quarta-feira, 2 de julho de 2025

A Emigração, a Cultura e a Habitação

 

A imigração enriquece as nossas sociedades, trazendo novas culturas e perspetivas. Contudo, a esquerda, no compromisso com a igualdade e a justiça social, enfrenta o desafio de integrar estas novas realidades sem ceder a simplificações perigosas. Respeitar as diversas culturas e religiões é fundamental, mas essa tolerância não pode ser ilimitada. Há princípios inalienáveis da nossa sociedade, como a igualdade de género e a proteção dos direitos humanos, que não podem ser comprometidos. Práticas como a poligamia ou a mutilação genital feminina são ilegais e inaceitáveis em Portugal e na Europa, e a sua não-aceitação não é xenofobia, mas a defesa intransigente da dignidade e dos direitos de todos.

Ao mesmo tempo, é crucial abordar a crise da habitação, um problema que a imigração, tal como o turismo de massa, exacerbou. O crescimento descontrolado dos alojamentos locais e a especulação imobiliária têm transformado um direito constitucional – o direito à habitação – num luxo inacessível para muitos. Vemos com preocupação a exploração de imigrantes em condições de habitação degradantes, com rendas exorbitantes por espaços diminutos e insalubres. Esta situação não é resultado da imigração em si, mas de um sistema que permite a exploração sem escrúpulos por parte de proprietários e intermediários, que acumulam lucros à custa da dignidade humana. A esquerda deve lutar por políticas públicas que garantam habitação digna e acessível para todos, regulando o mercado e combatendo a especulação.

É também imperativo reconhecer que os grandes beneficiários da imigração desregulada são, muitas vezes, os mesmos setores que financiam a extrema-direita. Estes grupos aproveitam-se da vulnerabilidade dos imigrantes para obterem mão-de-obra mais barata, sem direitos ou contratos de trabalho justos. Esta exploração capitalista da força de trabalho imigrante precariza não só os recém-chegados, mas também os trabalhadores portugueses, criando uma competição desleal e baixando os salários de todos. É paradoxal que muitos dos que foram forçados a emigrar para encontrar melhores condições de vida acabem por votar em partidos de extrema-direita nos seus países de acolhimento, sem perceber que representam precisamente os interesses dos patrões exploradores que os condenaram a essa mesma procura.

Cabe à esquerda articular uma visão que defenda a integração digna e humanitária dos imigrantes, garantindo-lhes direitos e condições de vida justas, ao mesmo tempo que combate as práticas culturais incompatíveis com os valores fundamentais dos direitos humanos. Deve também lutar contra a especulação imobiliária e a exploração laboral, independentemente da nacionalidade. A luta não é contra o imigrante, mas contra as estruturas de exploração e desigualdade que afetam a todos, sejam eles nascidos em Portugal ou recém-chegados.

sexta-feira, 27 de junho de 2025

Um rústico Munchausen à portuguesa

 

Uma fotografia na edição de ontem do “Público”, colhida na cimeira da Nato, é particularmente elucidativa quanto à personalidade de Luís Montenegro e qual a sua relevância junto dos líderes ocidentais.

Se é certo que, muitas vezes, uma imagem vale por mil palavras, esta é exemplo lapidar. A cena capta os participantes da cimeira da NATO em plena interação, trocando ideias e cumprimentos. No entanto, em segundo plano, quase a esgueirar-se da objetiva, surge Luís Montenegro, a quem todos viram costas para a ação central, aparentemente à procura de uma saída discreta, ou talvez, de alguém com quem interagir e não o ignore. A imagem sugere um desconforto visível, um anseio por integração que contrasta vivamente com a aparente autoconfiança que exibe no palco nacional.

Pensamos em Soares, Guterres, Sócrates ou António Costa e todos víamos na primeira fila em diálogo com os seus pares. Ao invés, Montenegro segue na linha de Cavaco ou Passos Coelho que, vindos da província ou duma ex-colónia, e escondiam-se na retaguarda e quase pareciam agradecidos por serem aceites na “festa”. E, se no seu campo politico, Barroso tentava chegar-se à frente, era para a assumida função de mordomo do alheio “conbíbio”.

