segunda-feira, 29 de dezembro de 2025

O país que não queremos ver

 

Há dias em que a leitura da imprensa revela um padrão tão claro que se torna impossível ignorá-lo: vivemos num país que prefere a ilusão à realidade, o espetáculo à substância, a culpabilização das vítimas ao reconhecimento de injustiças estruturais.

Comecemos pelas mulheres. Helena Pereira comenta no «Público» um relatório da CIG que expõe um paradoxo brutal: quanto mais as mulheres avançam na carreira, maior tende a ser o fosso salarial face aos homens. A diferença passa de 4,6% nos estágios para 26,5% nos quadros superiores, muito ligada a prémios e remuneração variável onde persistem estereótipos. No geral, as mulheres trabalham mais 64 dias por ano para igualar o salário masculino. Um país estruturalmente misógino.

E quando surgem denúncias de abuso e violência envolvendo figuras prestigiadas? Ana Sá Lopes denuncia o padrão: surgem redes de proteção social, inclusive de gente que se diz feminista. O abaixo-assinado "anti-cancelamento" em defesa de Boaventura Sousa Santos inverte o ónus e transforma as acusadoras nas culpadas. A autora alarga a crítica à cultura de impunidade do país, concluindo que o discurso público sobre defesa das mulheres é muitas vezes vazio e oportunista.

António Guerreiro, no Ípsilon, vai mais fundo ao analisar a dimensão psicológica do autoritarismo. Recorrendo a Adorno e Wilhelm Reich, sugere que repressão, "virilismo", submissão ao chefe e circulação libidinal alimentam o irracionalismo político. Usa o contraste entre o discurso punitivista sexual do Chega e os casos de abusos envolvendo membros do partido para explorar a ideia de "carácter" autoritário. Responder a Ventura com debates racionais tradicionais falha porque a extrema-direita usa técnicas retóricas que contornam teoria e prova.

E não é apenas misoginia e autoritarismo. É também racismo normalizado. Guerreiro reflete, noutro texto, sobre o anticiganismo como racismo socialmente tolerado, problematizando como a linguagem ("comunidade cigana") pode ser um eufemismo que marca distância e exclusão, tornando certos grupos "baníveis" sem escândalo.

A direita, entretanto, dedica-se a propaganda e ilusionismo. Carlos Moedas esteve presente em apenas 2 de 7 reuniões do conselho consultivo europeu da habitação - verificação do «Público» confirma a acusação de Alexandra Leitão. Mas isso não impede que continue a apresentar-se como solução para a crise habitacional que ajuda a agravar.

E Montenegro, no discurso de Natal satirizado por Tiago Franco, dedica-se à moralização e propaganda: "excelência", Cristiano Ronaldo, "nada cai do céu". Culpabiliza os comuns, ignora precariedade e desigualdades, apela ao esforço enquanto ostenta privilégio e cinismo. É a "mentalidade vencedora" transformada em doutrina oficial.

Na ciência e inovação, o padrão repete-se: anúncios em vez de políticas. Ricardo Paes Mamede critica no «Público» a criação da AI2, que funde FCT e ANI, tanto pelo processo (pouco estudo, pouca consulta) como pelo modelo. O governo parte de um diagnóstico enganador: o fraco desempenho inovador não se explica só por pouca I&D empresarial, mas pela estrutura produtiva e pela fraca capacidade das empresas. Alerta contra a visão "linear" de que ciência gera automaticamente competitividade. Mais uma reforma feita para a galeria.

E quando olhamos para fora, vemos os mesmos padrões a escala global. O Libération reporta campanhas de plantação de árvores no leito seco do mar de Aral para travar poeiras tóxicas. A ideia tem base científica, mas na prática muitos projetos falham por salinidade e falta de acompanhamento. É "green branding": drones a largar sementes, créditos de carbono, encenação de solução enquanto as causas estruturais - má gestão da água, poluição - persistem. Espetáculo em vez de substância.

E em Gaza, como denuncia José Goulão, assistimos à desumanização dos palestinianos contraposta com o "humanitarismo" do resgate de burros, símbolo de hipocrisia moral e propaganda enquanto civis, incluindo crianças, não recebem a mesma proteção.

