terça-feira, 29 de novembro de 2016

Teoria da Conspiração II: regresso a Macondo

Muitos anos depois, quando o escândalo o obrigou a escrever o seu pedido de demissão, o procurador Rosário lembrou o dia em que o pai o levou a ver a chegada do primeiro circo a Macondo. Havia palhaços, acrobatas, malabaristas e domadores de animais. Mas havia também uma imitação da história da Branca de Neve com uma bruxa particularmente assustadora.
Miúdo ainda, encontrara em tal figura uma das mais terríveis, que lhe iriam assombrar a vida. Nessa mesma noite, depois de a ex-procuradora-geral Joana o acusar de incompetente, havia-a tido a visitá-lo nos pesadelos noturnos, precisamente na figura dessa bruxa má oriunda da sua infância.
Joana e, sobretudo, o pai, que continuava a ser para ela uma referência, tinham há décadas um ódio de estimação por José. Fora ela a instigar o investigador Paulo a vasculhar toda a documentação fiscal de José e dos amigos mais próximos para detetar algo que levasse o inimigo por muitos anos para a prisão pondo-lhe fim à ainda prometedora carreira política. Fora ela quem trouxera esse mesmo Paulo ao gabinete de Rosário, incumbindo os dois de trabalharem em conjunto e descobrirem o que fosse possível para satisfazer os seus objetivos.
Anos a fio o procurador dedicara todo os seus tempos de trabalho e a maioria dos de descanso a seguir dezenas de pistas que justificassem o episódio para ele mais comprometedor: a decisão de Joana e de um juiz despeitado pela forma desvalorizada como os colegas o viam de prenderem o cosmopolita e garboso José numa noite em que vinha de Bogotá. Televisões convocadas para o efeito e jornalistas da confiança de ambos, tinham criado aquilo a que José sempre se viria a referir como uma narrativa sem pés nem cabeça.
Agora que o escândalo ganhava força de ricochete, o procurador Rosário sentia o chão a fugir-lhe aceleradamente debaixo dos pés. O jornal da manhã, em que tinha publicação garantida tudo quanto conviesse à investigação, acabava de fechar porque os donos não tinham conseguido satisfazer a enorme dívida fiscal cujo pagamento fora adiado pelo governo anterior.
Rosário adivinhava o que os colegas diziam nas suas costas: que pegava em processos, gastava milhões nas respetivas investigações e nada conseguia apurar.
Com José tinham falhado todas as teorias, desde o suposto dinheiro escondido nas contas do amigo, às comissões recebidas por obras atribuídas a uma construtora, ou pela aprovação do plano de ordenamento que possibilitara uma urbanização de luxo no sul da região. E até nada se encontrara sobre as faladas verbas oriundas da Venezuela, pagas pelo amigo Chavez.
A última tentativa, já patética no conteúdo, tinha sido fundamentada na hipótese de José estar envolvido na compra de uma televisão em que pretendia difundir notícias mais a seu gosto.
Todas as hipóteses tinham falhado. Nenhuma pista tinha conduzido onde ele imaginara possível satisfazer a vontade a Joana.
Num momento breve julgara possível arquivar tudo sem ninguém dar por isso, assim de fininho, esperançado em que as atenções se concentrassem noutros assuntos mais candentes.
Isso seria desconhecer a determinação de José Buendia. Quem o teria conseguido calar, mais ao conjunto dos seus ruidosos apoiantes?
Nessa manhã, o novo procurador chamara-o ao gabinete. Demissão era o mínimo que se lhe exigia, mas já um clamor enorme crescia na praça central a exigir que ele, Joana, Paulo e o juiz de primeira instância fossem julgados.
É que, se no tempo de Aureliano Buendia se fuzilavam os autores dos atentados contra quem era poder, no do seu tetraneto a justiça acabava por exigir contas a quem intentara outra forma de assassinato. O político.

