quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Explorados 24 horas por dia, 7 dias por semana

Volto à Conferência de Sampaio da Nóvoa no Teatro da Trindade a propósito de um livro por ele referido duas vezes e cuja importância se confirma no merecimento da sua sintética abordagem no editorial de hoje do L’Obs: «24/7» de Jonathan Crary.
O tema é muito simples: o capitalismo vende-nos hoje a água que bebemos, a comida que ingerimos, a casa onde habitamos, o ensino em que nos formamos, a saúde em que nos curamos e até o amor, o diálogo e as amizades passam pelo crivo do sistema sob as mais variadas formas de nele gastarmos os rendimentos auferidos por um trabalho de cujas mais-valias somos espoliados. E o autor dedica o ensaio à última fronteira, que falta ser assaltada pelos que detém o capital: o sono.
Hoje em dia quase constitui pecado inconfessável dizer-se que se dorme excelentemente  e por muitas e longas horas. O contrário é tido como motivo de admiração: não se promoveu o atual presidente da República à conta das escassas horas em que se rendia a essa inevitabilidade para dispor de mais tempo para as suas leituras? Não constitui motivo de invetiva nas empresas a expressão “você anda a dormir demais!”?
O capitalismo desejaria transformar aqueles cujo trabalho explora em homens-máquina, sempre prontos a trabalharem com a mesma argúcia cognitiva, sem cederem ao cansaço. É na falta dessa possibilidade de aumentarem a produtividade dos seus explorados, que os donos dos meios de produção apostam na robótica, na automação e em algoritmos, que erradiquem o lado, para eles negativo, do fator humano na sua produção.
O problema que se lhes colocará num prazo mais ou menos curto é a irrefutabilidade do paradoxo um dia levantado por um sindicalista americano ao administrador de uma das fábricas da Ford, então exultante por lhe facultar visita guiada à nova linha de produção inteiramente automatizada e sem qualquer participação de trabalhadores de carne-e-osso.
- Está a ver, meu caro? Com estes trabalhadores não existe dia, nem noite, horários de trabalho, salários ou subsídios de refeição!
Antevendo o quanto tinha de desinteressada essa apresentação das novas tecnologias perante a iminência da discussão contratual, o interlocutor respondeu-lhe:
- É impressionante, deveras! Mas, permita-me uma pergunta: quando todas as fábricas forem assim a quem irão os senhores vender os vossos carros?
Esta história é edificante e merece acompanhar-nos quando entramos numa discussão com quem nos quer convencer da impossibilidade em encontrar alternativa a esta organização social baseada na utilização intensiva do comércio livre e da privatização universal de todos os bens transacionáveis.
Sobre a TINA (there is no alternative) estamos conversados: quer entre nós com o governo apoiado pela maioria parlamentar das esquerdas, quer pelo resto da Europa, com o fracasso sucessivo das estratégias austeritárias, constatamos a falência ideológica de um sistema cuja sobrevivência se vai assemelhando a sucessivos estertores de um moribundo. Perante a anunciada contestação avassaladora de uma globalização, que só serviu para tornar os ricos ainda mais ricos, e todos os outros mais pobres, Trump e outras extremas-direitas apostam no regresso ao protecionismo, como se o sistema pudesse voltar para trás e retomar fôlego onde ele significou deslocalização de fábricas, abandono de minas e a aceleração na irreversível quebra do volume de empregos disponíveis.
Na Conferência do Chiado, Sampaio da Nóvoa comparava o questionar do sistema ao que se dizia dos bancos há dez anos, tidos como demasiado grandes para declararem bancarrota. A realidade mostrou o que valia esse falso axioma. Com o sistema, que tudo nos vende desde que acordamos até que nos voltamos a deitar, sucede o mesmo: aparenta ser demasiado grande e poderoso, mas mostra-se dia-a-dia com pés de barro. Incapaz de se regenerar, de se recriar imaginativamente numa qualquer solução miraculosa, retoma as velhas, e mais do que gastas, receitas para encontrar inexistente saída no beco em que se enclausurou. Encurralado por quem o detesta e o quer ver substituído por alternativa mais humana e justa, mantém força bastante para nos causar gravoso dano, mas o enterro já lhe está encomendado.
Cabe às esquerdas o imperativo de lhe apressarem a agonia.

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