Este contraste entre a projeção interna de importância e a irrelevância externa evoca de forma irónica a figura do Barão de Munchausen. Para quem não o conhece, trata-se de um personagem literário do século XVIII, famoso pelas suas histórias fantásticas e inacreditáveis de aventuras. Ele era um mestre na arte da mistificação, narrando proezas impossíveis com uma convicção tal que os seus ouvintes, por vezes, acabavam por duvidar da própria realidade. O Barão construía o seu sucesso social e a sua relevância através da ilusão, da invenção de um mundo onde ele era o centro de todas as proezas, ignorando completamente as leis da física e da lógica.

A semelhança emerge quando observamos a forma como Montenegro, perante os graves desafios que Portugal enfrenta – da crise na saúde à escassez de habitação e à crescente pobreza da população –, parece concentrar o fulcro da ação política na questão da imigração. À semelhança de Munchausen, que criava realidades alternativas, o primeiro-ministro inventa a urgência e a prioridade dos problemas reais, elevando um tema à centralidade do debate e da ação governativa de forma desproporcional. A convocação de um conselho de ministros extraordinário para restringir os direitos de imigrantes, que são essenciais para o funcionamento de inúmeros setores da economia e para a sustentabilidade da Segurança Social, parece uma fuga aos verdadeiros dramas nacionais.

Enquanto o país se debate com a subsistência básica, a preocupação prioritária de Montenegro parece ser a de projetar uma imagem de controlo e decisão através de medidas que, ironicamente, desvalorizam a contribuição daqueles que mantêm o país a funcionar. No cenário internacional, a imagem é de isolamento; no cenário interno, a retórica é de um líder que, como o Barão de Munchausen, a criar uma narrativa que, para muitos, se afasta perigosamente da realidade premente.

terça-feira, 24 de junho de 2025

O Crepúsculo do Velho e a Longa Espera pelo Novo

 

É impossível não sentir que vivemos num impasse, num daqueles instantes históricos que Gramsci tão bem descreveu. O velho mundo, com as suas certezas e estruturas, parece ter-nos deixado, ou pelo menos está em franco declínio. No entanto, o novo, aquilo que deveria substituí-lo e oferecer um caminho, ainda teima em não mostrar a cara. Permanecemos presos neste interregno, um período de morbidez onde fantasmas do passado insistem em assombrar o presente e as soluções do futuro parecem permanentemente adiadas.

Olhamos para o panorama global e vemos a persistência de estratégias que, de tão óbvias na futilidade e perigo, questionam a lógica por detrás delas. Sejam os conflitos que se arrastam, com anúncios de tréguas que mais parecem pausas para rearmar a velha agenda, seja a forma como a política parece refém de tacticismos vazios em vez de um projeto consistente. Há uma sensação de que estamos à deriva, com os decisores mais preocupados em manter aparências ou em fugir para a frente do que em construir algo de verdadeiro.

E em casa, no nosso próprio quintal, a realidade não é menos frustrante. Vimos capacidade de gerir emergências, como a pandemia e a crise inflacionária que a seguiu. Mas e o depois? Onde está a visão de longo prazo, o plano que nos tire desta letargia e projete para um futuro com menos incertezas e mais equidade? Infelizmente, a tendência parece ser a de sempre, a de fazer recair o peso das crises sobre os ombros de quem menos pode: os reformados, as políticas sociais. É um caminho que, por mais que se tente mascarar, não aponta para um horizonte de esperança.

A frustração é ainda maior quando vemos os que poderiam fazer a diferença tropeçar. Quando a oposição dilui-se em colaborações envergonhadas com o “novo” (na realidade velho) governo em vez de se afirmar como uma alternativa robusta e visionária. Perdeu-se, com a derrota de Pedro Nuno Santos, uma oportunidade de ouro para resgatar essa visão de futuro que, noutros tempos, trouxe-nos ministros (a começar pelo notável e injustamente esquecido Mariano Gago) e projetos de grande relevância.