Mikheil Arbolishvili

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

O lento refluxo do trumpismo

As tropelias de Trump prosseguem, mas agora tendem a ser lidas pelos seus eleitores de forma mais crítica, depois de terem sido levados a nele depositarem a confiança de vir a ser um opositor contra o Sistema, essa coisa nebulosa que mais não é do que a expressão do capitalismo na sua forma presente.
Ter a cidade de Nova Iorque a gastar um milhão de dólares diários na sua segurança e a entupir o trânsito da Quinta Avenida só porque ele pretende dividir o seu tempo entre a Casa Branca e a sua conhecida torrem em Manhattan poderá indignar muitos, embora o apoio eleitoral por ele conseguido nesse Estado tenha sido escasso. Mas já constituirá motivo de reflexão para mais alguns o facto de, para protege-lo e à sua família, os Serviços Secretos terem de arrendar andares inteiros dessa torre pagando o aluguer a ele mesmo.
O que demonstra que não é só para evitar pagamentos de impostos que Trump enveredou pela carreira política. Pela sua cabeça passa sempre a ideia de converter os próximos quatro anos numa excelente oportunidade de negócio, com lucros fabulosos para a sua cleptocrática família e com prejuízo sério para os tais americanos da classe média, que viram nele a oportunidade de voltarem a apanhar o ascensor social e depressa concluirão que parou no seu andar aquele que só os poderá conduzir para níveis inferiores... 
Milen Tod

Ditadores e ditadores

A propósito de Fidel de Castro andei em debate de ideias nas redes sociais com os que compraram sem espírito crítico a narrativa do “sanguinário ditador”.
“Nenhuma ditadura é boa”, afiançam, mas falam sempre de umas em detrimento de outras, completamente esquecidas da sua verbosidade pouco substantiva. Lembram a esse respeito o célebre Secretário de Estado McNamara, que de Somoza, então ditador na Nicarágua, dizia ser “um fdp, mas é o nosso fdp”.
Os mesmos que pretendem desqualificar a grandeza de Fidel são os mesmos que não se incomodam com Portas ser uma marioneta do regime angolano. Catroga um funcionário do Partido Comunista Chinês ou Durão Barroso um apaniguado dessoutra forma de ditadura que é a Goldman Sachs.
E deveremos classificar as ditaduras todas como iguais, quando umas asseguram a educação e a saúde gratuita do seu povo, enquanto outras apenas existem para satisfação da ganância dos seus tiranos?
Quem por aí andou a referir as suas visitas a Cuba como demonstrativas da sua condenação do Comandante, deveria ir a muitas das outras ilhas das Caraíbas e comparar as diferenças para pior (por conhecimento próprio salvaguardo as ainda sob a tutela colonial francesa).
É de uma indigência mental assaz preocupante assumir-se que todas as ditaduras são condenáveis. Basta-me pegar no exemplo dos ditadores laicos do Médio Oriente, em cujas sociedades as diversas comunidades religiosas viviam em harmonia (incluindo as judaicas e cristãs) e onde as mulheres tinham direitos entretanto perdidos, para concluir que, em sociedades onde a cultura e o estádio de desenvolvimento torna inviável o formalismo da Democracia, existe grande diferença entre ditadores.
Ademais, e quem disse que a Democracia existe mesmo nos seus modelos tidos como exemplares: quem consegue defender que a vida de um negro nos estados do sul dos EUA não continua a ser assombrada por opressão ditatorial? Quem diz que, no nosso querido Portugal, não existe uma ditadura na forma como as direitas predominam nos jornais e televisões, que se mantêm sempre na posse dos que ainda são sinistros donos disto tudo?
Aos meus interlocutores, que veem o mundo tão a preto-e-branco (democratas vs. ditadores) recomendo um pouco mais de sageza na formulação dos seus raciocínios. Por mim continuo a celebrar em Fidel não o que foi, mas o que poderia ter sido se as circunstâncias tivessem estado à altura dos seus primevos sonhos! Hasta sempre Comandante! 
Tim O'Brien

