sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Foi golpe, indubitavelmente

 

Se Clara Ferreira Alves, na sua “ingenuidade” cada vez mais notória - digamos assim por questão de irónico cavalheirismo! - ainda não quer acreditar no golpe de Estado perpetrado pelo ministério público com a conivência de Marcelo, tudo quanto tem-se relacionado com o fim do governo de maioria absoluta de António Costa não deixa espaço para dúvidas para quem olha para tudo quanto tem sucedido e depara com as notícias mais recentes.

A análise das transcrições da Operação Influencer revela a dimensão da incompetência: registos de piadas, conversas políticas privadas, material irrelevante que denuncia ausência de critério. A desorganização e irresponsabilidade do Ministério Público permitiram que este material duvidoso circulasse livremente na comunicação social, transformando investigação judicial em espetáculo mediático.

Mais grave ainda: a prática sistemática de escutas sem proporcionalidade sugere que as mais altas figuras do Estado vivem sob vigilância permanente. Há indícios de discrepância entre as escutas autorizadas e as efetivamente realizadas. O que se divulga aproxima-se mais de bisbilhotice e espionagem política do que de investigação séria.

O próprio procedimento é kafkiano: arguidos longamente escutados sem serem ouvidos, sem acesso ao processo que entretanto vai sendo exposto aos pedaços nos media. O Ministério Público trabalha a partir de uma presumida "macroconspiração", assumindo à partida a culpa de todos os políticos, prolongando investigações sem provas sólidas. O resultado paradoxal é que, ao transformar tudo em escândalo, nada o é verdadeiramente. A lama generalizada acaba por proteger quem de facto deveria ser investigado.

No “Público” Pedro Adão e Silva não hesita em caracterizar a queda de António Costa como "golpe de Estado não violento", resultado de práticas judiciais abusivas que subvertem a ordem democrática. E alerta: o problema não é apenas reparar os danos já causados, mas garantir a saúde futura do regime, redefinindo a relação entre política e justiça. O caminho será longo e exigente. Teme, porém, que faltem protagonistas à altura do desafio.

E a razão está com ele. Dois anos volvidos sobre o golpe, Montenegro governa para destruir o que a Geringonça construiu, José Luís Carneiro facilita-lhe a tarefa, e o Ministério Público mantém-se impune na sua atuação arbitrária. O golpe triunfou. E quem o deveria travar limita-se a assistir passivamente à consumação.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Desmascarar e reconstruir

 

Três textos no «Público» de hoje traçam o mapa da batalha política que se avizinha: desmascarar a extrema-direita e a sua agenda destrutiva, desmontar as falácias económicas que a sustentam, e reconstruir uma esquerda capaz de lhe fazer frente.

Apesar de alguns "comentadeiros" insistirem em ter sido Ventura o vencedor dos debates para as presidenciais, só o facciosismo pró-Chega de tais protagonistas mediáticos pode validar-lhes os argumentos. Como se viu com Catarina Martins, o candidato que mais repulsa suscita numa maioria de portugueses é um poço sem fundo de mentiras e contradições.

Ana Sá Lopes expõe-no com precisão. No debate da TVI, Ventura mostrou embaraço quando José Alberto Carvalho o confrontou sobre a operação da PJ que deteve polícias envolvidos em tráfico e exploração de imigrantes no Alentejo. Ventura, que normalmente comenta qualquer caso de imigração, evitou sistematicamente pronunciar-se sobre o escândalo e tentou desviar o tema para imagens de imigrantes sem documentos.

A insistência do moderador obrigou-o a reconhecer que os agentes deviam ser punidos, mas apressou-se a culpar as leis de imigração do governo anterior numa fuga evidente ao tema e na tentativa de proteger forças de segurança corruptas.

A gravidade do caso não pode ser minimizada: envolve condições próximas da escravatura e abuso de poder policial contra pessoas vulneráveis. O desconforto de Ventura sugere o receio de que parte do eleitorado do Chega simpatize com estes agentes corruptos. E talvez tenha razão para recear: é precisamente esse eleitorado que alimenta.