No meio de tudo isto, assistimos à ascensão do que há de pior na política, ao populismo que explora as fragilidades e os medos. São as "bestas" que assumem papéis ilegítimos (se não mesmo inconstitucionais) mas  encontram eco numa sociedade cansada e desiludida.

Este é o nosso momento gramsciano. Um tempo de incerteza, onde o novo é aguardado com urgência, mas permanece escondido nas sombras. Resta-nos a capacidade de denunciar o fraudulento presente e a esperança de que, um dia, o sol nasça para uma nova alvorada.

 

segunda-feira, 23 de junho de 2025

O Espelho Distorcido

 

É fascinante (e, para alguns, assustador) observar como uma parte significativa da população, particularmente do espectro da direita política, parece ter solidificado o seu posicionamento com base no que absorve das redes sociais. Não é um fenómeno aleatório; antes, é uma orquestração quase perfeita dos mecanismos psicológicos que nos tornam vulneráveis à manipulação digital.

Comecemos pela ansiedade. O mundo moderno é complexo, incerto, e frequentemente gerador de angústia. As redes sociais, com o fluxo incessante de informações e o "medo de ficar de fora" (o tal “Fear of Missing Out”), só exacerbam essa ansiedade. A direita e, em especial, a extrema-direita, perceberam essa fragilidade. Oferecem uma panaceia: narrativas simplificadas, vilões claros e soluções radicais que prometem ordem num caos percebido. Para uma mente ansiosa, a gratificação imediata de uma resposta definitiva, por mais simplista que seja, é um bálsamo. A constante exposição a conteúdo que valida medos e inseguranças ("eles vêm aí", "os valores estão a perder-se") alimenta um ciclo vicioso, onde a ansiedade leva à busca por certezas, e essas certezas são prontamente fornecidas pelas bolhas ideológicas das redes.

A depressão e os sentimentos de inadequação são também campos férteis. As redes sociais, ao exibirem vidas editadas e perfeitas, podem amplificar sentimentos de baixa autoestima e frustração. A direita populista, astutamente, capitaliza sobre isso. Em vez de lidar com a complexidade da própria vida, as redes oferecem a "solução" de um problema externo: a culpa é "deles", o país está em decadência, e o caminho é regressar a um passado idealizado que nunca existiu. A gratificação instantânea aqui é a de encontrar um inimigo comum, uma causa maior que desvia a atenção da dor pessoal e canaliza para uma indignação partilhada. A raiva substitui a tristeza, e a pertença a um movimento forte dá um sentido de propósito que faltava.

A baixa autoestima e os problemas de autoimagem, alimentados pela comparação social incessante, encontram nas redes sociais um eco peculiar. Se a validação pessoal é escassa no mundo real, a internet oferece uma plataforma onde a pertença a um grupo ideológico pode suprir essa carência. Ao alinhar-se com discursos fortes e "corajosos", mesmo que controversos, o indivíduo sente-se parte de algo maior, validado pelos "likes" e "partilhas" dos seus pares ideológicos. A nomofobia (o medo de ficar sem o telemóvel), que afeta muitos utilizadores, é o sintoma físico dessa dependência da validação e da compensação imediata que a pertença ao grupo online oferece.

Finalmente, a insatisfação e o vazio existencial, muitas vezes disfarçados de narcisismo, encontram nas redes sociais um palco para a sua expressão. A direita e a extrema-direita oferecem não só um inimigo externo, mas também um espelho que reflete uma versão idealizada do "eu" enquanto parte de um movimento "salvador" ou "revolucionário". A gratificação imediata não vem apenas de ser validado, mas de pertencer a uma elite moral ou intelectual, mesmo que essa superioridade seja construída dentro de uma bolha de algoritmos que só reforçam a própria visão do mundo.

Em suma, as redes sociais, na sua arquitetura viciante de recompensa imediata, criam um ambiente propício para que ideologias que oferecem respostas simples a problemas complexos, vilões claros e um sentido de pertença forte, se enraízem profundamente na psique dos seus utilizadores, moldando o seu posicionamento político. É um espelho distorcido que muitos, infelizmente, aceitam como a sua própria imagem. 

domingo, 22 de junho de 2025

A Ascensão da Direita nas Redes Sociais

 

A forma como as redes sociais ativam o desejo por compensação imediata não é apenas um problema individual; é também um terreno fértil particularmente bem explorado pelas ideologias de direita e extrema-direita. As características que fazem-nos mais vulneráveis aos problemas de dependência digital parecem, ironicamente, ser as mesmas que as tornam tão eficazes na comunicação online.

