Um artigo de Graça Castanheira (Público, 26 de outubro) sobre a Terceira Via ajuda a compreender porque rejeito o voto em António José Seguro para as presidenciais e a liderança de José Luís Carneiro no Partido Socialista representa uma traição ao pensamento de Mário Soares.
Nos anos 90, Tony Blair e Gerhard Schröder propuseram a síntese entre a social-democracia tradicional e o neoliberalismo. A estratégia funcionou eleitoralmente, levando partidos de centro-esquerda ao poder em boa parte da Europa Ocidental. Mas tratava-se de capitulação disfarçada de pragmatismo.
Mário Soares viu-o com clareza. No congresso do PS de 1999, alertou para os perigos desta forma envergonhada de social-liberalismo, reveladora de um complexo de inferioridade perante o neoliberalismo. Para Soares, o socialismo democrático deveria combater a hegemonia neoliberal, não administrá-la. Aceitá-la como quadro irrevogável seria deixar a esquerda mais fraca e desprovida de alternativas.
A clivagem persiste. De um lado, os que encaram as privatizações como inevitáveis, a flexibilização laboral como necessária, as parcerias público-privadas como pragmatismo sensato. Do outro, os que reconhecem em cada uma dessas medidas a desistência do projeto transformador que define a esquerda.
António José Seguro, que teria repetido o acordo com Passos Coelho se pudesse voltar atrás, e José Luís Carneiro, com a abstenção “exigente” perante o Orçamento de Montenegro, inscrevem-se nesta linhagem da capitulação. Quando o PS anuncia querer conciliar liberdade económica com igualdade social, usa uma linguagem que poderia ter sido extraída dos manifestos de Blair. É a mesma preguiça da imaginação, o mesmo abandono do horizonte transformador.
E as consequências desta rendição ideológica não são abstratas. O caso de Alcácer do Sal mostra-o de forma brutal. A ausência de controlo efetivo sobre a exploração capitalista dos recursos naturais está a produzir uma catástrofe ambiental irreversível na Bacia do Tejo/Sado.
Megaplantações de culturas intensivas substituíram pinhais e culturas de sequeiro, extraindo água do aquífero muito além da sua capacidade de recarga. O resultado é o abatimento irreversível dos terrenos e a perda da capacidade de reserva do aquífero.
Há uma discrepância alarmante entre os dados oficiais de consumo e as estimativas de especialistas, sugerindo furos ilegais e captações não autorizadas. A pressão turística agrava o problema, com dezenas de milhares de camas nos concelhos de Grândola e Alcácer do Sal a consumir milhões de metros cúbicos adicionais. E paira agora o risco crescente de contaminação salina nas áreas próximas aos estuários, ameaçando mesmo o abastecimento público.
A falta de um sistema de monitorização fiável impede uma avaliação rigorosa da situação. O Estado, capturado pelos interesses que deveria regular, assiste passivamente enquanto o capital privado suga lucros à custa do futuro de todos.
Este é o rosto concreto do neoliberalismo que a Terceira Via aceitou como horizonte inultrapassável: destruição ambiental irreversível, dados ignorados ou adulterados, ausência de controlo democrático sobre decisões que comprometem gerações futuras. A diferença entre administrar o neoliberalismo e combatê-lo não é retórica. É a diferença entre assistir à catástrofe e tentar evitá-la.
Mário Soares tinha razão. E quem hoje governa o PS em seu nome deveria ter a decência de o reconhecer.