Ana Sá Lopes conclui alertando que a proposta de Ventura para reforçar os poderes presidenciais seria perigosa para a democracia. Estas são, diz, eleições presidenciais decisivas. E tem razão: entre candidatos com limitações e contradições várias, há um que representa uma ameaça direta às instituições democráticas. E esse não pode, em circunstância alguma, vencer.

Mas desmascarar Ventura não chega. É preciso também demolir as falácias económicas que sustentam o projeto da direita. A semana e meia da greve geral, Ricardo Paes Mamede fá-lo com rigor.

Mamede critica a narrativa recorrente de que flexibilizar a legislação laboral cria emprego. Argumenta que, na verdade, essas propostas visam enfraquecer a negociação coletiva - e isso não apenas prejudica a justiça social, como também compromete o desenvolvimento económico do país.

A negociação coletiva corrige a desigualdade de poder entre trabalhadores e empregadores, reduz conflitos laborais criando regras claras e diálogo institucional, e impede concorrência desleal entre empresas baseada na exploração laboral. Sistemas robustos de contratação coletiva reduzem desigualdades salariais e reforçam a parte do rendimento que vai para o trabalho, como confirmado por estudos do FMI. Estabilizam a economia ao evitar ajustamentos bruscos e facilitar o planeamento empresarial.

Mais importante, defende Mamede, a negociação coletiva é uma política de desenvolvimento económico, essencial para elevar a produtividade nacional. Desincentiva modelos empresariais baseados em baixos salários, estimula inovação, qualificação e investimento, promove relações laborais estáveis e ambientes propícios ao conhecimento, favorece coordenação sectorial em formação e carreiras, reforçando a competitividade.

Portanto, enfraquecer sindicatos e facilitar a caducidade de acordos - como pretende a proposta de reforma laboral do Governo com o apoio do Chega - prende Portugal numa economia de baixo valor acrescentado, prejudicando trabalhadores e o futuro económico do país. É exatamente o oposto do que o governo e os "comentadeiros" vendem: a destruição da negociação coletiva não moderniza a economia, condena-a ao atraso permanente. E a greve geral de daqui a semana e meia é a resposta necessária a esta tentativa de nos empurrar para trás décadas.

Mas para travar a direita não basta denunciar. É preciso reconstruir alternativas. E aqui São José Almeida traz notícias da XIV Convenção do Bloco de Esquerda.

Sempiterno defensor das estratégias frentistas das esquerdas, e fundamentado no tanto que a Geringonça prometeu e António Costa não quis potenciar, só me resta desejar sucesso a José Manuel Pureza à frente do Bloco de Esquerda na mesma medida em que desejo o mesmo a Rui Tavares no Livre ou a Paulo Raimundo no PCP. Para dar a volta a este contraciclo de direita, o PS não poderá prescindir deles quando mudar de líder e de modelos de comunicação com o eleitorado.

A convenção decorreu num ambiente de grande preocupação com o crescimento da direita radical e com a perda de influência do partido, atualmente reduzido a um só deputado. O encontro ficou marcado por forte autocrítica: dirigentes e militantes reconheceram que o BE está no "limiar da irrelevância" e que se afastou da sociedade e das lutas sociais.

Foram apontadas falhas estruturais acumuladas ao longo da história do partido - falta de implantação territorial, fraca presença autárquica e fragilidade organizacional. A tarefa agora é reconstruir as ligações com trabalhadores, desfavorecidos e movimentos sociais, estando presente nas empresas, sindicatos, bairros populares, escolas e em causas como feminismo, imigrantes e minorias de género. Fernando Rosas defendeu mesmo uma "revolução cultural" na organização interna.

No plano político externo, o BE pretende ajudar a reconstruir a esquerda e formar alianças estratégicas, criando um "polo à esquerda" para enfrentar a extrema-direita. Para liderar este processo foi escolhido José Manuel Pureza, uma figura histórica e consensual.

A honestidade da autocrítica contrasta violentamente com a postura de José Luís Carneiro no PS. Enquanto o Bloco reconhece que trocar rostos não basta e que há um partido inteiro para reconstruir, Carneiro limita-se a facilitar a vida a Montenegro em nome de uma moderação estéril. A diferença entre quem quer aprender com os erros para fazer melhor e quem apenas gere a derrota é abismal.