A extrema-direita percebeu que, para se propagar, precisava de conteúdos que gerassem um empenho aditivo na utilização dessas redes. Mensagens simples, diretas e muitas vezes chocantes funcionam como a "dose" de dopamina que o algoritmo adora e os utilizadores compulsivamente procuram. A busca incessante por "likes" e "partilhas" é espelhada na urgência de disseminar uma mensagem, independentemente da sua veracidade, porque o que importa é a gratificação instantânea de ver a ideia a espalhar-se.

A dificuldade em lidar com frustrações, gerada por um ambiente de recompensas rápidas, também encontra eco. Em vez de complexas análises políticas ou discussões ponderadas, as narrativas da direita e da extrema-direita oferecem soluções "mágicas" e bodes expiatórios para problemas complexos. Se a paciência para o debate depressa se esgota, a promessa de resoluções imediatas e simples, mesmo ilusórias, torna-se assaz atraente.

As redes fazem com que, no seu uso contínuo, decline a concentração e a produtividade. Neste cenário, mensagens longas e argumentos detalhados perdem espaço. As ideologias que prosperam são aquelas que se encaixam perfeitamente na lógica dos títulos curtos, memes impactantes e vídeos de segundos. O "fast-food" ideológico é mais facilmente digerível por mentes habituadas a estímulos rápidos e pouca profundidade.

Paradoxalmente, apesar de serem espaços de "ligação", as redes podem levar ao isolamento social. Em vez de promover a empatia através da multiplicação de interações, os algoritmos criam "bolhas" onde as pessoas são expostas apenas a opiniões que já validam as suas. A direita e a extrema-direita aproveitam isto, construindo comunidades online coesas e isoladas, onde a validação mútua do grupo (a compensação imediata) é reforçada, e a divergência é rapidamente expulsa ou "cancelada". Este ambiente é propício ao “Fear of Missing Out” do grupo, criando uma pressão para que os membros estejam sempre alinhados e ativos, para não ficarem "por fora" da onda ideológica.

A capacidade de disseminação destas ideologias nas redes sociais não é uma coincidência. Elas dominam a arte de explorar os mecanismos psicológicos que nos tornam vulneráveis à dependência digital, transformando os nossos próprios desejos de validação e recompensa imediata em ferramentas de disseminação ideológica.

terça-feira, 17 de junho de 2025

Tóxicas consequências à vista

 

O governo de Luís Montenegro prepara-se para lançar um ataque sem precedentes aos pilares fundamentais do nosso Estado social: a Saúde e a Habitação. As medidas propostas beneficiam abertamente os interesses privados em detrimento dos cidadãos, avizinhando-se danosas consequências.

Na Saúde, assistimos a uma manobra que visa desmantelar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) em favor dos hospitais privados. O governo quer-lhes conceder acesso às listas de espera de doentes a operar no SNS, permitindo-lhes escolher os casos que lhes dão mais lucro e menos trabalho, deixando os doentes mais complexos e dispendiosos para o já sobrecarregado sistema público. Estas operações serão pagas por todos os contribuintes, desviando recursos que deveriam ser aplicados no reforço do SNS para encher os bolsos de empresários da saúde. Isto não é complementaridade, é predação!

Na Habitação, a situação não é menos preocupante. Em vez de seguir as recomendações da Comissão Europeia por uma maior regulamentação do mercado de arrendamento, o governo de Luís Montenegro opta por dar mãos livres aos senhorios para continuarem a aumentar as rendas indiscriminadamente. Para agravar, os subsídios que o governo promete atribuir a uma minoria de inquilinos não servirão para aliviar a pressão, mas para serem embolsados pelos próprios senhorios, que verão os lucros aumentarem à custa do dinheiro de todos nós. Esta medida é um incentivo à especulação e uma afronta a quem luta para ter um teto sobre a cabeça.

