Nunca senti particular atração pelo pensamento de Hannah Arendt embora não descure os problemas que enfrentou junto da sua comunidade, que a crismou de antissemita, ao ver Adolf Eichmann como um homem medíocre, para ela símbolo da tão glosada banalidade do mal. Mas, ao equiparar o nazismo com o estalinismo, como se os totalitarismos se equivalessem, ela esqueceu outros que persistem dentro da muito valorizada "democracia liberal", quando esta alberga outras formas de totalitarismo - o religioso ao dar primazia a credos que se tentam promover como as maioritárias dentro de cada Estado ou a social com as classes dominantes a iludirem as exploradas com as supostas liberdades ferreamente controladas, quer pela propriedade da imprensa ou a influência de quem manda na justiça.
Este esquecimento não é acidental. Ele radica numa limitação fundacional do pensamento arendtiano: a sua deseconomização da política. Para Arendt, a verdadeira esfera da liberdade é a ação no espaço público, purificada das necessidades materiais e das questões sociais, que ela via como próprias do âmbito privado e inferior do trabalho. É esta separação categórica que a leva a ver com desconfiança, em Sobre a Revolução, a intrusão da "questão social" – a luta contra a pobreza e pela igualdade económica – na esfera política, considerando-a uma força corruptora que desvia a revolução da sua finalidade de fundar a liberdade e a leva ao terror. A sua admiração pela Revolução Americana, em contraste com a desconfiança face à Francesa, revela esta preferência por uma política que parece flutuar acima das condições materiais.
É precisamente aqui que uma análise marxista põe a nu o que pode ser considerado uma cegueira estrutural no seu pensamento. Ao relegar a economia e as relações de classe para uma "esfera social" pré-política, Arendt torna-se incapaz de diagnosticar as formas de dominação sistémicas e silenciosas que operam nas chamadas democracias liberais. Para o marxismo, a separação entre o político e o económico é a própria essência da ideologia burguesa: ela apresenta o Estado como neutro e a cidadania como abstrata, enquanto o poder real continua a ser exercido através da propriedade dos meios de produção, do controlo dos fluxos financeiros e da hegemonia cultural. A "banalidade do mal" de Eichmann tem, assim, um paralelo possível na "banalidade da exploração": na rotina quotidiana do lucro, na naturalização da desigualdade e na aceitação resignada de que o mercado é uma força da natureza, não um edifício político que beneficia uma classe.
Quando Arendt desvaloriza o "social", ela não só ignora o terreno onde se geram as desigualdades que corroem a própria possibilidade de uma ação política verdadeiramente livre e plural – pois quem está submerso na luta pela subsistência não tem o ócio necessário para a vida pública – como também desarma a crítica perante os novos totalitarismos. Estes já não se apresentam necessariamente como regimes terroristas de partido único, mas podem operar como totalitarismos moleculares: um domínio religioso que se infiltra nas leis e nas normas sociais; um controlo mediático que uniformiza o pensamento sob a aparência da liberdade de imprensa; um sistema judicial que, formalmente independente, reproduz os valores e protege os interesses das elites. São formas de governamentalidade que, sem recorrer a campos de extermínio, procuram administrar e conformar toda a vida, incluindo as consciências.
Arendt tinha razão ao alertar para os perigos da ideologia e da atomização social que abrem caminho ao totalitarismo clássico. No entanto, ao insistir numa política purificada da luta material, a sua filosofia acaba, paradoxalmente, por oferecer uma defesa demasiado frágil contra os totalitarismos que se alojam no coração do sistema que ela, por vezes inadvertidamente, idealizava. A sua "ação" discursiva, por mais nobre que seja, corre o risco de tornar-se um teatro de sombras se o palco público estiver montado sobre alicerces economicamente coercivos e socialmente injustos. Reconhecer isto não é desmerecer a sua busca pela dignidade política, mas sim lembrar, com Marx, que a primeira liberdade é a libertação das cadeias materiais que impedem os homens e mulheres de erguerem a cabeça e serem, de facto, iguais no diálogo que constrói o mundo comum.