O caminho está traçado: desmascarar Ventura e a extrema-direita, demolir as falácias económicas que sustentam a destruição de direitos, e reconstruir uma esquerda plural e combativa capaz de oferecer alternativa credível. A greve geral de daqui a semana e meia será um momento decisivo. Mas é apenas o começo de uma luta mais longa.

sábado, 29 de novembro de 2025

A falsificação da História

 

Dois artigos no «Público» de hoje expõem, de ângulos diferentes, a mesma operação: a tentativa da extrema-direita e da direita radical de falsificar a História para legitimar o seu projeto político presente. Pacheco Pereira desmonta um livro, São José Almeida desmonta a sessão solene. Juntos, revelam um padrão.

Pacheco Pereira analisa o livro "50 Vezes 25 de Novembro", prefaciado por Passos Coelho e com a participação de 31 autores, na sua maioria de extrema-direita. Muitos do Chega, candidatos autárquicos, membros do "governo-sombra", do ADN, da ala passista do PSD e da multidão de "repetidores" nas redes sociais, em podcasts e na academia. Se há extrema-direita e direita radical em Portugal, ela está representada neste livro.

O objetivo é claro: usar a falsificação da história para legitimar a direita radical e tornar o 25 de Novembro, na sua interpretação, como "o farol ideológico do sistema político que sucederia ao Estado Novo". Há dois aspetos preliminares relevantes: a desvalorização e, nalguns casos, a diabolização do 25 de Abril, e a dança de palavras simpáticas e moles para caracterizar entre o positivo e o neutro a ditadura.

Como diz Pacheco Pereira, o problema da direita radical em Portugal é que toda a sua história no século XX é maldita. O que é que vão lembrar? Os 48 anos de ditadura - palavra de que fogem como o Diabo da cruz -, Salazar, Caetano, a PIDE, a guerra colonial com o seu cortejo de violência, as prisões políticas, a repressão de trabalhadores e camponeses, a expulsão de professores das universidades, a cumplicidade com o regime do apartheid, o país que colocou a bandeira a meia haste quando morreu Hitler?

O país pobre, do pé descalço, de onde se emigrava para escapar à miséria, analfabeto, com taxas de mortalidade infantil "africanas", o país em que as mulheres eram gente de segunda, o país da censura que durou sem um dia de liberdade até à manhã do 25 de Abril, o país que assassinou Delgado para Salazar mentir. O país da corrupção - sim, o Chega mente quando sugere que não havia corrupção antes da democracia, simplesmente os "desfalques" da elite eram cortados pela censura. O país da tortura.

A "história" falsa do 25 de Novembro assenta em omissões deliberadas: do 11 de Março, da contrarrevolução a norte de Rio Maior, dos atentados, incêndios e assassínios que mataram mais gente do que o dia 25 de Novembro, do papel do PCP, do contexto internacional da Conferência de Helsínquia. Apagou-se o papel de Costa Gomes, que nem sequer o PS trouxe à sessão no Parlamento. Apagou-se ou secundarizou-se Mário Soares no plano civil, ou o Grupo dos Nove, Melo Antunes, Vasco Lourenço, Sousa e Castro e Ramalho Eanes.

E a farsa não ficou apenas no livro. Materializou-se na sessão solene que São José Almeida disseca. A ideia da celebração anual do 25 de Novembro pela Assembleia da República foi apresentada pelo CDS, aprovada com o apoio decisivo do PSD, com o objetivo nítido de celebrar um 25 de Novembro relido, tentando equipará-lo ao 25 de Abril. Uma tese esdrúxula, já que a Revolução dos Cravos é o momento seminal da democracia em Portugal, pondo fim a 48 anos de ditadura, com forte adesão popular desde o primeiro momento.

Com um Parlamento onde o centro-direita e a direita radical são claramente maioritárias, o CDS - hoje muito acantonado a um reacionarismo bafiento - sentiu-se à vontade para ajustar contas e criar uma narrativa desajustada. Mas esquece-se um detalhe fundamental: o CDS foi um dos derrotados do 25 de Novembro. A 2 de Abril de 1976, o CDS foi o único partido a votar contra a aprovação da Constituição, um momento estruturante da democracia em Portugal, equiparável e resultante do 25 de Novembro.