Os eleitores que, de forma consciente ou inconsciente, reduziram as esquerdas a menos de um terço dos deputados no parlamento, verão em breve os efeitos pesados das suas más escolhas. A privatização da saúde e a desregulamentação da habitação não são soluções, são problemas que irão aprofundar as desigualdades, precarizar a vida de milhares de famílias e tornar Portugal um país onde o acesso a bens essenciais é um luxo para poucos. Afinal, por vezes, os povos precisam mesmo de provar o veneno cuja tampa abriram, para então, e só então, constatarem as suas tóxicas consequências. 

quarta-feira, 11 de junho de 2025

Sintomas inquietantes

 

Os acontecimentos dos últimos dias revelam a preocupante ascensão de ideologias autoritárias e fascistas a nível global. Não são incidentes isolados, mas manifestações de um padrão que exige a nossa atenção.

Em Lisboa, a agressão neonazi a atores da Barraca, que deixou um deles seriamente ferido, e os insultos racistas e xenófobos a Gouveia e Melo e ao Imã da Mesquita de Lisboa durante a manifestação do 10 de junho em Belém, demonstram a ousadia com que o ódio se manifesta publicamente. Se os defensores desses preconceitos se acoitavam na aparente passividade de não o demonstrarem aos olhos de todos parecem agora perder a vergonha e exibirem-nos na arrogância de quem já se sabe não tão isolado quanto antes se barricavam.

Nos EUA, o cenário em Los Angeles, com a polícia e a guarda nacional a realizar "caça ao imigrante" e a ameaça de prisão ao governador da Califórnia por se opor a Trump, evidencia uma escalada autoritária e o desrespeito pelos direitos humanos.

Por fim, o rapto dos tripulantes do barco de ajuda a Gaza, incluindo Greta Thunberg, sublinha a barbárie de um conflito onde, na Palestina, o fascismo adota o genocídio como estratégia.

Estes eventos, embora distintos, convergem para um alerta global: a normalização do discurso de ódio, a repressão e a desumanização são sinais inequívocos da sombra do fascismo. É crucial que a sociedade e as instituições reajam com firmeza, defendendo os pilares da liberdade e da dignidade humana. A complacência é um perigo para o futuro da nossa civilização. Importa que os bons e os muito bons se juntem aos imprescindíveis numa luta de que estes nunca abdicaram...

terça-feira, 10 de junho de 2025

Frivolidades em fim de ciclo

 

As celebrações do 10 de Junho, com a pompa habitual, trouxeram-nos este ano a condecoração de Ramalho Eanes. Para alguns o reconhecimento a um antigo Presidente, que lhes deu alento depois dos sustos do PREC. Ao invés esta notícia trouxe-me de volta o sentimento de profunda satisfação por nunca nele ter votado.

Lembro-me bem do tempo em que a escolha eleitoral cingiu-se a ele e ao "fascista de serviço" imposto pela direita da altura, na figura de Sá Carneiro, cuja morte abrupta marcou o final dessa campanha. Felizmente, o acaso quis que eu estivesse algures no meio do Índico, poupando-me àquela que teria sido, para mim, uma vergonha pessoal: pôr a cruzinha no quadrado do general de aparência pinochetiana.

Enquanto figura celebrada como suposto herói de Abril, a verdade é que Eanes era um notório spinolista. Longe do protagonismo e da importância de figuras como Otelo Saraiva de Carvalho, Salgueiro Maia ou Melo Antunes, esses sim verdadeiros heróis da Revolução, cujas ações e convicções moldaram um Portugal novo, Ramalho Eanes esforçou-se por devolver o país à elite exploradora . O seu papel, embora importante em momentos específicos, careceu da essência revolucionária e alinhamento com os ideais mais profundos de Abril que definem o verdadeiro heroísmo.

