segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Não precisamos de um PS neoliberal

 

Um artigo de Graça Castanheira (Público, 26 de outubro) sobre a Terceira Via ajuda a compreender porque rejeito o voto em António José Seguro para as presidenciais e a liderança de José Luís Carneiro no Partido Socialista representa uma traição ao pensamento de Mário Soares.

Nos anos 90, Tony Blair e Gerhard Schröder propuseram a síntese entre a social-democracia tradicional e o neoliberalismo. A estratégia funcionou eleitoralmente, levando partidos de centro-esquerda ao poder em boa parte da Europa Ocidental. Mas tratava-se de capitulação disfarçada de pragmatismo.

Mário Soares viu-o com clareza. No congresso do PS de 1999, alertou para os perigos desta forma envergonhada de social-liberalismo, reveladora de um complexo de inferioridade perante o neoliberalismo. Para Soares, o socialismo democrático deveria combater a hegemonia neoliberal, não administrá-la. Aceitá-la como quadro irrevogável seria deixar a esquerda mais fraca e desprovida de alternativas.

A clivagem persiste. De um lado, os que encaram as privatizações como inevitáveis, a flexibilização laboral como necessária, as parcerias público-privadas como pragmatismo sensato. Do outro, os que reconhecem em cada uma dessas medidas a desistência do projeto transformador que define a esquerda.

António José Seguro, que teria repetido o acordo com Passos Coelho se pudesse voltar atrás, e José Luís Carneiro, com a abstenção “exigente” perante o Orçamento de Montenegro, inscrevem-se nesta linhagem da capitulação. Quando o PS anuncia querer conciliar liberdade económica com igualdade social, usa uma linguagem que poderia ter sido extraída dos manifestos de Blair. É a mesma preguiça da imaginação, o mesmo abandono do horizonte transformador.

E as consequências desta rendição ideológica não são abstratas. O caso de Alcácer do Sal mostra-o de forma brutal. A ausência de controlo efetivo sobre a exploração capitalista dos recursos naturais está a produzir uma catástrofe ambiental irreversível na Bacia do Tejo/Sado.

Megaplantações de culturas intensivas substituíram pinhais e culturas de sequeiro, extraindo água do aquífero muito além da sua capacidade de recarga. O resultado é o abatimento irreversível dos terrenos e a perda da capacidade de reserva do aquífero.

Há uma discrepância alarmante entre os dados oficiais de consumo e as estimativas de especialistas, sugerindo furos ilegais e captações não autorizadas. A pressão turística agrava o problema, com dezenas de milhares de camas nos concelhos de Grândola e Alcácer do Sal a consumir milhões de metros cúbicos adicionais. E paira agora o risco crescente de contaminação salina nas áreas próximas aos estuários, ameaçando mesmo o abastecimento público.

A falta de um sistema de monitorização fiável impede uma avaliação rigorosa da situação. O Estado, capturado pelos interesses que deveria regular, assiste passivamente enquanto o capital privado suga lucros à custa do futuro de todos.

Este é o rosto concreto do neoliberalismo que a Terceira Via aceitou como horizonte inultrapassável: destruição ambiental irreversível, dados ignorados ou adulterados, ausência de controlo democrático sobre decisões que comprometem gerações futuras. A diferença entre administrar o neoliberalismo e combatê-lo não é retórica. É a diferença entre assistir à catástrofe e tentar evitá-la.

Mário Soares tinha razão. E quem hoje governa o PS em seu nome deveria ter a decência de o reconhecer.

sábado, 25 de outubro de 2025

Que triste estado de coisas!

 

A especialidade das direitas, segundo Pedro Adão e Silva, é inventar problemas onde não existem para desviar as atenções daqueles que não conseguem resolver. Daí a importância dada à proibição da burqa, quando a saúde, a habitação e o aumento do custo de vida agravam-se sem resposta efetiva.

No mesmo sentido, Susana Peralta pergunta se os legisladores que proíbem a burqa acreditam que, no dia seguinte, essas mulheres virão de cara descoberta para a rua. Pelo contrário: juntam assim a violência já contra elas cometida com a de serem remetidas ao espaço doméstico sem poderem frequentar o espaço público. O corpo da mulher serve assim, às direitas, como palco para as suas guerras culturais.

Os problemas reais permanecem, de facto, sem solução. A habitação é o problema mais urgente das sociedades modernas, impedindo estudantes, professores, médicos, polícias e outros a deslocarem as suas vidas para zonas diversas daquelas onde vivem. E está na origem do indecoroso ressurgimento dos bairros de lata, vergonha que pensávamos ter deixado para trás.

