inflamadas.

Agora? Silêncio. A ministra da Saúde, invisível e inoperante, agarra-se ao cargo como quem teme perder as mordomias e os tachos para os amigos. Enquanto isso, os portugueses sofrem: esperam horas nas urgências, desistem de chamadas que nunca são atendidas, e veem-se obrigados a resolver sozinhos crises que deveriam ser assistidas pelo Estado.

O mais triste é a resignação. O povo que os colocou no poder aguenta e cala, mesmo quando a revolta seria mais do que justificada. Onde estão os protestos? Onde está a indignação coletiva que antes se via aos primeiros sinais de falha?

Enquanto não houver consequências reais para quem desgoverna, nada mudará. Continuaremos a ver jovens a parir na rua, doentes a esperar eternamente por uma resposta, e um Ministério da Saúde que funciona como um fantasma – presente nos orçamentos, ausente na vida das pessoas.

Até quando? 

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

O Silêncio Depois da Tempestade

 

Nas últimas semanas, mantive-me em silêncio. Não por indiferença ou resignação, mas numa espécie de exercício contemplativo – deixar a poeira assentar depois da recente eleição que penalizou aquele que seria o mais competente líder para a governação do país.

Quando olho para a mediocridade manifesta de Luís Montenegro e a comparo com as inequívocas qualidades de Pedro Nuno Santos, é genuinamente penoso constatar como o eleitorado seguiu, mais uma vez, aquela regra perversa que também vigora noutras geografias: escolher invariavelmente o mais rasca, desde que seja mais manhoso na habilidade ancestral de enganar os incautos.

Não estou sozinho nesta leitura. Rodrigo Sousa Castro, capitão de Abril e figura incontornável da nossa democracia, não hesita em classificar o atual executivo como um "governo de trogloditas sociais a reboque dos fachos do Chega". Do mesmo modo, o professor Nobre Correia vê neste elenco governativo um conjunto de figuras que, se tivessem vivido noutro tempo, teriam sido "dedicados lambe-botas do salazarismo". Palavras duras, mas que espelham uma realidade que muitos preferem ignorar.

O próprio Marcelo, que tanto conspirou nos bastidores para erradicar os socialistas do poder, deve estar agora a dar tratos à cabeça perante a constatação de como o almejado governo da "sua gente" pode revelar-se tão manifestamente mau. Porque a verdade crua é esta: em todas as áreas, absolutamente todas, tudo piorou. Na saúde, na educação, na habitação. E o mais inquietante é não se sentir ainda a vaga de fundo de um protesto coletivo que dê uma noção clara de que se sentem enganados aqueles que optaram por aquilo que agora vigora.

Todos os dias, sistematicamente, surgem notícias que evidenciam como as políticas de extrema-direita agora em implementação só tendem a agravar o que já era manifestamente mau. No Público de hoje, Ulisses Garrido insurge-se, muito justamente, contra um dos aspetos menos divulgados da celerada reforma laboral: a redução do dever das entidades patronais em proporcionarem formação profissional aos seus trabalhadores, de forma a capacitá-los com maiores competências. Em vez de apostar na melhoria da produtividade de quem trabalha, este (des)governo prefere remetê-los à condenação perpétua de nunca passarem da cepa torta.

E há exemplos ainda mais eloquentes desta incompetência criminosa. No dia imediato a morrerem 350 animais no incêndio de uma pecuária em Santarém, o governo elimina a obrigatoriedade legal de existirem sistemas de deteção de incêndio nessas explorações. A ironia macabra desta decisão dispensa comentários.

Infelizmente – e digo-o como socialista de há quatro décadas com as quotas em dia – temos hoje uma direção que não desejaria ter. Precisamente quando mais necessitaríamos de uma liderança forte, destemida, sem medo de chamar os bois pelos nomes, cabe-nos uma liderança "moderada", desejosa de conciliábulos com quem não os quer, nem tão pouco os merece.

Esta é a nossa realidade: um país entregue à mediocridade governativa, enquanto a principal força de oposição se debate com liderança tíbia que confunde moderação com capitulação. Resta-nos a esperança de que o povo, mais cedo ou mais tarde, desperte desta letargia coletiva e exija o que mais precisa: competência, seriedade e verdadeiro compromisso com o interesse público.

Até lá, o silêncio já não é opção. É tempo de falar alto e de dar o devido troco a quem o merece. 

quinta-feira, 31 de julho de 2025

Os Predadores e a Lógica da História

 

Depois de desvendar-nos os labirintos do Kremlin e as intrincadas teias digitais dos "Engenheiros do Caos", Giuliano da Empoli aprofunda, em "A Hora dos Predadores", uma análise que, embora pertinente, entra numa espiral de pessimismo cada vez mais acentuada. Os pressupostos de Empoli sobre a fragilidade das democracias ditas liberais e a inevitabilidade da ascensão de regimes autoritários, que operam com a lógica da força e da manipulação, são, sem dúvida, perturbadores e encontram eco em muitos eventos contemporâneos. A perspetiva sobre a "política da emoção" e a erosão da verdade é uma lente poderosa para compreender o cenário atual.