Desde então, o que sabemos de Eanes? Que é um homem honesto, sim, isso é inegável. Mas a honestidade, por si só, não apaga as marcas ideológicas. A sua trajetória posterior, nomeadamente a ligação académica a uma universidade sabidamente conotada com a Opus Dei, veio apenas confirmar a sua orientação conservadora. E ao longo dos anos, ele tem sido um apoiante consistente daqueles que as direitas designam como seus "títeres" nas estratégias políticas, reforçando essa perceção de alinhamento.

Por tudo isto, a medalha concedida por Marcelo Rebelo de Sousa neste 10 de Junho não é mais do que o esplendor daquilo a que um primo meu, com a sua sabedoria popular, costuma chamar de "cagança". Uma demonstração de ostentação, de validação de narrativas que nada têm a ver com o verdadeiro espírito de Abril e com os valores que deveriam ser celebrados. É uma homenagem que sublinha a persistência de certas leituras da História que continuam a ofuscar a memória dos que, de facto, arriscaram tudo por um Portugal mais livre e justo. 

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Os Cavaleiros do "Ni!" da Política Portuguesa

 

No cinema, Monty Python e o Cálice Sagrado apresentou-nos a figura inesquecível do Cavaleiro do Ni!. Este guerreiro, com armadura intimidante e palavra-chave assustadora – "Ni!" – representava a irracionalidade do poder, a imposição de vontades absurdas e a incapacidade em aceitar a realidade fora do seu pequeno e autoproclamado domínio. Ele exigia sacrifícios ridículos e bloqueava o caminho de qualquer um que não se submetesse aos caprichos mais banais. A sua força não vinha da lógica ou da razão, mas da intimidação e repetição exaustiva de uma ordem sem sentido.

Ora, é tentador olhar para o cenário político português e ver ecos desta figura imponente. O governo de Luís Montenegro, e do seu braço-direito, Martins Sarmento, parece, por vezes, encarnar esta mesma obstinação. Lembram-se do Cavaleiro do Ni! a insistir que o seu arbusto não era suficientemente "belo"? Pois bem, o governo parece fazer algo semelhante com as previsões económicas.

Enquanto a maioria das instituições – o Banco de Portugal, a Comissão Europeia, a OCDE – grita a plenos pulmões "Ni! Ni! Ni!" (que, neste caso, se traduz em "menos crescimento", "possível défice" e "cautela"), o governo parece manter-se firme, qual Cavaleiro do Ni! inabalável. É quase como se dissessem: "As nossas previsões são as corretas! As vossas não são 'belas' o suficiente!". A insistência num otimismo cada vez mais isolado no panorama das projeções económicas faz-nos questionar se não estamos perante uma nova versão do personagem com a realidade moldada à medida das convicções, independentemente dos factos.

Montenegro e Martins Sarmento, cada um à sua maneira, exibem essa convicção férrea. Enquanto os indicadores externos se acumulam e apontam para um abrandamento, a resposta do governo parece ser a de exigir que a economia "traga um arbusto mais bonito", ou seja, que se alinhe com as suas visões mais cor-de-rosa. A cada revisão em baixa das projeções por parte de entidades externas, parece surgir uma nova e mais sonora proclamação de "Ni!" por parte do executivo, como se a simples repetição garantisse a materialização da sua própria versão da realidade.

É uma dança peculiar, onde o governo tenta, à semelhança do Cavaleiro do Ni!, impor a sua narrativa através da pura e simples repetição, esperando que o mundo se curve às suas exigências, por mais descabidas que possam parecer aos olhos dos "observadores externos". Resta saber quanto tempo esta tática de "Ni!" conseguirá iludis os crédulos perante a inevitável chegada de um coelhinho assassino... ou, neste caso, da crueza dos números.

quarta-feira, 4 de junho de 2025

O Futuro Segue Dentro de Momentos

 

Gramsci, na análise sobre a crise do seu tempo, descreveu-a como um período de interregno: "o velho morre e o novo não pode nascer; neste interregno, surgem os mais variados fenómenos mórbidos." Essa definição ecoa com a conjuntura política e socioeconómica global atual, particularmente quando a observamos através de uma lente ecossocialista. O velho sistema capitalista, nas suas contradições internas e intrínseca incapacidade de lidar com a crise ecológica e social, está em processo de falência, enquanto um novo paradigma – o da justiça social e ambiental – ainda luta para se afirmar e consolidar.