A sessão foi o espelho da releitura radicalizada, até na infantilidade da disputa em torno de flores. Ventura exerceu a sua violência retirando dois dos três cravos da tribuna. Foi preciso um deputado do PSD, Pedro Alves, repô-los junto às rosas, representando o equilíbrio democrático de Ernesto Melo Antunes, que após o 25 de Novembro foi à televisão anunciar que o PCP não seria ilegalizado.

Marcelo Rebelo de Sousa, no seu último discurso no Parlamento, apelou à "temperança", invocando a Carta de Bruges de D. Pedro de 1426, criticando os tempos de radicalização e extremismo. Mas as suas palavras foram, como nota São José Almeida, uma crítica à cerimónia a que presidia. Uma sessão que pode ser considerada uma manifestação ridícula de poder, mas é sintoma de algo mais profundo.

Como conclui São José Almeida, a história parte dos factos, mas a cada época é reinterpretada de acordo com o presente. Foi isso que o CDS tentou fazer, apoiado pelo PSD e pelo Chega - afirmar e demonstrar o seu poder através da manipulação da memória coletiva.

E Pacheco Pereira termina com uma sugestão devastadora: no dia 25 de Abril, centenas de milhares de pessoas saem à rua para o comemorar. Por que razão se fez uma parada militar e não uma manifestação, apelando aos portugueses para apoiarem a visão do "farol" do 25 de Novembro? Não é por falta de meios, órgãos de comunicação social, autocarros, influencers e bots do Chega nas redes sociais. A não ser que só faltem os portugueses.

Aí está a resposta. A História não se reescreve por decreto nem por sessões solenes fabricadas. E o povo português, esse, continua a saber distinguir entre a manhã que trouxe a liberdade e as tentativas patéticas de a deturpar.

Neste novo ciclo histórico, o pêndulo tende cada vez mais para a direita. Devemos esperar tempos de cada vez mais radicalização e extremismo. Mas a falsificação da História, por mais recursos que mobilize, continuará a esbarrar na memória viva de quem viveu a liberdade conquistada a 25 de Abril. E isso, nem Passos Coelho nem o Chega conseguem apagar. 

quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Autocrítica versus destruição

 

Em vez dos comentários à fantochada das ditas comemorações do 25 de novembro, a leitura do dia foca-se no texto de Pedro Nuno Santos no «Público» sobre os dez anos passados desde a formação da Geringonça. Vale a pena dedicar-lhe atenção porque contrasta brutalmente com o que se passa no presente.

Pedro Nuno analisa a experiência governativa de 2015-2019 e extrai lições para o futuro da esquerda portuguesa. Começa por reconhecer as conquistas: a solução PS-PCP-BE-PEV representou uma inovação democrática importante, demonstrando que era possível formar governo através de maioria parlamentar e que o PS podia governar sem depender da direita.

Crucialmente, provou-se que o equilíbrio orçamental não exige austeridade. Pelo contrário: a reposição de rendimentos e direitos cortados pela troika acelerou a recuperação económica. Houve aumentos históricos do salário mínimo sem provocar desemprego, descongelamento de pensões, redução de propinas, eliminação de taxas moderadoras, gratuitidade de creches e manuais escolares. Foi um período de elevada confiança institucional.

Mas Pedro Nuno não se limita ao elogio. Identifica falhas importantes: devia-se ter investido muito mais nos serviços públicos e nos salários da função pública. Na habitação, era preciso não só construir mais cedo como regular o mercado para travar a especulação financeira. Nas políticas migratórias, houve cedência excessiva às dinâmicas do mercado - a entrada de mais de um milhão de pessoas em meia dúzia de anos sem preparação adequada gerou problemas sociais que a esquerda não pode ignorar, sob pena de perder as pessoas que pretende representar.

A conclusão é clara: recuperar a confiança é essencial, mas vencer eleições só vale a pena se for para transformar estruturalmente como vive a maioria dos portugueses. É uma análise honesta, autocrítica e estratégica. Exatamente o oposto da postura de José Luís Carneiro, que prefere facilitar a vida a Montenegro em nome de uma moderação que não serve ninguém exceto a direita.