O padrão é sempre o mesmo: culpabilizar as vítimas, proteger os poderosos, preferir o espetáculo à solução, a propaganda à verdade. As mulheres são castigadas pelo seu sucesso mas culpadas quando denunciam abusos. Os trabalhadores são acusados de não terem "mentalidade vencedora" enquanto o sistema os explora. Os ciganos são excluídos mas a culpa é atribuída a eles por não se "integrarem". O planeta arde mas plantam-se árvores para as câmaras enquanto as causas persistem.

Este é o país que não queremos ver mas que existe: estruturalmente misógino, protetor de abusadores, racista normalizado, autoritário na psicologia coletiva, governado por ilusionistas que vendem propaganda como política. E enquanto não o virmos como é, não poderemos mudá-lo.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2025

A farsa da mentalidade vencedora

 

O comentário de Susana Peralta sobre a candidatura de Manuel João Vieira à presidência da República merece-me plena concordância. Tratando-se de uma performance artística ao nível do que o ator, cantor e artista plástico nos habituou, ela serve, de facto, o propósito de questionar o que de burlesco existe nesta eleição.

Não justifica que nele vá votar - reservo esse momento para apoiar um dos três candidatos de esquerda no boletim a depositar na urna (e Seguro não é decerto um deles!) -, mas estarei mais atento ao que Vieira fizer na campanha eleitoral do que a qualquer outro dos candidatos. Até por ser o único capaz de me divertir.

Como o conseguiu o admirável David Almeida, o mandatário da candidatura, ao propor - ele que tem nanismo! - a substituição de três salazares (sim, com letra bem minúscula!) pelos proverbiais sete anões. A metáfora é perfeita: de um lado, as três variantes do autoritarismo que assombra estas eleições; do outro, a força coletiva, diversa e resistente de quem recusa render-se ao medo.

O burlesco político sempre foi arma contra ditadores e aspirantes a tal. Porque o riso despe o rei, mostra que o imperador está nu. E numa campanha dominada pela pose solene de candidatos que se levam demasiado a sério enquanto propõem regressos a passados que deveríamos ter enterrado, Vieira presta um serviço à democracia: lembra-nos que não temos de aceitar este teatro como se fosse tragédia inevitável.

Mas o burlesco não está apenas na performance de Vieira. Está também, involuntariamente, na mensagem que Montenegro endereçou aos portugueses incitando-os a ter uma "mentalidade vencedora" como a de Ronaldo. Inês de Medeiros teve uma reação certeira: ele aparece como uma espécie de mentor de autoajuda com tudo o que de frívolo isso comporta.

Porque muitos serão quantos não se reconhecem na dita mentalidade vencedora de criado de um assassino de um jornalista - e dos muitos executados anonimamente no seu reino -, nem de lambe-botas do momentâneo homem forte em Washington, cuja demência, mesmo que muito perigosa, vai-se tornando indisfarçável.

E o próprio Montenegro ostenta uma "mentalidade vencedora" que, mesmo transitoriamente eficaz, não deixa de ser a de um pato bravo que compensou a falta de talento para outros afazeres com a habilidade para se fazer avençado de uns quantos patronos nada acima de suspeitas.

A escolha de Ronaldo como modelo é reveladora. Num país onde 73% dos jovens querem emigrar, onde os salários não chegam ao fim do mês, onde a habitação é inacessível e a saúde colapsa, o primeiro-ministro propõe como solução uma "mentalidade vencedora" individual. Não políticas públicas, não investimento, não direitos - apenas uma forma de pensamento mágico de tosco empreendedor.

É a privatização da esperança. Se falhas, a culpa é tua: não tiveste mentalidade suficientemente vencedora. Se tens contrato precário a vida toda, se não consegues pagar renda, se adoeces e não há médico - a culpa é da tua mentalidade derrotista. O sistema está perfeito. Quem falha és tu.