Ao mesmo tempo o Conselho de Finanças Públicas reafirma não acreditar nos números do governo para o Orçamento de 2026: as despesas estão subavaliadas, pelo que o proclamado excedente é mais uma manifestação do pensamento mágico de Montenegro e Sarmento. A realidade há-de cobrar a fatura desta ilusão contabilística.

Outros problemas anunciam-se todos os dias. Agora são as cinco centenas de crianças dos colégios privados de educação especial em vias de ficarem sem onde possam prosseguir a educação. Um estudo mostra não haver jovens que queiram ir para a polícia, preferindo ir para caixas de supermercado. E neste ano fecharam 37 salas de cinema e mais nove estão em vias de ter o mesmo destino. Colapso merecido para as distribuidoras que nelas limitam-se a ser correias de transmissão dos estúdios de Hollywood, mas sintoma de um empobrecimento cultural preocupante.

Para finalizar, a campanha de muitos socialistas a apelarem para que os candidatos à esquerda desistam em favor de António José Seguro. Homessa: não foi ele um assumido opositor da Geringonça? Não disse há dias que teria voltado a repetir o acordo com Passos Coelho se voltasse ao passado em que foi remetido ao merecido caixote do lixo de onde tenta de novo emergir? É este o candidato que a esquerda deveria apoiar em nome da unidade? Que triste estado de coisas. 

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Burkas e fiascos à vista

 

A recente aprovação da lei que proíbe o uso de burqas no espaço público é uma questão falsa, chamada à colação pelo Chega para avivar a agenda mediática depois dos medíocres resultados nas autárquicas. A lei é desproporcional e hipócrita, aplicada a um número ínfimo de mulheres em Portugal, sem representar qualquer ameaça à segurança. A verdadeira motivação não é proteger direitos, mas demonizar uma comunidade.

Paulo Raimundo tem razão quando alerta para a coincidência desta proposta na mesma sessão em que toda a direita se associou para reduzir os impostos aos grandes grupos económicos. Milhões de euros que embolsam, e tão necessários seriam para ajudar a resolverem os principais problemas do país: a saúde, a habitação e o empoderamento do emprego na administração pública, hoje tão carecida de jovens quadros para se modernizar e tornar mais eficaz.

Enquanto isto, o governo prevê um aumento no peso dos impostos indiretos, que pode atingir 53,5% da receita fiscal em 2026. Esta estrutura tributária é regressiva, afetando mais as famílias de baixa renda. Ou seja: aliviam os ricos, mas continuam a apertar os pobres através de uma carga fiscal indireta cada vez mais pesada.

Sobre o Orçamento de Estado para 2026, o Conselho das Finanças Públicas desmontou o pensamento mágico do ministro Sarmento com argumentos que denunciam a sua mais que provada incompetência para o cargo que exerce. O "Centeno do PSD" é uma patética caricatura do original.

O CFP alerta para a possibilidade de sobrestimação da economia. A criação de emprego está em risco, afetando o consumo privado e a atividade empresarial. A previsão de crescimento do PIB de 2,3% para 2026, com uma inversão da relação histórica entre emprego e produtividade, é considerada imprudente, bastando atender ao sucedido na década entre 2014 e 2024, quando o emprego contribuiu com 1,6% para o crescimento médio anual do PIB, enquanto a produtividade apenas garantiu 0,5%. Inverter esta tendência num ano é, no mínimo, wishful thinking.

A deterioração do mercado de trabalho é identificada como o maior risco para a economia portuguesa. O Governo aposta na execução do PRR para estimular o investimento, mas a abordagem resume-se a gastar até ao último cêntimo disponível e reciclar subvenções não utilizadas. A quantidade de incentivos públicos é vasta, mas a eficácia na promoção de uma economia mais produtiva é duvidosa.

Por fim só posso lamentar o apoio do Partido Socialista a António José Seguro nas eleições presidenciais. Será mais uma derrota política a associar às mais recentes. Como diz Pacheco Pereira, "ser mole é o pior que há. Porque a moleza não cria empatia em ninguém". Se a "abstenção violenta" de Seguro era paradigma dessa moleza, a "abstenção exigente" de José Luís Carneiro segue-lhe as pisadas. Não trazendo este capítulo da sua História nada de novo, espera-se que, com outra liderança, o PS volte à matriz que, programaticamente, deve ser a sua: Socialista com maiúscula, sem vergonha de o ser. 