O que diz o meu irritante otimismo

Isto de andar há seis décadas nesta coisa complexa e contraditória, que é a vida, permite olhar para este momento político com a descontração de saber efémeros todos os grandes fenómenos mediaticamente empolados.
Há umas semanas a vitória de Hillary parecia incontornável e até os Democratas estariam à beira de reconquistar a maioria numa das Câmaras do Capitólio. O relativo sucesso de Bernie Sanders nas primárias indiciava a possibilidade de uma viragem decisiva da política americana mais à esquerda, cessados os constrangimentos inerentes ao constante bloqueio dos Republicanos às tímidas políticas da Administração Obama em prol da diluição das gritantes desigualdades sociais.
Assistiu-se, pois, a um daqueles momentos eloquentemente associáveis à cena do «Match Point» de Woody Allen em que a bola parece um momento estacionada em cima da rede, podendo tombar para um ou outro lado, acabando por isso suceder no que nos era mais indesejável.
A vitória de François Fillon nas primárias da direita francesa vem nesse mesmo sentido: entre um candidato menos mau como era Juppé, prevaleceu um ultraconservador, que ainda vê a economia pelo filtro obsoleto dos olhos de uma Margaret Thatcher recauchutada. E angustiam-se uns quantos: que fazer se a escolha final em maio for entre Fillon e Marine Le Pen?
Apesar de Hollande e de Valls ainda estarem a fazer contas quanto a concorrerem ou não, e com Mélanchon e Macron na corrida, um à esquerda e o outro à direita do Partido Socialista, as primárias deste partido ainda poderão corresponder ao renascer da Fénix. Entre Montebourg, Hamon e mesmo Aubry, poderá sair uma candidatura tão forte e consistente como resultou na surpresa do campo contrário, onde ninguém dava uma para a caixa do vencedor e ele esmagou os adversários. Depois, perante a ameaça de uma viragem radical nos costumes para a direita, do despedimento de meio milhão de funcionários públicos e do aumento do horário do trabalho até às 48 horas não serão os quase três milhões de eleitores de Fillon, que causarão mossa num escrutínio onde comparecerão 36 ou 37 milhões se nos fiarmos nos números de 2012.
Ademais o que fez a força de Fillon nesta eleição foi o seu efeito de relativa novidade, que se estiolará nos próximos seis meses. Nesse sentido é avisada a decisão do Partido Socialista em lançar idêntico processo seletivo só para janeiro: é que se o candidato a dele sair não for nenhum dos dois principais protagonistas do fracasso socialista dos últimos quatro anos e vier a ser quem deles se possa dissociar com uma campanha demonstrativa de serem outros os caminhos de quem em tal partido se identifica, talvez a surpresa maior da política francesa não tenha sido a deste novembro, mas a que então se verificará. É que, entre Le Pen e um candidato da esquerda, ainda é crível que socialistas, comunistas, verdes, radicais de esquerda e do centro e extrema-esquerda se associem para novo momento Match Point em que a bola tombe para o lado certo.
Quem poderá então ainda falar do advento dos populismos? 
Stéphanie Ho

