quinta-feira, 6 de abril de 2017

Quando, mesmo havendo cores, a realidade era cinzenta

É a historiadora Irene Pimentel quem diz inevitável a memória do Estado Novo a preto-e-branco, mesmo sabendo as cores então existentes pelo facto de haver sol ou praia. Mas quem viveu o suficiente para guardar recordações desse passado será difícil esquecer o quão nos pareceu limpo o dia da revolução dos cravos, clara a manhã do dia seguinte.
O tempo da outra senhora era o da ameaça de ir para a guerra colonial, passar pelos calabouços da Pide ou sujeitar-se às cargas da polícia de choque. Era o ter atenção a quem estava à volta, porque as palavras proibidas iriam ganhar espaço nas fichas meticulosas dos que as registavam para aproveitamento futuro. Era a precaução de esconder as capas dos livros comprados às escondidas ou trazidos clandestinamente de outras paragens. Era o desenvolvimento da capacidade de discernir o pouco de verdade,  que se escondia por trás das mentiras desfiadas nos jornais, na rádio, na televisão.
Tudo isso tornava cinzenta a realidade, que se abstinha da beleza das cores. Amar era difícil, porque, perguntava a poesia vertida em canção, como amar perdidamente com tanto amigo na prisão.
Olhando para as fotografias da época os cenhos estão carregados, porque as inquietações eram demasiadas para lhes facultar alguma descontração. E os que a pátria madrasta promovia a heróis tinham pés de barro, que os não sustinham na verticalidade da nossa admiração. Essa ia para os outros, os que iludiam o medo e ousavam dizer não, mesmo que à custa de agressões sem fim.
Não admira que, quarenta e três anos depois, os meses de setenta e quatro e setenta e cinco tenham sido, para a maioria dos que os viveram, os mais memoráveis das suas existências. Porque, de súbito,  tudo pareceu tornar-se possível. Até a consciência de o nunca ter deixado de ser pensado, de ser dito...

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