E o que faz Montenegro enquanto uns fazem autocrítica sobre não ter investido o suficiente nos serviços públicos? Destrói ativamente o que resta. A destruição do SNS prossegue conforme planeado. O governo impôs restrições brutais ao recrutamento de novos profissionais para o Serviço Nacional de Saúde. O limite de contratação foi fixado em 1,9% para 2025, uma redução dramática em relação ao limite de 5% de 2024.

As metas para cirurgias, consultas médicas e percentagem de utentes com médico de família também foram revistas em baixa. Em vez de aumentar as metas para responder às necessidades crescentes, o governo baixa-as. Assim fica mais fácil cumprir os objetivos - basta reduzir as expectativas e pronto, missão cumprida.

Em 2026, o SNS pode perder cerca de 2.000 profissionais, incluindo 575 médicos especialistas e 381 enfermeiros. Recordemos: há 832 idosos abandonados em hospitais à espera de vaga em lares, as cirurgias oncológicas caíram 16%, 1,5 milhões de portugueses não têm médico de família. E a resposta é cortar em 2.000 profissionais.

Não é incompetência de Ana Paula Martins. É execução do plano. Destruir o setor público até ao ponto em que quem pode foge para o privado e quem não pode fica sem nada. E enquanto o SNS colapsa deliberadamente, dois outros sectores revelam sinais preocupantes de infiltração da extrema-direita: as polícias e os bombeiros. Não é coincidência que nesses mesmos sectores cresçam as notícias de crimes hediondos.

Nas forças de segurança, descobriram-se militares da GNR e um agente da PSP envolvidos nos crimes de exploração de emigrantes repulsivamente explorados em herdades da zona de Beja. Os mesmos que deveriam proteger os mais vulneráveis estavam a colaborar na sua escravização.

Nos bombeiros, houve o caso da praxe com atos sexuais típicos de uma violação sobre um novo recruta de uma Associação dita Humanitária no Fundão. O adjetivo "humanitária" ganha contornos grotescos quando aplicado a quem pratica ou tolera violência sexual sobre os seus membros.

Não havendo provas dos envolvidos serem apaniguados do partido de Ventura, os seus crimes estão em consonância com os muitos que regularmente se noticiam sobre gente ligada a essa organização indevidamente legalizada. O padrão repete-se: violência, abuso de poder, exploração dos mais fracos, racismo institucional.

A extrema-direita faz trabalho de recrutamento sistemático nas forças de segurança e nos bombeiros, aproveitando o descontentamento com salários baixos, falta de meios e desvalorização profissional. E quando a extrema-direita se instala, normaliza-se a brutalidade, o abuso de autoridade, a cumplicidade com quem explora e viola. São os mesmos que se dizem defensores da lei e da ordem, da família e dos valores tradicionais. Enquanto escravizam emigrantes e violam recrutas.

O contraste não podia ser mais claro. De um lado, quem faz autocrítica honesta sobre o que podia ter feito melhor quando governou. Do outro, quem destrói deliberadamente o que ainda funciona e infiltra as instituições com quem normaliza a violência e o abuso. De um lado, quem quer transformar para melhor. Do outro, quem transforma para pior, sistemática e conscientemente.

A hipocrisia é estrutural, não acidental. E o tempo para a travar esgota-se. 

terça-feira, 25 de novembro de 2025

A Reinvenção Política da Misoginia

 

Não assume ainda a gravidade do que se passa noutras geografias — onde a afirmação de uma masculinidade medrosa perante o ascendente social e profissional das mulheres traduz-se em números tremendos de violência doméstica e de violações —, mas a situação tende a replicar-se entre nós por obra e graça do Chega, que contém na sua essência todos os estereótipos de uma cultura misógina.

Há muito que sabemos que o antifeminismo não é um ruído periférico: é um sistema coerente de crenças, de medos e de narrativas sobre o que deve ser o lugar das mulheres na sociedade. O que mudou, nos últimos anos, foi a intensidade com que esse imaginário se diz em voz alta e a legitimidade pública que encontra em certos discursos políticos.