E a realidade vem desmentir a mitologia. Sobra da quadra a notícia do português baleado no Maryland, em jeito de toque de finados pela mitologia em torno da "terra das oportunidades" para onde muitos mudaram em busca de ilusória riqueza. Raramente dão mais que um passo para cima no elevador social, mas pagam o preço completo: a violência quotidiana, a precariedade sem rede de segurança, a segregação racial e social.

Para muitos, adivinho os pesadelos de se verem deportados para a origem e nela se verem desafiados a fazerem os mesmos sacrifícios vertidos para a madrasta terra ianque. Talvez com o mesmo esforço conseguissem o mesmo resultado - mas num país onde não se morre baleado a caminho do trabalho, onde existe sistema de saúde público, onde a violência não é a norma.

A "mentalidade vencedora" de Montenegro encontra aqui a sua verdade nua: emigrar não é vencer, é fugir. É a admissão de derrota de um país que expulsa os seus jovens porque não lhes oferece futuro. E depois vende-lhes como sucesso individual o que é fracasso coletivo.

Os Estados Unidos de Trump são o laboratório extremo do modelo que Montenegro quer para Portugal: cada um por si, que vença o mais forte, e se morreres baleado no caminho é porque não tiveste mentalidade suficientemente vencedora. É este o futuro que nos vendem como progresso.

É obsceno. E diz tudo sobre quem governa: alguém que confunde sucesso pessoal com mérito, que transformou habilidade para servir patronos em carreira política, e que agora vende aos portugueses a mesma receita: lambe as botas certas e terás sucesso.

Contra esta farsa, resta-nos o riso de Vieira e a revolta organizada de quem recusa aceitar que a culpa do colapso seja individual. O sistema não está perfeito. Está desenhado para falhar com a maioria. E reconhecê-lo não é mentalidade derrotista - é o primeiro passo para o mudar.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

O datado pensamento de Hannah Arendt

 

Nunca senti particular atração pelo pensamento de Hannah Arendt embora não descure os problemas que enfrentou junto da sua comunidade, que a crismou de antissemita, ao ver Adolf Eichmann como um homem medíocre, para ela símbolo da tão glosada banalidade do mal. Mas, ao equiparar o nazismo com o estalinismo, como se os totalitarismos se equivalessem, ela esqueceu outros que persistem dentro da muito valorizada "democracia liberal", quando esta alberga outras formas de totalitarismo - o religioso ao dar primazia a credos que se tentam promover como as maioritárias dentro de cada Estado ou a social com as classes dominantes a iludirem as exploradas com as supostas liberdades ferreamente controladas, quer pela propriedade da imprensa ou a influência de quem manda na justiça.

Este esquecimento não é acidental. Ele radica numa limitação fundacional do pensamento arendtiano: a sua deseconomização da política. Para Arendt, a verdadeira esfera da liberdade é a ação no espaço público, purificada das necessidades materiais e das questões sociais, que ela via como próprias do âmbito privado e inferior do trabalho. É esta separação categórica que a leva a ver com desconfiança, em Sobre a Revolução, a intrusão da "questão social" – a luta contra a pobreza e pela igualdade económica – na esfera política, considerando-a uma força corruptora que desvia a revolução da sua finalidade de fundar a liberdade e a leva ao terror. A sua admiração pela Revolução Americana, em contraste com a desconfiança face à Francesa, revela esta preferência por uma política que parece flutuar acima das condições materiais.

É precisamente aqui que uma análise marxista põe a nu o que pode ser considerado uma cegueira estrutural no seu pensamento. Ao relegar a economia e as relações de classe para uma "esfera social" pré-política, Arendt torna-se incapaz de diagnosticar as formas de dominação sistémicas e silenciosas que operam nas chamadas democracias liberais. Para o marxismo, a separação entre o político e o económico é a própria essência da ideologia burguesa: ela apresenta o Estado como neutro e a cidadania como abstrata, enquanto o poder real continua a ser exercido através da propriedade dos meios de produção, do controlo dos fluxos financeiros e da hegemonia cultural. A "banalidade do mal" de Eichmann tem, assim, um paralelo possível na "banalidade da exploração": na rotina quotidiana do lucro, na naturalização da desigualdade e na aceitação resignada de que o mercado é uma força da natureza, não um edifício político que beneficia uma classe.

