sexta-feira, 26 de dezembro de 2025

A farsa da mentalidade vencedora

 

O comentário de Susana Peralta sobre a candidatura de Manuel João Vieira à presidência da República merece-me plena concordância. Tratando-se de uma performance artística ao nível do que o ator, cantor e artista plástico nos habituou, ela serve, de facto, o propósito de questionar o que de burlesco existe nesta eleição.

Não justifica que nele vá votar - reservo esse momento para apoiar um dos três candidatos de esquerda no boletim a depositar na urna (e Seguro não é decerto um deles!) -, mas estarei mais atento ao que Vieira fizer na campanha eleitoral do que a qualquer outro dos candidatos. Até por ser o único capaz de me divertir.

Como o conseguiu o admirável David Almeida, o mandatário da candidatura, ao propor - ele que tem nanismo! - a substituição de três salazares (sim, com letra bem minúscula!) pelos proverbiais sete anões. A metáfora é perfeita: de um lado, as três variantes do autoritarismo que assombra estas eleições; do outro, a força coletiva, diversa e resistente de quem recusa render-se ao medo.

O burlesco político sempre foi arma contra ditadores e aspirantes a tal. Porque o riso despe o rei, mostra que o imperador está nu. E numa campanha dominada pela pose solene de candidatos que se levam demasiado a sério enquanto propõem regressos a passados que deveríamos ter enterrado, Vieira presta um serviço à democracia: lembra-nos que não temos de aceitar este teatro como se fosse tragédia inevitável.

Mas o burlesco não está apenas na performance de Vieira. Está também, involuntariamente, na mensagem que Montenegro endereçou aos portugueses incitando-os a ter uma "mentalidade vencedora" como a de Ronaldo. Inês de Medeiros teve uma reação certeira: ele aparece como uma espécie de mentor de autoajuda com tudo o que de frívolo isso comporta.

Porque muitos serão quantos não se reconhecem na dita mentalidade vencedora de criado de um assassino de um jornalista - e dos muitos executados anonimamente no seu reino -, nem de lambe-botas do momentâneo homem forte em Washington, cuja demência, mesmo que muito perigosa, vai-se tornando indisfarçável.

E o próprio Montenegro ostenta uma "mentalidade vencedora" que, mesmo transitoriamente eficaz, não deixa de ser a de um pato bravo que compensou a falta de talento para outros afazeres com a habilidade para se fazer avençado de uns quantos patronos nada acima de suspeitas.

A escolha de Ronaldo como modelo é reveladora. Num país onde 73% dos jovens querem emigrar, onde os salários não chegam ao fim do mês, onde a habitação é inacessível e a saúde colapsa, o primeiro-ministro propõe como solução uma "mentalidade vencedora" individual. Não políticas públicas, não investimento, não direitos - apenas uma forma de pensamento mágico de tosco empreendedor.

É a privatização da esperança. Se falhas, a culpa é tua: não tiveste mentalidade suficientemente vencedora. Se tens contrato precário a vida toda, se não consegues pagar renda, se adoeces e não há médico - a culpa é da tua mentalidade derrotista. O sistema está perfeito. Quem falha és tu.

E a realidade vem desmentir a mitologia. Sobra da quadra a notícia do português baleado no Maryland, em jeito de toque de finados pela mitologia em torno da "terra das oportunidades" para onde muitos mudaram em busca de ilusória riqueza. Raramente dão mais que um passo para cima no elevador social, mas pagam o preço completo: a violência quotidiana, a precariedade sem rede de segurança, a segregação racial e social.

Para muitos, adivinho os pesadelos de se verem deportados para a origem e nela se verem desafiados a fazerem os mesmos sacrifícios vertidos para a madrasta terra ianque. Talvez com o mesmo esforço conseguissem o mesmo resultado - mas num país onde não se morre baleado a caminho do trabalho, onde existe sistema de saúde público, onde a violência não é a norma.

A "mentalidade vencedora" de Montenegro encontra aqui a sua verdade nua: emigrar não é vencer, é fugir. É a admissão de derrota de um país que expulsa os seus jovens porque não lhes oferece futuro. E depois vende-lhes como sucesso individual o que é fracasso coletivo.

Os Estados Unidos de Trump são o laboratório extremo do modelo que Montenegro quer para Portugal: cada um por si, que vença o mais forte, e se morreres baleado no caminho é porque não tiveste mentalidade suficientemente vencedora. É este o futuro que nos vendem como progresso.

É obsceno. E diz tudo sobre quem governa: alguém que confunde sucesso pessoal com mérito, que transformou habilidade para servir patronos em carreira política, e que agora vende aos portugueses a mesma receita: lambe as botas certas e terás sucesso.

Contra esta farsa, resta-nos o riso de Vieira e a revolta organizada de quem recusa aceitar que a culpa do colapso seja individual. O sistema não está perfeito. Está desenhado para falhar com a maioria. E reconhecê-lo não é mentalidade derrotista - é o primeiro passo para o mudar.

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