Há dias em que a leitura da imprensa revela um padrão tão claro que se torna impossível ignorá-lo: vivemos num país que prefere a ilusão à realidade, o espetáculo à substância, a culpabilização das vítimas ao reconhecimento de injustiças estruturais.
Comecemos pelas mulheres. Helena Pereira comenta no «Público» um relatório da CIG que expõe um paradoxo brutal: quanto mais as mulheres avançam na carreira, maior tende a ser o fosso salarial face aos homens. A diferença passa de 4,6% nos estágios para 26,5% nos quadros superiores, muito ligada a prémios e remuneração variável onde persistem estereótipos. No geral, as mulheres trabalham mais 64 dias por ano para igualar o salário masculino. Um país estruturalmente misógino.
E quando surgem denúncias de abuso e violência envolvendo figuras prestigiadas? Ana Sá Lopes denuncia o padrão: surgem redes de proteção social, inclusive de gente que se diz feminista. O abaixo-assinado "anti-cancelamento" em defesa de Boaventura Sousa Santos inverte o ónus e transforma as acusadoras nas culpadas. A autora alarga a crítica à cultura de impunidade do país, concluindo que o discurso público sobre defesa das mulheres é muitas vezes vazio e oportunista.
António Guerreiro, no Ípsilon, vai mais fundo ao analisar a dimensão psicológica do autoritarismo. Recorrendo a Adorno e Wilhelm Reich, sugere que repressão, "virilismo", submissão ao chefe e circulação libidinal alimentam o irracionalismo político. Usa o contraste entre o discurso punitivista sexual do Chega e os casos de abusos envolvendo membros do partido para explorar a ideia de "carácter" autoritário. Responder a Ventura com debates racionais tradicionais falha porque a extrema-direita usa técnicas retóricas que contornam teoria e prova.
E não é apenas misoginia e autoritarismo. É também racismo normalizado. Guerreiro reflete, noutro texto, sobre o anticiganismo como racismo socialmente tolerado, problematizando como a linguagem ("comunidade cigana") pode ser um eufemismo que marca distância e exclusão, tornando certos grupos "baníveis" sem escândalo.
A direita, entretanto, dedica-se a propaganda e ilusionismo. Carlos Moedas esteve presente em apenas 2 de 7 reuniões do conselho consultivo europeu da habitação - verificação do «Público» confirma a acusação de Alexandra Leitão. Mas isso não impede que continue a apresentar-se como solução para a crise habitacional que ajuda a agravar.
E Montenegro, no discurso de Natal satirizado por Tiago Franco, dedica-se à moralização e propaganda: "excelência", Cristiano Ronaldo, "nada cai do céu". Culpabiliza os comuns, ignora precariedade e desigualdades, apela ao esforço enquanto ostenta privilégio e cinismo. É a "mentalidade vencedora" transformada em doutrina oficial.
Na ciência e inovação, o padrão repete-se: anúncios em vez de políticas. Ricardo Paes Mamede critica no «Público» a criação da AI2, que funde FCT e ANI, tanto pelo processo (pouco estudo, pouca consulta) como pelo modelo. O governo parte de um diagnóstico enganador: o fraco desempenho inovador não se explica só por pouca I&D empresarial, mas pela estrutura produtiva e pela fraca capacidade das empresas. Alerta contra a visão "linear" de que ciência gera automaticamente competitividade. Mais uma reforma feita para a galeria.
E quando olhamos para fora, vemos os mesmos padrões a escala global. O Libération reporta campanhas de plantação de árvores no leito seco do mar de Aral para travar poeiras tóxicas. A ideia tem base científica, mas na prática muitos projetos falham por salinidade e falta de acompanhamento. É "green branding": drones a largar sementes, créditos de carbono, encenação de solução enquanto as causas estruturais - má gestão da água, poluição - persistem. Espetáculo em vez de substância.
E em Gaza, como denuncia José Goulão, assistimos à desumanização dos palestinianos contraposta com o "humanitarismo" do resgate de burros, símbolo de hipocrisia moral e propaganda enquanto civis, incluindo crianças, não recebem a mesma proteção.
O padrão é sempre o mesmo: culpabilizar as vítimas, proteger os poderosos, preferir o espetáculo à solução, a propaganda à verdade. As mulheres são castigadas pelo seu sucesso mas culpadas quando denunciam abusos. Os trabalhadores são acusados de não terem "mentalidade vencedora" enquanto o sistema os explora. Os ciganos são excluídos mas a culpa é atribuída a eles por não se "integrarem". O planeta arde mas plantam-se árvores para as câmaras enquanto as causas persistem.
Este é o país que não queremos ver mas que existe: estruturalmente misógino, protetor de abusadores, racista normalizado, autoritário na psicologia coletiva, governado por ilusionistas que vendem propaganda como política. E enquanto não o virmos como é, não poderemos mudá-lo.

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