Quando Arendt desvaloriza o "social", ela não só ignora o terreno onde se geram as desigualdades que corroem a própria possibilidade de uma ação política verdadeiramente livre e plural – pois quem está submerso na luta pela subsistência não tem o ócio necessário para a vida pública – como também desarma a crítica perante os novos totalitarismos. Estes já não se apresentam necessariamente como regimes terroristas de partido único, mas podem operar como totalitarismos moleculares: um domínio religioso que se infiltra nas leis e nas normas sociais; um controlo mediático que uniformiza o pensamento sob a aparência da liberdade de imprensa; um sistema judicial que, formalmente independente, reproduz os valores e protege os interesses das elites. São formas de governamentalidade que, sem recorrer a campos de extermínio, procuram administrar e conformar toda a vida, incluindo as consciências.

Arendt tinha razão ao alertar para os perigos da ideologia e da atomização social que abrem caminho ao totalitarismo clássico. No entanto, ao insistir numa política purificada da luta material, a sua filosofia acaba, paradoxalmente, por oferecer uma defesa demasiado frágil contra os totalitarismos que se alojam no coração do sistema que ela, por vezes inadvertidamente, idealizava. A sua "ação" discursiva, por mais nobre que seja, corre o risco de tornar-se um teatro de sombras se o palco público estiver montado sobre alicerces economicamente coercivos e socialmente injustos. Reconhecer isto não é desmerecer a sua busca pela dignidade política, mas sim lembrar, com Marx, que a primeira liberdade é a libertação das cadeias materiais que impedem os homens e mulheres de erguerem a cabeça e serem, de facto, iguais no diálogo que constrói o mundo comum.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Uma greve geral enquanto batalha de uma guerra a vencer

 

A greve geral não é apenas legítima - é necessária e urgente. E merece o apoio de todos os que compreendem que o que está em jogo transcende alterações pontuais à legislação laboral: é sobre o modelo de sociedade e de economia que queremos para o futuro.

Montenegro questiona com candura o propósito da greve, afirmando que "não faz sentido" e que se deveria "esperar para saber se vem aí alguma coisa que prejudique os trabalhadores". A resposta é simples: não é preciso esperar. O que está proposto já prejudica, deliberadamente e de forma estrutural, quem trabalha.

Pedro Adão e Silva desmonta a pergunta retórica do primeiro-ministro com a ironia que merece. Que sentido faz esta greve? Bom, se excluirmos a facilitação do despedimento individual, a eliminação do direito à reintegração de trabalhadores ilegalmente despedidos, a substituição de trabalhadores do quadro por outsourcing, o regresso ao banco de horas individual, a descriminalização do trabalho não declarado, a facilitação da caducidade da contratação coletiva, a possibilidade de ter contrato a prazo a vida toda - e a lista continua -, então talvez não fizesse sentido nenhum.

O propósito desta revisão é claro: desequilibrar a lei a favor dos empregadores e diminuir a natureza coletiva das relações de trabalho. A própria ministra do Trabalho o admitiu: a lei atual tem "algum desequilíbrio em favor dos trabalhadores". As propostas do Governo são de tal forma enviesadas que nem nos sonhos mais ambiciosos do patronato se esperava um brinde destes.

Mas há uma dimensão que transcende a mera defesa de direitos: esta greve é também pelo futuro da nossa economia. Daniel Oliveira demonstra-o com clareza: enfraquecer a negociação coletiva é travar o desenvolvimento económico. Quem compete baixando custos de trabalho cada vez mais precário desiste de investir na organização, na tecnologia e na qualificação. Se a lei tira poder negocial aos trabalhadores, favorece as empresas menos inovadoras e pune quem aposta na qualidade.

O reforço da negociação coletiva, que esta contrarreforma contraria, obriga as empresas que vivem da precariedade e de baixos custos laborais a procurarem outros argumentos competitivos. É isso que nos prepara para o futuro. Como escreveu Ricardo Paes Mamede, quando não é possível competir à custa de salários baixos, a competição desloca-se para a inovação, a eficiência, o investimento em processos e em capital humano.