A odiosa pobreza do Branco americano

Vinte dias passados sobre a eleição de Donald Trump importa compreender as circunstâncias em que ela ocorreu, de forma a que as esquerdas aprendam a preveni-las e a impedirem de se reproduzirem em resultados similares.
Observadora atenta da realidade em causa tem sido Sylvie Laurent, uma francesa que leciona Ciências Políticas nas Universidades de Stanford e de Harvard, e autora de livros de pertinente atualidade como «Poor White Trash, la pauvreté odieuse du Blanc américain» e «La couleur du marché: racisme et néoliberalisme aux États Unis».
Numa entrevista facultada ao «L’Obs» ela interpreta a eleição de Trump como o corolário de um longo processo, que nada tem a ver com um qualquer acidente histórico. O ódio ao Outro, a rejeição de quem possa substitui-lo (o negro, o hispânico, o imigrante, a mulher, o muçulmano) foi-se desenvolvendo na mentalidade do Branco norte-americano nas décadas mais recentes, ganhando progressivo espaço dentro do Partido Republicano.
Esse processo foi crescendo a par do aumento das desigualdades suscitadas pelo neoliberalismo, que tratou de eximir-se das culpas, atribuindo-as antes às lutas das minorias em prol do seu reconhecimento.  Tornou-se bem sucedida a ideia de que cada conquista dessas minorias resultava num confisco, numa usurpação dos direitos desse americano de classe média.
Tratou-se de uma retórica excecionalmente bem sucedida em quem viu estagnada a sua qualidade de vida nos últimos trinta anos, com as casas a serem-lhes espoliadas pelos bancos aos quais as haviam hipotecado ou a  tornarem-se cada vez mais desvalorizadas pela crise.
Uma grande parte dos apoiantes de Trump foi votar nele por ter considerado inaceitável a eleição de um Negro e agora surgir-lhes a possibilidade de lhe suceder uma mulher.
Conclui Sylvie Laurent: “esta política de revanchismo teve agora o seu culminar absoluto com a insurreição do homem branco da classe média, aterrado por já não ser a referência e ver outros disputar-lhe a hegemonia cultural.”
Para a autora a nostalgia americana que Donald Trump encarna até no penteado - que lembra vagamente o de Ronald Reagan - foi preparado mediaticamente pelo sucesso da série televisiva «Mad Men», que expunha essa época em que não havia igualdade entre géneros, nem entre raças, e a mulher da classe média usufruía de segurança económica. É certo que ficava em casa e não acedia às universidades, mas integrava-se plenamente nas instituições comunitárias - igreja, bairro - onde era plenamente reconhecida e respeitada. O marido trazia para casa um bom salário, que não tornava os fins dos meses desesperantes com a falta de dinheiro, até subsistindo a esperança de uma ascensão social.
Ora, se as mulheres  e a generalidade da população negra obtiveram direitos formalmente reconhecidos, eles não lhes evitaram a precariedade em que vivem. Muitas dessas mulheres, que se encontram no cruzamento entre as desigualdades e a desintegração dos valores tradicionais, interrogam-se para que serviu todo o movimento de emancipação feminina dos anos 60. “A melancolia inquieta dos seus pais e irmãos, aliada à sua própria precarização, explica grande parte do seu paradoxal voto” num abjeto sexista.
Edward Hopper

domingo, 27 de novembro de 2016

Teoria da Conspiração (I)

Na grande mansão os alarmes não paravam de tinir. O apreciador de pontapés em jornalistas andava escada abaixo, escada acima, como barata tonta, com as notícias das várias frentes a surgirem invariavelmente preocupantes. O desastre estava iminente.
O Diabo, apesar de invocado  por bruxos e adivinhos, não viera em auxílio do exército laranja e os eventuais aliados, em Belém ou em Bruxelas, tinham-se escusado a enviar batalhões em seu auxílio. O cerco apertava-se cada vez mais  e o general dava sinais de desespero, perdendo dia-a-dia mais cabelo.
Da sombra emergiu um dos lugares-tenentes, um tal Morgado com conhecimentos privilegiados num Instituto reconhecido como especialista nas análises das questões da guerra.
- Talvez haja forma de dar volta a isto!
Os outros olharam-no, primeiro com espanto, porque tratava-se de quem mais lamuriava do que mostrava indícios de genialidade guerreira mas o desespero em que se encontravam alimentou-lhes uma pontinha de esperança no olhar. Por isso deixaram o Morgado prosseguir:
- Ponho os meus amigos desse Instituto a fazer uma análise com toda a aparência de seriedade em como o exército do governo já não precisa dos que os outros partidos mobilizaram para os apoiar.
- E o que isso altera no cerco em que nos encontramos? - perguntou o Amaro ainda a recuperar de novo ataque agudo da sua conhecida disfunção cognitiva temporária em vias de se tornar permanente.
O Morgado olhou para os outros como se fossem um bando de idiotas a quem tivesse de fazer o desenho todo.
- Pomos depois os nossos amigos nas televisões e nos jornais a repetir a toda a hora, que o exército do governo, não precisando dos outros e tendo-nos quase derrotados, logo se virará contra eles.
O general começou a esboçar um sorriso, que o apreciador de pontapés em jornalistas conhecia bem. Quando ele se desenhava no rosto havia perfídia certa a percorrer-lhe a mente.  E como ele delirava quando ela se constituía e revelava logo a seguir! Era tiro certo no campo inimigo, como dias antes constatara, quando aligeirara a asfixia com a história da Caixa Geral dos Depósitos.
Na cabeça do general o filme tornou-se mais nítido: as baterias dispostas contra aquele reduto, subitamente a virarem de posição, a dispararem umas contra as outras. O caos total. O aliado de Belém a discursar que, aquilo que considerara fazer sentido momentos atrás, deixara de o ter e seriam necessárias eleições antecipadas. O amigo do Brasil chamado de emergência para organizar campanha tão bem sucedida como a última quando, apesar de tudo quanto lhes fizera, os donos dos votos não o tinham deixado mal. E, no dia decisivo, o resultado ansiado: os acordos inimigos definitivamente rasgados, e o general contrário a ter que com ele conferenciar para, juntos, regressarem ao bom caminho momentaneamente abandonado. Aquele em que ele e os seus amigos poderiam continuar a prosperar e os odiados reformados e funcionários públicos pagariam com língua de palmo o desaforo de terem recuperado o que lhes havia sonegado.
- Sim! Essa estratégia pode resultar! Avance com ela, oh Morgado, e esperemos que os inimigos sejam suficientemente estúpidos para cair nessa armadilha! 
Sousa Lopes