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Mudanças na continuidade

 

Há uma década atrás, António José Seguro propunha uma "abstenção violenta" para com o Orçamento de Estado de Passos Coelho. Para com o de Montenegro, José Luís Carneiro aposta numa "abstenção exigente".

Convenhamos que a lógica de complacência com um documento que nada resolve quanto aos grandes problemas nacionais - a saúde, a habitação, a educação e a inflação - e privilegia despudoradamente o interesse dos patrões em detrimento de quem trabalha, é a continuidade de uma linha de atuação contrária à que conviria assumir. Sobretudo dado o quase certo protagonismo da extrema-direita, por um lado, e dos comunistas pelo outro, quando o descontentamento suceder à abulia em que a população caiu, dirigindo culpas na direção errada.

Por muito que António Costa, com os seus erros de cálculo, se tenha posto a jeito para fazer do PS o mau da fita quanto à autoria da dissonância entre a vontade de boa vida e a difícil sobrevivência em que tantos se procuram salvaguardar, a estratégia de Carneiro só agrava o problema.

Pena é que Pedro Nuno Santos tenha vindo à ribalta antes de tempo. O líder socialista capaz de devolver o poder às esquerdas será quem o imitar na determinação firme contra as malfeitorias de quem anda por agora a (des)governar.

Não me identifico igualmente, e por razões óbvias, com a indicação do PS para se votar em António José Seguro nas presidenciais. Não só pelo que revelou quando foi líder do partido, mas sobretudo porque, tíbio nas convicções, não será ele a dissolver a Assembleia quando a crescente contestação social o exigir.

A contragosto, porque preferia depositar o voto noutro candidato que não avançou com a sua candidatura, lá terei de dar a confiança ao Almirante. Este não me deixa dúvidas sobre qual será a sua posição se se confirmar a incompetência do atual governo para manter as tais contas certas e continuar o agravamento das principais frustrações do eleitorado quanto às suas aspirações a um futuro melhor.

Raquel Varela - agora afastada da televisão pública onde era uma das mais interessantes comentadoras - sofrendo o mesmo saneamento também estendido a Ana Drago ou Paulo Pedroso! -, arrisca-se a ser uma espécie de Cassandra contemporânea. Veemente na defesa da sua perspetiva quanto ao futuro, não consegue ser ouvida por quem lhe deveria, de facto, dar atenção. Arrisca-se a ver avançar as piores expectativas sociais e políticas, que poderiam ser mais atempadamente evitadas acaso se antecipassem as suas sugeridas soluções.

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Entre a toalha no chão e o rio a extravasar

 

Agora que as eleições autárquicas vieram - sobretudo! -, confirmar o quanto o Chega é um partido de um homem só, olho para os resultados menos maus do PS e reitero o que, desde o início do consulado de José Luís Carneiro, me tem sugerido. Apesar de lhe admirar o voluntarismo com que se dedicou à campanha eleitoral, percorrendo o país de norte a sul, ilhas incluídas, para agitar o eleitorado cujo apoio António Costa tão levianamente desperdiçou, ele não corresponde ao que o partido e o país precisam. Se ainda não repetiu a ladainha de António José Seguro quanto à "abstenção violenta", a vontade de se fazer interlocutor de Montenegro tem sido patética, dadas as ofensas e as mentiras que este tem, sucessivamente, lançado contra quem poderia ser-lhe interlocutor com mais respeitosa cordialidade.

Montenegro julga-se autossuficiente na minoria parlamentar em que assenta o seu poder, fiado no facto de não haver dissolução à vista nos próximos meses. E por isso dá-se ao luxo de propor um Orçamento de Estado em que as reduções de impostos para os patrões são triplas das propostas para quem trabalha, avisando de seguida não ter margem para negociar o que quer que seja quanto ao seu conteúdo.

Perante esta perspetiva, o secretário-geral do PS lança a toalha ao chão e diz-se disposto a viabilizar um documento que prossegue a destruição do Serviço Nacional de Saúde, nada resolve quanto à crise da habitação e pressupõe a transfiguração das leis laborais de forma a acentuar a precarização de quem ansiaria por assentar o futuro em bases sólidas para consolidar os seus projetos familiares.

Não admira que já se perspetive um movimento social significativo de contestação nas ruas. E o Partido Comunista, que validou nas municipais a tese de melhor lhe valer a corrida na própria pista para recuperar o apoio junto dos mais desfavorecidos, terá nessa estratégia a razão de ser do ansiado ressurgimento.