No entanto, vale a pena relativizar até que ponto esses pressupostos são omnipresentes ou inelutáveis. A análise de Empoli, ao focar-se na eficácia das estratégias dos "predadores", corre o risco de subestimar a resiliência das sociedades civis e a capacidade de reação das próprias democracias, ainda que tardia. O pessimismo latente que transparece em "A Hora dos Predadores" sugere uma espécie de marcha inexorável para um cenário onde a manipulação e o autoritarismo dominam, questionando a própria capacidade de contraofensiva das forças que defendem os valores democráticos.

Mas a História, essa velha mestra, não ensina uma lição fundamental? Mesmo quando um determinado poder, por mais absoluto e avassalador pareça ser, atinge o auge de força, é precisamente nesse momento que as condições para o seu esgotamento e eventual colapso já começam a acentuar-se. A hegemonia excessiva, a rigidez na aplicação do poder, a incapacidade de adaptar-se ou de escutar vozes dissonantes – tudo isso, paradoxalmente, semeia as sementes da própria destruição. Impérios caíram, ditaduras ruíram, e mesmo regimes totalitários aparentemente inquebrantáveis acabaram por ruir sob o peso das contradições internas, da exaustão dos povos ou da emergência de novas realidades que não conseguiram controlar.

A "Hora dos Predadores" é um espelho útil para os perigos que enfrentamos, mas talvez a maior esperança não esteja na negação do seu diagnóstico, mas na lembrança de que nenhum poder é verdadeiramente invencível. A própria natureza do sistema que Empoli descreve, assente na volatilidade das emoções e na constante necessidade de criar novos "inimigos" e "caos", pode ser a sua maior fraqueza a longo prazo. A exaustão da própria narrativa, a desconfiança que se instala quando a manipulação é desmascarada vezes demais, ou simplesmente o desejo humano por autenticidade e estabilidade, podem ser as forças que levarão os "predadores" a encontrar o seu próprio limite. E essa é uma lição que a História, por mais que Empoli se debruce sobre o presente, continua a sussurrar.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Quando as Palavras Servem o Poder

 

Sandra Guerreiro tem razão quando afirma, em “A Esquerda”, que as palavras e os rótulos nunca são neutros. A escolha entre "direita radical" e extrema-direita, entre "populistas" e fascistas, não é um capricho semântico – é uma operação política deliberada que visa normalizar o inaceitável e tornar palatável o que deveria repugnar qualquer democrata.

Esta manipulação linguística não é exclusiva da política nacional. Aplica-se igualmente à forma como o Ocidente trata o genocídio em curso na Palestina, onde "operação militar" substitui massacre, "colonos" substitui criminosos de guerra, e "complexidade do conflito" substitui cumplicidade com o extermínio. A morte de Awdah Hathaleen, uma das vozes centrais do documentário "No Other Land", assassinado por um colono israelita, é apenas mais um exemplo desta violência sistémica que a linguagem diplomática teima em camuflar.

Quando a direita tradicional decide apropriar-se das bandeiras que até há pouco eram exclusivas da extrema-direita, não está a radicalizar-se por acaso. Está a implementar uma estratégia calculada de sobrevivência política que passa por absorver o discurso fascista como antídoto à própria irrelevância.

A observação de Sandra Guerreiro é certeira: este assalto ao poder começou há muito, e a estratégia passa precisamente por tornar "normal" o que era considerado extremo. Quando ouvimos a candidata à liderança da Iniciativa Liberal admitir que foram "demasiado tecnicistas" e que é preciso "explicar as coisas de forma mais simples", assistimos em direto a esta operação de domesticação do populismo.

A simplificação não é inocência – é cálculo. Transformar argumentos políticos em chavões e frases feitas serve para camuflar as verdadeiras linhas de força dos projetos políticos. E é particularmente perverso quando vem de quem se arroga defender a "liberdade" enquanto promove um Estado mínimo que, na prática, maximiza a liberdade dos mais poderosos para explorarem os mais vulneráveis.

Esta manipulação linguística encontra o seu exemplo mais grotesco na forma como o Ocidente trata Israel. Como escreve Caitlin Johnstone, os apoiantes de Israel "vão mentir, vão manipular, vão fingir acreditar em coisas em que não acreditam" para facilitar "algumas das piores atrocidades que se possa imaginar".

E é exatamente isso que vemos todos os dias: uma máquina de propaganda que transforma vítimas em agressores, que chama "terroristas" a crianças palestinianas e "direito à defesa" ao massacre sistemático de civis. O assassinato de Awdah Hathaleen – documentarista que mostrava ao mundo a realidade da ocupação – é emblemático desta violência que se esconde atrás de eufemismos.

Hathaleen era uma das vozes que desmontava a narrativa oficial israelita, mostrando a brutalidade quotidiana da ocupação. A sua morte não é um "incidente isolado" – é o resultado lógico de um sistema que funciona através da eliminação física de quem ousa contar a verdade.