Nos Estados Unidos, a deceção com a administração de Donald Trump é um exemplo desta fase. Muitos dos que nele depositaram a confiança, iludidos por uma retórica que prometia um regresso a um passado idealizado – sem tocar nas estruturas sistémicas da acumulação capitalista –, veem agora as condições de vida agravadas. As sondagens refletem essa insatisfação, posicionando-o entre os presidentes com maior rejeição num curto espaço de tempo. Este cenário ilustra a falácia de se acreditar que figuras populistas, mesmo que radicais na forma, podem resolver problemas que são estruturais, sem confrontar a lógica da acumulação capitalista que os engendra.

Apesar da recente vitória de um político de extrema-direita na Polónia, este resultado não deve ser interpretado como sinal de força inabalável para esses movimentos. Pelo contrário, pode reforçar a ideia de que a alternativa à atual crise não reside na "moleza" de um centro político neoliberal, personificado por figuras como Tusk – que perpetuam a lógica do status quo –, mas na emergência de líderes e movimentos que apresentem soluções verdadeiramente sistémicas e transformadoras. A agenda ecossocialista, que une a luta pela justiça social ao imperativo da sustentabilidade ambiental, emerge como a única via capaz de construir um futuro que não seja apenas diferente, mas intrinsecamente mais justo e equitativo.

A possível decadência das direitas extremas começa a dar sinais, como o demonstra a demissão dos correligionários de Wilders do governo dos Países Baixos. Enquanto força de protesto, esses movimentos conseguem seduzir os que se iludem com "pensamentos mágicos", prometendo soluções simplistas e reacionárias para problemas complexos. No entanto, uma vez chegados ao poder e confrontando-se com a realidade da governação – sem propor uma rutura com as bases do sistema –, a fragilidade das suas propostas torna-se evidente. A queda nas sondagens é quase inevitável. Isso demonstra uma verdade fundamental, que o ecossocialismo sublinha: embora possam funcionar como panfletários dos descontentamentos sociais e da frustração causada pelo capitalismo, os movimentos de extrema-direita não constituem uma solução quando importa dar respostas genuínas e sustentáveis aos desafios que a sociedade enfrenta, especialmente os ligados à crise ecológica e à crescente desigualdade social. A verdadeira mudança virá de uma transformação profunda das relações de produção e consumo, e não de meros paliativos ou regressões autoritárias.

terça-feira, 3 de junho de 2025

O Circo dos Egos e a Ausência de um Líder Genuíno

 

Após um presidente, Marcelo Rebelo de Sousa, apostado em cumprir a nunca confessada missão de desmantelar a esquerda em Portugal, e os socialistas em particular, o que nos resta é um rol de candidatos à sua sucessão que, mais do que a um propósito nacional, parecem servir os seus egos inflacionados.

Comecemos por Marques Mendes, invariável alvo de troça pela falta de imponência física. Foi evidente a vontade de vencer o complexo de inferioridade com uma bem-sucedida carreira de lobista judicial, agora tentada pela ambição de se tornar no “presidente da junta” em que se converteu este país tacanho depois das mais recentes legislativas.

Teremos também António José Seguro, aquele que foi preterido pelos camaradas de partido a pretexto da "moleza" para com o governo de Passos Coelho. Mais do que a vocação para contemporizar, é a fraqueza ideológica que o torna risível nesta pífia tentativa de redenção.

Pensemos depois em Rui Rio, anunciado mandatário de Gouveia e Melo. É um óbvio desafio à escolha do partido, que o preteriu em favor de Luís Montenegro. Com o seu estilo peculiar e por vezes enigmático, mas sempre narcísico, parece sempre pronto a abanar as estruturas, mesmo que à distância.

E, por fim, o ex-almirante com o ego complexado a operar em sentido contrário, ao julgar-se possuidor de capacidades e competências muito acima das que verdadeiramente possui. É o tipo de figura que nos faz questionar se a autoilusão não será, afinal, um dos maiores defeitos em política.