Que fará então o PS quando a inflação crescente - agudizada pela transferência de verbas para as empresas do complexo militar trumpista - der vontade a multidões crescentes de se manifestarem? Apanha a boleia, tarde e a más horas, ou persiste em estender a mão a um Montenegro para quem a Spinumviva será apenas um parafuso a emperrar uma engrenagem cujo imerecido fulgor se bastará por esta noite eleitoral?

O transitório primeiro-ministro estará agora a dormir sob a esperança de escapar ao garrote que lhe lançam quem secunda a bicéfala ameaça representada por Ventura e Passos Coelho, que trabalham para, vinda essa fase de revolta social, seja a solução musculada a conter um rio que tende a extravasar do leito. Um rio que trará de volta as soluções de esquerda por ora esquecidas por quem as deveria estar a preparar para melhor as liderar. E se Carneiro não tem o perfil necessário para essa missão, Pedro Nuno Santos surgiu demasiado cedo para credibilizar-se como seu condutor. Venha então quem possa encarná-la com outro dinamismo, seja ele Duarte Cordeiro, Miguel Pratas Roque ou quem seja capaz de devolver o PS àquilo que ele deve ser: socialista, de facto!!

segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Sobre a seletividade do zelo investigativo

 

Tem sido instrutivo observar o fervor com que certas instituições de justiça se entregam a determinadas investigações. A recente revelação de que o Ministério Público manteve o juiz Ivo Rosa sob vigilância durante três anos, sem encontrar qualquer fundamento para acusação, junta-se a um padrão já conhecido: João Galamba, José Sócrates, tantos outros casos em que a suspeição parece preceder a investigação, em que o estardalhaço mediático substitui a prova.

Não se trata apenas de erros ou excessos pontuais. Trata-se de uma estratégia que escolhe alvos com critério político, que mobiliza recursos do Estado para perseguir quem não convém, enquanto outros setores da vida pública parecem gozar de uma imunidade curiosa. A pergunta que se impõe é simples: onde está este mesmo zelo investigativo quando se trata de outros protagonistas da cena política?

Permitam-me então uma sugestão ao Ministério Público, já que parecem tão dedicados a escutas, vigilâncias e escrutínios minuciosos: porque não aplicam a mesma diligência ao universo do Chega? Se colocassem todos os eleitos, financiadores e apoiantes desse partido sob o mesmo escrutínio que dispensaram ao juiz Ivo Rosa ou a João Galamba, as probabilidades de encontrarem matéria noticiosa seriam, no mínimo, interessantes. Talvez até aparecessem como heróis todos os dias, com um ou mais casos por dia.

Não é preciso ser particularmente perspicaz para perceber que um partido nascido do nada, crescido à boleia do ódio e da demagogia, financiado sabe-se lá como, abrigando figuras com passados mais que duvidosos, oferece um campo fértil para investigação. As ligações financeiras opacas, os discursos que roçam (quando não ultrapassam) os limites da incitação ao ódio, os episódios de violência envolvendo militantes, as suspeitas de enriquecimento ilícito - tudo isto está à vista de quem quiser ver.

Mas, curiosamente, não se vê o mesmo empenho. Não se veem operações mediáticas, escutas tornadas públicas, investigações prolongadas. A justiça, que se quer cega e imparcial, parece ter uma visão seletiva notável. Vê muito bem para um lado, mantém-se estranhamente míope para outro.

O que nos devolve à questão central: o Ministério Público, e o sistema judicial em geral, serve para combater o crime e a corrupção, ou serve para controlar politicamente quem não se alinha com determinados interesses? Quando Pedro Marques Lopes afirma que a Pide ressurgiu e tem no Ministério Público o seu feudo, não está a fazer retórica vazia. Está a nomear uma realidade que se vai tornando cada vez mais evidente: a instrumentalização da justiça como arma política.

Portanto, aqui fica o desafio: se querem mesmo aparecer como heróis impolutos na luta contra o crime e a corrupção, façam um pequenino esforço. Coloquem atrás das grades o magote de meliantes que se esconde no partido de André Ventura. Apliquem aos que esbracejam contra imigrantes, ciganos e minorias o mesmo rigor que aplicam aos que ousam governar pela esquerda.

Ou então tenham, pelo menos, a honestidade de assumir que a balança da justiça tem pesos diferentes conforme quem está em cada prato.