O aumento dos salários não depende apenas do aumento da produtividade. Se assim fosse, os salários teriam acompanhado a produtividade nas últimas duas décadas, e isso não aconteceu. À produtividade temos de acrescentar o poder negocial dos trabalhadores. E esse poder resulta da sua organização, que se faz em torno dos sindicatos. Fragilizar a negociação coletiva é atacar os sindicatos e a capacidade negocial dos trabalhadores na hora de distribuir o bolo do aumento da produtividade.

Manuel Loff contextualiza historicamente esta greve: poucas reuniram tanto apoio na sua convocatória. Esta é uma das raras ocasiões em que CGTP e UGT se juntam, mas é a primeira apoiada também pela União de Sindicatos Independentes. É até apoiada dentro da UGT por dirigentes do PSD que, como se vê, não têm peso na definição da política do seu partido quando está no poder.

As alterações propostas são tão enviesadas a favor dos patrões que Silva Peneda, ministro-estrela do cavaquismo e autor de uma das primeiras machadadas contra os direitos conquistados com o 25 de Abril, classifica a proposta como "muito inclinada para um dos lados". A Bagão Félix, que há 23 anos pôs em causa os direitos à pensão de trabalhadores que começaram na ditadura, faz "impressão" que se faça um despedimento coletivo e se vá buscar depois os mesmos trabalhadores em lógica de trabalho temporário.

Que protagonistas da guerra contra quem depende de um salário se sintam hoje ultrapassados é sinal da radicalização à direita que vivemos. Os gestores deste neoliberalismo crescentemente autoritário, feito de flexibilização - isto é, esmagamento - dos direitos de quem trabalha, vêm dinamitando a democracia tal qual julgávamos conhecê-la. Querem poder negar-se a negociar com os representantes dos trabalhadores, querem impedir a atividade dos sindicatos, num regresso sinistro a 150 anos atrás.

João Fraga de Oliveira detalha as consequências concretas da precariedade nos locais de trabalho: inibição de inscrição sindical, sujeição a sobreintensificação do trabalho, aceitação sem recusa de tarefas insalubres ou perigosas, falta de denúncia de situações de assédio e violência, desqualificação profissional. A precariedade laboral tem um "braço longo" que se projeta na desestruturação familiar, nas condições de habitação e saúde, na vida em geral de quem trabalha e, por esta, na sociedade.

Como lembra Bertolt Brecht: do rio que tudo arrasta, todos dizem que é violento, mas ninguém diz violentas as margens que o oprimem. A ministra do Trabalho valoriza o "impacto social danoso" da greve mas desvaloriza a segurança no emprego, o contrário da precariedade.

Os herdeiros do passismo regressaram ao poder e querem retomar o caminho de intimidação iniciado há 15 anos. Para eles, trabalha melhor quem tem medo, quem obedece e se cala. Quem não exige ser respeitado. Para esta gente, a democracia acaba quando cruzamos a porta dos nossos locais de trabalho.

Por isso importa mostrar que o mundo do trabalho não se rende à abulia. A escolha que fizer dirá tudo sobre o que dele esperar. De um lado, estarão os que não têm medo nem prescindem de direitos e dignidade. Os que sabem que esta greve é pela defesa do trabalho digno, mas também pelo futuro económico do país. Os que compreendem que fortalecer a negociação coletiva não é travar a economia - é prepará-la para o futuro.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Foi golpe, indubitavelmente

 

Se Clara Ferreira Alves, na sua “ingenuidade” cada vez mais notória - digamos assim por questão de irónico cavalheirismo! - ainda não quer acreditar no golpe de Estado perpetrado pelo ministério público com a conivência de Marcelo, tudo quanto tem-se relacionado com o fim do governo de maioria absoluta de António Costa não deixa espaço para dúvidas para quem olha para tudo quanto tem sucedido e depara com as notícias mais recentes.