Muitos destes discursos não se limitam a contestar políticas de igualdade — apresentam as conquistas feministas como uma ameaça ontológica, como se a autonomia das mulheres fosse sinónimo de desordem. A retórica do “exagero feminista”, combinada com a fantasia da “dominação feminina”, cria um caldo de ressentimento que alimenta tanto as versões mais institucionais do antifeminismo como as suas vertentes subterrâneas, onde se misturam masculinismos belicosos, frustrações sexuais transformadas em ideologia e apelos explícitos à violência.

Quando Christine Bard fala da entrada numa época em que a misoginia é assumida sem véus, parece descrever precisamente esta fase de radicalização em que o ódio às mulheres já não precisa de subterfúgios. Nos Estados Unidos, a brutalidade verbal de Donald Trump tornou-se quase performativa; em França, a “manosphère” reorganiza-se com um vigor perturbador; e, em Portugal, certas figuras políticas captam, com eficácia, esse mal-estar difuso de homens que se imaginam superados, humilhados ou ameaçados pelo simples facto de as mulheres reclamarem igualdade. Não há aqui originalidade ideológica — há apenas reciclagem de um velho patriarcado munido agora de algoritmos e megafones digitais.

O mais preocupante é que esta nova vaga antifeminista, longe de ser apenas uma guerra de ideias, traduz-se em práticas concretas: ataques coordenados em linha contra mulheres que ocupam o espaço público; tentativas de descredibilizar vítimas de violência sexual; romantização de modelos familiares hierárquicos; reabilitação de mitos sobre “naturezas femininas” e “naturezas masculinas”; e, sobretudo, a reafirmação de que o corpo das mulheres deve permanecer disponível, regulamentado, controlado.

O que se passa não é apenas um conflito entre modernidade e tradição, mas uma verdadeira luta pelo imaginário social. De um lado, a reivindicação legítima de dignidade e segurança; do outro, a fantasia de que os homens estariam a perder algo que nunca lhes pertenceu por direito. Neste ponto, a história é clara: cada avanço feminista — do voto ao divórcio, do trabalho ao controlo da reprodução — gerou um contra-ataque. A novidade do presente reside no facto de esses contra-ataques acontecerem num ambiente saturado de desinformação, radicalização acelerada e erosão democrática.

Daí que a resposta feminista contemporânea não possa limitar-se à justiça ou à pedagogia. Exige vigilância, redes de apoio, coragem pública e, sobretudo, a capacidade de desmontar esta ficção persistente de que a igualdade seria uma forma de hostilidade. Porque o que verdadeiramente está em disputa não é o poder “das mulheres”, mas o direito de viver sem medo — e isso, para quem se beneficia do medo, é intolerável. 

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Destruição sistemática

 

A leitura do jornal da Sonae, apesar de condicionada por saber que interesses secunda por obrigação de submeter-se a quem paga as despesas, não deixa de permitir a constatação de como o projeto político de quem nos diz governar é o de destruir as bases de um importante papel do Estado em tudo quanto mais importa aos eleitores. Mesmo que, por agora, e segundo as sondagens, os prejudicados ainda continuem a dar benefício da dúvida a quem a não merece.

Os números são devastadores e revelam a dimensão do colapso programado do sistema de cuidados. Há 832 idosos internados em hospitais com alta clínica à espera de vaga em lares. Alguns aguardam há mais de quatro anos. A taxa de internamentos inapropriados aumentou 20% entre 2023 e 2025.

As admissões em lares caíram de 2175 em 2021 para 923 em 2024 - uma queda de 38%. Até 22 de outubro de 2025, apenas 697 admissões foram registadas. A lista de espera para cuidados continuados atinge 2300 utentes. E as consequências são trágicas: 21 idosos morreram no Hospital de São João enquanto aguardavam transferência.

O prolongamento dos internamentos aumenta o risco de infeções e agravamento da saúde. Os hospitais ficam bloqueados com doentes que não precisam de estar ali mas não têm para onde ir. E a resposta do governo? Cortar no Plano de Recuperação e Resiliência. O número de novas camas planeadas foi reduzido de 7400 para 3550. A redução de vagas em equipamentos sociais agrava ainda mais a situação.

Ana Paula Martins continua no cargo. Montenegro continua a falar de "reformas" e "modernização". E 832 idosos continuam presos em hospitais, ocupando camas que outros doentes precisam, à espera de uma vaga que pode nunca chegar. Ou que só chegará quando já for tarde demais.