Até agora, para quem é de esquerda e não se quer ver associado aos défices de personalidade destes presumíveis candidatos, não há um nome aceitável. É frustrante constatar que, depois de ter perdido tão injustamente para Marcelo um cargo para o qual estava particularmente talhado, Sampaio da Nóvoa não tenha ainda reafirmado a sua presença. A esperança é que se volte a apresentar à disputa, ou surja alguém que se lhe assemelhe nas qualidades e esteja isento dos reconhecíveis defeitos que assombram os candidatos já assumidos. Afinal, precisamos de líderes, não de quem se serve da política para curar os seus feridos egos.

sexta-feira, 30 de maio de 2025

Placebos em forma de rituais

 

Julgaria tratar-se de um daqueles rituais condenados ao desuso, tendo em conta a evidente falta de relação entre o ramo tradicional da Quinta-feira da Espiga e a sorte e prosperidade que deveria proporcionar num futuro próximo.

Estava enganado, claro! Num breve passeio às horas mais amenas do asfixiante dia de ontem, lá encontrei pessoas a empunhar ou a colher flores para o referido ramo.

Dir-se-ia que é uma forma de honrar os antepassados, celebrando a simplicidade da sua relação com a natureza, mas equaciono qual a relação com a crença religiosa de ser cumprida quarenta dias depois da Páscoa, a pretexto de ter sido esse o espaço temporal entre a morte de Cristo na cruz e a suposta subida aos céus.

Convenhamos que, para almejarem dias melhores, as pessoas têm melhor solução para serem bem-sucedidas: deixarem-se de crenças tolas e cuidarem de associar-se em lutas com os da sua condição para melhor combaterem quem as quer continuar a explorar.

segunda-feira, 26 de maio de 2025

Um partido mole perante tantos feios, porcos e maus?

 

1. Disse-o Pacheco Pereira na CNN que, quando perde eleições, o Partido Socialista escolhe tendencialmente uma liderança mole.

É isso mesmo que representa a anunciada pretensão de José Luís Carneiro para vestir esse fato e dar continuidade à tradição. O que, para mim, militante socialista com quase quarenta anos de ligação ao partido, é lamentável. A começar pelo facto dele não se medir convenientemente e não perceber que não tem as características adequadas para ser bem sucedido.

Numa altura em que o marketing é tão importante para o sucesso politico, José Luis Carneiro é um óbvio erro de casting, como o foi António José Seguro. Já para não falar do seu pensamento ideológico, muito pouco social-democrata e muito menos socialista!

O que significa isto: agora a vida pessoal não me permite fazer militância ativa (essa é toda dedicada aos cuidados a dar à minha cara metade numa fase da vida em que ela precisa de mim vinte e quatro horas por dia!), mas estivéssemos ambos na nossa mais pujante condição decerto não dedicaríamos sequer um minuto para ajudar este que nunca será o meu líder!

A liderança melhor sucedida do PS seguirá dentro de momentos depois de mais um lamentável intervalo!

2. Noutro programa da noite Susana Peralta deu explicação alternativa para as crises de André Ventura. Em vez da ideia mais comum de risível farsa teatral ele terá simplesmente mordido a língua e despoletado todo o veneno, que se lhe associa à composição da saliva.

Tanto bastou para que, aqueles em tempos definidos por Ettore Scola como feios, porcos e maus, se tenham compadecido e apoiado com o seu voto, quando já estavam embalados pela patética banha da cobra.

3. E se comecei com Pacheco Pereira com ele termino, porque é verosímil o que prognostica: depois de ter agido com objetivos eleitorais no último ano a AD já não dispõe da herança deixada por Medina para distribui-la insensatamente por quem mais vociferara contra o governo de António Costa. Sem dinheiro a rodos nos cofres não terá meios de prosseguir nessa ilusão para uns quantos e enfrentará o desequilíbrio das contas públicas, que a levará a apertar o cinto.

As cenas dos próximos capítulos na (des)governação de Montenegro não prometem ser tranquilas. E, digo-o eu, terão de ser as esquerdas a voltar a enfrentar o boi pelos cornos, não deixando que sejam os fascistas a aproveitarem-se da agravada crise social.