sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

À cabeceira dos abandonados

Se aqui tenho, amiúde, feito a defesa intransigente do ateísmo e condenado o beato assistencialismo de Isabel Jonet, devo reconhecer o efeito positivo gerado por muitos crentes, que veem na compaixão pelo outro uma forma de se encontrarem com a divindade em que acreditam.
Veio-me isso a propósito de uma reportagem de Fanny Lépine sobre os esquecidos a quem Grégoire Ahongbonon dedica a vida no seu Benim natal: os doentes mentais.
Nos anos em que aportei a cidades africanas nunca me ficou memória de alguma vez ter dado de caras com alguém com esses sintomas. Não admira, porque os comportamentos desviados das normas são um enorme tabu por todo o continente. A explicação mais lógica para o que identificamos como epilepsias ou depressões profundas é dada pelas crenças nos bruxedos, que fazem de tais pacientes presas fáceis da charlatanice liderada por feiticeiros e marabus.
Em quase todos os casos não surgem sinais da prometida cura.O resultado é ver esses doentes postos à margem pelos familiares, que os agridem e até acorrentam.
Foi ao ter passado por uma crise pessoal bastante grave, envolvendo pulsões suicidas, que Grégoire descobriu a nova vocação. Depois de ter sido empresário de sucesso e ter conhecido de novo a miséria quando faliram os seus negócios, entregou-se à fé cristã e criou a ONG Saint-Camille de Lellis, onde interna os que encontra na rua completamente entregues a si mesmos.
 Apoiado por psiquiatras e financiado por organizações católicas europeias, Grégoire percorre a capital e as zonas circundantes para identificar quem dele precisa e convencer as famílias de não estarem em causa explicações esotéricas, mas as que cientificamente podem ser resolvidas através de medicação apropriada.
O sucesso desse trabalho justifica que já tenha estendido filiais da sua organização aos países em volta: a Costa do Marfim, o Togo e o Burkina Faso.
Enlevados pela solidariedade, que tomou como valor moral a privilegiar como sentido da vida, só podemos ser algo cínicos ponderando até que ponto, no voluntariado não terá encontrado o sucesso social e financeiro, que os negócios lhe tinham impossibilitado de manter. 

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