Paulo Prudêncio expõe a dimensão da catástrofe educativa. O orçamento para a educação caiu de 8 mil milhões de euros para 7,4 mil milhões em 2025 e 7,7 mil milhões em 2026. O PIB da educação deve cair para cerca de 2,8% e pode aproximar-se de 2% até ao final da década - níveis que nos remetem para décadas atrás.

Os números da profissão docente revelam uma bomba-relógio: desde 2001, entre 3500 e 4000 professores aposentam-se anualmente, enquanto apenas 2000 novos professores entram no sistema. A matemática é simples e brutal: o sistema está a sangrar professores e ninguém faz nada para estancar a hemorragia.

A qualidade do ensino está a ser comprometida. Professores sobrecarregados, serviços extraordinários atribuídos como norma, turmas cada vez maiores. E enquanto a escola pública definha, o investimento privado dispara. O número de colégios internacionais aumentou de 9 em 2010 para 18 em 2021, com investimentos significativos de grupos privados. Escolas privadas com altas propinas destacam-se, aumentando a disparidade no acesso a tecnologias educacionais.

O investimento financeiro das famílias tornou-se crucial, gerando um efeito de bola de neve nas desigualdades. Quem pode pagar tem acesso a educação de qualidade. Quem não pode fica preso numa escola pública deliberadamente destruída, com professores exaustos e recursos minguados.

Glória Rebelo completa o retrato da destruição. 34% dos portugueses consideram deixar o país. Entre os jovens de 18 a 24 anos, a percentagem sobe para 73%. Leram bem: três em cada quatro jovens querem emigrar.

O mercado de trabalho é considerado pouco atrativo, especialmente para jovens licenciados. Estudam, licenciam-se, e depois percebem que em Portugal os salários não chegam para pagar renda, que a precariedade é norma, que a meritocracia é uma ilusão. E fazem as contas: com a mesma qualificação ganham o triplo em qualquer país europeu. A escolha é óbvia.

A inovação está estagnada. Como não estaria, se os cérebros fogem? Como pode um país inovar quando exporta sistematicamente os seus jovens mais qualificados e fica com uma população envelhecida, sem renovação geracional nas empresas, nas universidades, na função pública?

Juntemos as três peças do puzzle: idosos abandonados em hospitais à espera de morrer, educação pública destruída para beneficiar privados, e jovens qualificados a fugir em massa. O resultado é um país condenado ao declínio demográfico, económico e social.

Não é acidente. Não é incompetência. É destruição deliberada. É projeto político executado com método: destruir o público, precarizar o trabalho, expulsar os jovens, abandonar os velhos. E depois queixarem-se da baixa natalidade e do envelhecimento. A hipocrisia é tão grande quanto a crueldade.

E os prejudicados, segundo as sondagens, continuam a dar benefício da dúvida a quem os está a destruir. Até quando? 

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

A velhacaria é opção

 

Três notícias de ontem revelam, cada uma à sua maneira, o retrato da extrema-direita contemporânea: corrupção disfarçada de moralismo, hipocrisia elevada a sistema, e a tentação recorrente de procurar explicações biológicas para aquilo que é, simplesmente, uma escolha política.

Comecemos pela TAP. O Ministério Público investiga suspeitas de que os empresários David Neeleman e Humberto Pedrosa compraram a companhia em 2015 com o dinheiro da própria empresa. O consórcio Atlantic Gateway adquiriu 61% da TAP por apenas 10 milhões de euros, seguindo-se uma capitalização de 226,75 milhões de dólares com suspeitas de que os fundos vieram da Airbus. A compra de 53 aviões está ligada à privatização e é alvo de investigação por possíveis preços inflacionados.

A operação de buscas incluiu três grandes sociedades de advogados: PLMJ, Vieira de Almeida e Cuatrecasas. Uma auditoria da Inspeção-Geral de Finanças revelou pagamentos de 4,3 milhões de euros a administradores sem evidências de critérios claros. Humberto Pedrosa e David Neeleman foram constituídos arguidos, suspeitos de fraude fiscal qualificada e fraude à Segurança Social.

