terça-feira, 15 de agosto de 2017

Ver ou não ver (a verdade), eis a questão

No seu mais recente romance - «O Deslumbre de Cecilia Fluss» - João Tordo põe um dos personagens, Matias, a contar uma história a companheiros de viagem com a intenção de lhes ministrar um ensinamento importante.
Existiu um homem, que teve de se ausentar da aldeia onde vivia para tratar dos seu negócios numa outra. Quando regressou os bandidos tinham por ali passado e queimado grande parte das casas juntamente com os seus habitantes.
Mortificado o homem procurou o cadáver do filho e identificou-o no corpo irreconhecível de uma das vítimas e cuidou de lhe prestar o devido ritual fúnebre. Concluído este, levou as cinzas para casa e colocou-as num altar onde poderia prestar-lhe diariamente o seu tributo.
Acontece, porém, que o filho fora levado pelos bandidos para lhes servir de escravo e nunca perdera a intenção de regressar a casa. Ao fim de algum tempo conseguiu fugir e, dias depois, estava a bater à porta do progenitor para se acolher nos seus braços.
Acontece que o homem convencera-se de ter nas cinzas do retábulo o que restara do filho, pelo que o rapazola do outro lado da porta não poderia ser senão um impostor.
Cansado de o tentar convencer do contrário, o rapaz zarpou da aldeia do pai para ali nunca mais voltar.
A moral da história é simples: quando alguém se convence de algo, rejeita ver a verdade nem que ela lhe venha bater à porta.
Vem isto a propósito de mais uma crítica de Jaime Santos a um post aqui publicado: "A luta de classes que se mantém na ordem do dia". Eis o texto daquele nosso atento leitor:
“Eu não me refiro a considerações teóricas que na maioria desconheço. Refiro-me, isso sim, ao programa político do PCP, por exemplo, ou aos corbynistas, que parecem ignorar que existe uma coisa chamada progresso tecnológico que é, mais do que a globalização, o grande responsável pela destruição de muito do bom emprego que existia. É certo que tudo isto depende também da força do movimento sindical, por exemplo, mas não podemos (nem queremos) regressar aos modelos produtivos dos anos 70, desde logo olhe-se para a destruição ambiental que produziam (e ainda produzem no mundo em desenvolvimento). Trata-se de um mundo morto ao qual não é possível voltar. A questão é qual é o modelo produtivo que combinará decrescimento, prosperidade e dignidade social para todas as faixas da população. Sobre isso, não ouvi ainda nada, para além das considerações requentadas sobre o 'pleno emprego' (Piketty é bem mais eloquente ao apontar o dedo à distribuição de rendimentos, porque políticas re-distributivas são algo que um Governo pode sempre implementar). Em paralelo, há igualmente uma estagnação da produtividade que o progresso tecnológico não está a travar e que tem provavelmente que ver com o facto de que a terceira revolução industrial não está a ter, nem de perto nem de longe, o efeito da primeira e da segunda (do carvão e do vapor, e do petróleo e da eletricidade, respetivamente). Ou a Esquerda é capaz de avançar com novas soluções para estes problemas, ou vai mesmo pelo cano abaixo... E isto tem muito mais que ver com distribuição do trabalho, métodos de gestão e inovação do que com a questão de sabermos qual é o modelo da boa sociedade. Requer Tecnocracia de Esquerda, antes de requerer Filosofia Política (e note-se o desastre que foram as experiências marxistas em todas estas matérias)... Por isso é que o Liberal Mário Centeno é mesmo o Economista mais radical que temos em Portugal, porque mantém a Geringonça a funcionar…”
Como aqui tenho referido existe uma contradição insanável entre mim e Jaime Santos: enquanto continuo a apostar no marxismo (devidamente atualizado para as circunstâncias presentes e em função dos ensinamentos conferidos pela História) como bússola orientadora da nossa evolução civilizacional, o nosso interlocutor cola-lhe um anátema incontornável, defendendo que todas as experiências de passagem da teoria de Marx e Engels à prática resultaram em tragédias com inumeráveis vítimas a contabilizar em seu desfavor.
Concordo que qualquer modelo ideológico futuro não pode isentar-se de dar solução à perda de milhões de empregos à conta do inevitável progresso tecnológico. Nem pôr o pescoço debaixo da areia para não ver a importância de reverter a ameaça suscitada pelo aquecimento global do planeta. Nesse sentido subscrevo por inteiro a ideia de ser estulta a vontade do PCP em voltar atrás no tempo e apostar nas antigas indústrias dos anos 60 ou 70 para garantir o direito ao trabalho á maioria da população.
No que discordo de Jaime Santos é na forma como condena as esquerdas por não encontrarem soluções passíveis de conseguirem uma melhor distribuição do trabalho num cenário capaz de aliar decrescimento económico com prosperidade e dignidade social. Será que as direitas possuem alternativas, que impeçam uma imprevisível turbulência social e política? Do que vimos desde o crepúsculo irreversível do ideário social-democrata, não existem modelos de sucesso balizados na defesa das leis de mercado e da concorrência em época de globalização.
Concedo que tanto eu como o Jaime Santos nos podemos acusar mutuamente de sermos os pais da história contada pelo João Tordo: nem eu quero ver a falência dos modelos marxistas, nem ele acede à possibilidade de eles não estarem tão datados e ultrapassados quanto julga.
Foi Mandela quem disse um dia que os impossíveis só o são até se tornarem possíveis. E a solução poderá ser a de não complexificar, a de não tornar difícil o que deve ser «Kiss» (keep it smart and simple). Afinal Einstein só conseguiu demonstrar a teoria da relatividade quando abandonou a tentativa de demonstração num modelo tridimensional para um outro unidimensional. Talvez o marxismo precise disso mesmo: em vez de se baralhar com tanta polémica em seu torno talvez só tenha de voltar ao essencial, ao que é invisível para os olhos, mas torna-se óbvio quando visto por outras lentes: a agudização da luta de classes tenderá sempre a resolver-se numa contradição, que beneficiará finalmente os 99% de explorados e neutralizará o 1% de exploradores. Chamem-se uns proletários e outros burgueses, ou trabalhadores uns e plutocratas os outros.
Há leis sociais, que têm tanto de indiscutível quanto os mais firmes axiomas matemáticos!

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