A linguagem não é apenas um meio de comunicação – é um instrumento de poder. Quando permitimos que "extrema-direita" se torne "direita radical", quando aceitamos que "genocídio" se transforme em "operação defensiva", estamos a ceder terreno fundamental na batalha pelas ideias.

Esta não é uma questão académica ou de correção política. É uma questão de sobrevivência democrática. Porque quando as palavras perdem o significado, quando a linguagem torna-se uma ferramenta de ocultação em vez de revelação, ficamos indefesos perante a manipulação e a mentira sistemática.

A morte de Awdah Hathaleen deveria ser um escândalo internacional. Em vez disso, será provavelmente arquivada como mais um "incidente" na "complexa situação" do Médio Oriente. As aspas não são minhas – são da linguagem diplomática que serve para branquear crimes e tornar aceitável o inaceitável.

Sandra Guerreiro aponta para algo fundamental: a necessidade de questionar as alterações graduais da linguagem e perceber o que está por detrás delas. Não podemos aceitar passivamente que os fascistas se transformem em "populistas", que os criminosos de guerra se tornem "colonos", que o genocídio vire "operação militar".

Cada cedência linguística é uma vitória dos que querem normalizar o horror. Cada eufemismo aceite é um passo em direção à banalização da violência. E quando chegamos ao ponto em que documentaristas são assassinados por mostrarem a verdade, percebemos que já não se trata apenas de semântica – trata-se de vida e morte.

A linguagem pode ser uma arma ao serviço do poder, mas também pode ser uma ferramenta de resistência. Depende de nós escolher que lado servimos: o da clareza que liberta ou o da confusão que oprime. 

terça-feira, 29 de julho de 2025

A Subversão da Democracia

 

Giuliano da Empoli, com "O Mago do Kremlin", ofereceu-nos uma janela perturbadora para as entranhas do poder russo, personificando a manipulação e a construção de realidades através da figura enigmática de Vadim Baranov. Este, um ex-produtor de reality shows, transformado em eminência parda de Putin, orquestra um teatro político onde a verdade é maleável e a emoção, a moeda corrente. Mas, ao virar as páginas, a inquietante pergunta que me assaltava era: será que esta narrativa, por mais distópica que pareça, não encontra um eco ainda mais alarmante na política ocidental, nomeadamente no trumpismo? E, nesse caso, não estaremos perante uma caricatura, talvez, mais perigosa ainda do que a de Putin?

A grande diferença reside na premissa. O "Czar" de Empoli opera num regime autoritário consolidado, onde a orquestração da desinformação e a fragilização das instituições são ferramentas de um poder já estabelecido. No trumpismo, a invasão das táticas de Baranov ocorre no coração de uma suposta democracia que, até então, se imaginava robusta. É a subversão de dentro para fora, a erosão de pilares democráticos não por um Estado já totalitário, mas por um movimento que, ironicamente, se apresenta como defensor do povo contra as "elites".

Pensemos na forma como a administração Trump operou: a insistência em "factos alternativos", a negação descarada de evidências, a demonização da imprensa como "inimigo do povo". Tudo isto remete para a lógica de Baranov de criar uma realidade própria, imune à verificação e à crítica. Se na Rússia de Putin a população já estava acostumada a uma certa dose de propaganda estatal, nos EUA, a capacidade de desmantelar a confiança em instituições como a CBS e apresentadores como Stephen Colbert, do Late Show, que foi alvo de intensas pressões e apelos por parte da Casa Branca de Trump para que fosse silenciado e até demitido, sugere uma fragilidade até então subestimada. A sua postura crítica e a própria essência do jornalismo de late night que representava foram frontalmente atacadas pela retórica trumpista. Essa campanha de deslegitimação, que se manifestou de várias formas ao longo dos tempo e culminou mais recentemente no anúncio do fim do programa por alegadas razões financeiras, mas com fortes suspeitas de motivações políticas, espelha a forma como os regimes autoritários trabalham para anular qualquer voz independente.

E quem seria, então, o Baranov americano? Embora seja difícil apontar uma única figura com a mesma influência discreta mas total que Empoli atribui ao seu personagem fictício, a mente de imediato divaga para figuras como Steve Bannon. Ex-estratega-chefe da Casa Branca, Bannon, com o passado em media e a visão ideológica de "desconstrução" do establishment, parece ser o mais próximo arquiteto da "política quântica" no contexto americano. Tal como Baranov, Bannon compreende o poder da narrativa, da polarização e do uso de plataformas digitais para agitar as paixões e desmantelar a ordem existente. Ele não precisava de um autocrata para iniciar o processo; ele próprio era, e é, um catalisador de caos, um engenheiro da desordem que explora as fissuras da sociedade para reconfigurar o poder.

A grande ironia e o maior perigo residem aqui: se o "Mago do Kremlin" opera para solidificar um autoritarismo já existente, a "caricatura" americana parece operar para criá-lo de raiz numa democracia. O livro de Empoli, para além de ser uma leitura interessante sobre a Rússia, torna-se um espelho inquietante do que pode estar a acontecer mais perto de nós, e um aviso sobre a fragilidade das nossas próprias defesas contra os engenheiros do caos que operam à vista de todos.