A análise das transcrições da Operação Influencer revela a dimensão da incompetência: registos de piadas, conversas políticas privadas, material irrelevante que denuncia ausência de critério. A desorganização e irresponsabilidade do Ministério Público permitiram que este material duvidoso circulasse livremente na comunicação social, transformando investigação judicial em espetáculo mediático.

Mais grave ainda: a prática sistemática de escutas sem proporcionalidade sugere que as mais altas figuras do Estado vivem sob vigilância permanente. Há indícios de discrepância entre as escutas autorizadas e as efetivamente realizadas. O que se divulga aproxima-se mais de bisbilhotice e espionagem política do que de investigação séria.

O próprio procedimento é kafkiano: arguidos longamente escutados sem serem ouvidos, sem acesso ao processo que entretanto vai sendo exposto aos pedaços nos media. O Ministério Público trabalha a partir de uma presumida "macroconspiração", assumindo à partida a culpa de todos os políticos, prolongando investigações sem provas sólidas. O resultado paradoxal é que, ao transformar tudo em escândalo, nada o é verdadeiramente. A lama generalizada acaba por proteger quem de facto deveria ser investigado.

No “Público” Pedro Adão e Silva não hesita em caracterizar a queda de António Costa como "golpe de Estado não violento", resultado de práticas judiciais abusivas que subvertem a ordem democrática. E alerta: o problema não é apenas reparar os danos já causados, mas garantir a saúde futura do regime, redefinindo a relação entre política e justiça. O caminho será longo e exigente. Teme, porém, que faltem protagonistas à altura do desafio.

E a razão está com ele. Dois anos volvidos sobre o golpe, Montenegro governa para destruir o que a Geringonça construiu, José Luís Carneiro facilita-lhe a tarefa, e o Ministério Público mantém-se impune na sua atuação arbitrária. O golpe triunfou. E quem o deveria travar limita-se a assistir passivamente à consumação.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Desmascarar e reconstruir

 

Três textos no «Público» de hoje traçam o mapa da batalha política que se avizinha: desmascarar a extrema-direita e a sua agenda destrutiva, desmontar as falácias económicas que a sustentam, e reconstruir uma esquerda capaz de lhe fazer frente.

Apesar de alguns "comentadeiros" insistirem em ter sido Ventura o vencedor dos debates para as presidenciais, só o facciosismo pró-Chega de tais protagonistas mediáticos pode validar-lhes os argumentos. Como se viu com Catarina Martins, o candidato que mais repulsa suscita numa maioria de portugueses é um poço sem fundo de mentiras e contradições.

Ana Sá Lopes expõe-no com precisão. No debate da TVI, Ventura mostrou embaraço quando José Alberto Carvalho o confrontou sobre a operação da PJ que deteve polícias envolvidos em tráfico e exploração de imigrantes no Alentejo. Ventura, que normalmente comenta qualquer caso de imigração, evitou sistematicamente pronunciar-se sobre o escândalo e tentou desviar o tema para imagens de imigrantes sem documentos.

A insistência do moderador obrigou-o a reconhecer que os agentes deviam ser punidos, mas apressou-se a culpar as leis de imigração do governo anterior numa fuga evidente ao tema e na tentativa de proteger forças de segurança corruptas.

A gravidade do caso não pode ser minimizada: envolve condições próximas da escravatura e abuso de poder policial contra pessoas vulneráveis. O desconforto de Ventura sugere o receio de que parte do eleitorado do Chega simpatize com estes agentes corruptos. E talvez tenha razão para recear: é precisamente esse eleitorado que alimenta.

Ana Sá Lopes conclui alertando que a proposta de Ventura para reforçar os poderes presidenciais seria perigosa para a democracia. Estas são, diz, eleições presidenciais decisivas. E tem razão: entre candidatos com limitações e contradições várias, há um que representa uma ameaça direta às instituições democráticas. E esse não pode, em circunstância alguma, vencer.

Mas desmascarar Ventura não chega. É preciso também demolir as falácias económicas que sustentam o projeto da direita. A semana e meia da greve geral, Ricardo Paes Mamede fá-lo com rigor.