Detalhe relevante: a família Pedrosa, dona da Barraqueiro, é conhecida como financiadora do Chega. O partido que se diz contra a corrupção é financiado por quem está a ser investigado por ter comprado uma empresa pública com o dinheiro dessa mesma empresa.

E a inépcia junta-se à velhacaria: o deputado do Chega Manuel Magno Alves pediu reembolso de viagem nas mesmas datas em que faltou por doença. O presidente da Assembleia recusou o pagamento porque, pela segunda vez, o deputado atrasou-se a pedir autorização prévia para as deslocações ao Brasil. Pequenas fraudes quotidianas que revelam o carácter de quem as pratica.

Enquanto isto acontece, uma terceira notícia completa o quadro: há 15 anos, o Rendimento Mínimo Garantido concedia um apoio entre 60% e 80% do limiar da pobreza. Em 2023, já rebatizado como Rendimento Social de Inclusão, garante apenas 40% daquele valor. Um estudo apresentado ontem demonstra a "deterioração do RSI em relação ao limiar da pobreza". O dinheiro existe. Está é nas mãos erradas.

Do outro lado do Atlântico, os admiradores do trumpismo também enfrentam embaraços. O Congresso dos EUA aprovou, com quase unanimidade, uma lei que obriga o Departamento de Justiça a publicar todos os documentos relacionados com Jeffrey Epstein, o financeiro acusado de exploração sexual de menores e morto na prisão em 2019.

Trump, inicialmente contrário à divulgação, acabou por apoiar a medida após forte pressão da sua própria base republicana. O episódio revela uma perda de controlo sobre o seu partido desde o regresso à Casa Branca. Para parte do movimento MAGA e adeptos da teoria conspirativa QAnon, o caso Epstein simboliza um suposto "Estado profundo" envolvido em redes de pedocriminalidade. Trump, que alimentou estas narrativas em campanha, tenta agora desvalorizá-las como "embuste democrata", mas vê-se ultrapassado pelos seus apoiantes.

Sobreviventes de Epstein manifestaram-se diante do Congresso, exigindo justiça e denunciando a politização do seu sofrimento. Algumas acusaram Trump de proteger aliados e doadores ao resistir à publicação dos documentos. E apesar de negar qualquer ligação direta a Epstein, emails divulgados pelos democratas sugerem que Trump tinha conhecimento de certos abusos.

A ironia é cristalina: o líder populista que alimentou teorias conspiratórias sobre pedofilia nas elites vê-se agora encurralado pela própria base, que exige transparência sobre as suas ligações a um predador sexual. Tal como os financiadores do Chega em Portugal, que estão a ser investigados por fraude fiscal qualificada.

Perante tanta podridão moral, poderíamos ser tentados a procurar explicações biológicas. Seria o ADN dos apoiantes do Chega semelhante ao dos nazis? A propósito de um documentário do Channel 4, o médico-legista francês Philippe Charlier repudia essa tentação.

O documentário britânico "Hitler's DNA: Blueprint of a Dictator" fundamenta-se nos trabalhos de quem sequenciou o ADN de Adolf Hitler, sugerindo predisposições genéticas para autismo, esquizofrenia, bipolaridade.

Charlier é demolidor na crítica. Primeiro, não há garantia de que o material genético seja realmente de Hitler. Segundo, os resultados são apenas probabilidades estatísticas aplicáveis a populações, não a indivíduos. Terceiro, e mais grave, este tipo de abordagem pode levar a justificar ou relativizar os crimes como consequência de doenças genéticas, o que é cientificamente errado e moralmente perigoso.

O ADN é apenas uma parte mínima da equação. O ambiente, a experiência individual e o contexto histórico são determinantes. O documentário recorre ao sensacionalismo sem rigor científico, caindo paradoxalmente na mesma lógica da obsessão nazista pela "pureza genética".

Hitler foi um monstro pelas suas ações, não pelos seus genes. E os apoiantes do Chega que financiam o partido enquanto roubam empresas públicas, ou que pedem reembolsos fraudulentos, não o fazem por determinismo genético. Fazem-no por escolha, por ganância, por cumplicidade com um projeto político que normaliza a corrupção enquanto acusa os outros dela.

O ADN não é destino. A hipocrisia não tem limites. Mas a velhacaria é sempre uma opção consciente. E deve ser tratada como tal.