Mamede critica a narrativa recorrente de que flexibilizar a legislação laboral cria emprego. Argumenta que, na verdade, essas propostas visam enfraquecer a negociação coletiva - e isso não apenas prejudica a justiça social, como também compromete o desenvolvimento económico do país.

A negociação coletiva corrige a desigualdade de poder entre trabalhadores e empregadores, reduz conflitos laborais criando regras claras e diálogo institucional, e impede concorrência desleal entre empresas baseada na exploração laboral. Sistemas robustos de contratação coletiva reduzem desigualdades salariais e reforçam a parte do rendimento que vai para o trabalho, como confirmado por estudos do FMI. Estabilizam a economia ao evitar ajustamentos bruscos e facilitar o planeamento empresarial.

Mais importante, defende Mamede, a negociação coletiva é uma política de desenvolvimento económico, essencial para elevar a produtividade nacional. Desincentiva modelos empresariais baseados em baixos salários, estimula inovação, qualificação e investimento, promove relações laborais estáveis e ambientes propícios ao conhecimento, favorece coordenação sectorial em formação e carreiras, reforçando a competitividade.

Portanto, enfraquecer sindicatos e facilitar a caducidade de acordos - como pretende a proposta de reforma laboral do Governo com o apoio do Chega - prende Portugal numa economia de baixo valor acrescentado, prejudicando trabalhadores e o futuro económico do país. É exatamente o oposto do que o governo e os "comentadeiros" vendem: a destruição da negociação coletiva não moderniza a economia, condena-a ao atraso permanente. E a greve geral de daqui a semana e meia é a resposta necessária a esta tentativa de nos empurrar para trás décadas.

Mas para travar a direita não basta denunciar. É preciso reconstruir alternativas. E aqui São José Almeida traz notícias da XIV Convenção do Bloco de Esquerda.

Sempiterno defensor das estratégias frentistas das esquerdas, e fundamentado no tanto que a Geringonça prometeu e António Costa não quis potenciar, só me resta desejar sucesso a José Manuel Pureza à frente do Bloco de Esquerda na mesma medida em que desejo o mesmo a Rui Tavares no Livre ou a Paulo Raimundo no PCP. Para dar a volta a este contraciclo de direita, o PS não poderá prescindir deles quando mudar de líder e de modelos de comunicação com o eleitorado.

A convenção decorreu num ambiente de grande preocupação com o crescimento da direita radical e com a perda de influência do partido, atualmente reduzido a um só deputado. O encontro ficou marcado por forte autocrítica: dirigentes e militantes reconheceram que o BE está no "limiar da irrelevância" e que se afastou da sociedade e das lutas sociais.

Foram apontadas falhas estruturais acumuladas ao longo da história do partido - falta de implantação territorial, fraca presença autárquica e fragilidade organizacional. A tarefa agora é reconstruir as ligações com trabalhadores, desfavorecidos e movimentos sociais, estando presente nas empresas, sindicatos, bairros populares, escolas e em causas como feminismo, imigrantes e minorias de género. Fernando Rosas defendeu mesmo uma "revolução cultural" na organização interna.

No plano político externo, o BE pretende ajudar a reconstruir a esquerda e formar alianças estratégicas, criando um "polo à esquerda" para enfrentar a extrema-direita. Para liderar este processo foi escolhido José Manuel Pureza, uma figura histórica e consensual.

A honestidade da autocrítica contrasta violentamente com a postura de José Luís Carneiro no PS. Enquanto o Bloco reconhece que trocar rostos não basta e que há um partido inteiro para reconstruir, Carneiro limita-se a facilitar a vida a Montenegro em nome de uma moderação estéril. A diferença entre quem quer aprender com os erros para fazer melhor e quem apenas gere a derrota é abismal.

O caminho está traçado: desmascarar Ventura e a extrema-direita, demolir as falácias económicas que sustentam a destruição de direitos, e reconstruir uma esquerda plural e combativa capaz de oferecer alternativa credível. A greve geral de daqui a semana e meia será um momento decisivo. Mas é apenas o começo de uma luta mais longa.