sábado, 26 de novembro de 2016

O problema dos que não sabem do que sofrem

Visto a uns quantos milhares de quilómetros de Lisboa, o episódio sobre a “disfuncionalidade cognitiva temporária” de António Leitão Amaro parece  coisa de somenos importância, não se equiparando aos insultos amiúde provenientes das bancadas da oposição para atacar as posições do governo ou da maioria que o apoia.
Temos, pois, uma direita hipersensível, que não pode ouvir um reparo cuja evidência se põe a qualquer observador imparcial das sessões parlamentares. Dizer que o deputado laranja tem essa disfuncionalidade é tão normal, como referir a alguém que está constipado só porque se o vê com o dariz endupido. Como muitos dos que comentaram o caso nas redes sociais, Mourinho Félix até foi bastante benevolente para com os problemas de saúde de tal figurão, tão repetitivas têm sido as suas intervenções indiciadoras do seu persistente mal.
Mas sabemos bem que existem certas doenças cujos pacientes têm dificuldade em reconhecerem-se seus sofredores. É tudo uma questão de serem vigiados e ter preparado os colete de forças se os sintomas atingirem um estado furiosamente agudo. 
Francis Bacon

O prometido foi devido

Prometido e cumprido: hoje ao almoço, a família aqui reunida em Haia celebrou um ano do governo de António Costa com um brinde a apostar na sua longa durabilidade.
A confiança em que isso suceda é bem grande.  Aliás muitos dos meus amigos recordarão que, há meses, eu andava a aqui apostar um crescimento significativo no terceiro trimestre. A minha surpresa resultou do espanto da generalidade dos economistas. Então que sinal viam numa economia que, mais do que reduzir o desemprego, estava a criar emprego líquido? Não era esse um indicador eloquente quanto á recuperação da situação do país?
Agora, para o quarto trimestre, tudo aponta para a consolidação desse crescimento, bastando para tal os sinais do consumo interno dados pelo black friday e os inquéritos sobre as expetativas dos gastos das famílias neste Natal.
Depois de andar a dizer que as exportações não cresciam, as direitas tiveram uma resposta à medida da sua prosápia no trimestre anterior. Agora os reparos quanto à timidez do consumo interno, terão a devida resposta, quando se apurarem os números no último dia do ano.
Não surpreende, pois, que o insuspeito Miguel Frasquilho tenha adiantado a possibilidade de superação dos objetivos do governo no conjunto do ano. Adivinham-se tempos difíceis para as direitas, que veem derrubadas, uma a uma, as argumentações em que procuram contestar o governo.
Piet Mondrian



Na morte do Comandante!

Imagino que, no seu último momento de lucidez, antes de as dores e os medicamentos o mergulharem em  inconsciente limbo, o comandante tenha sentido pena por não ter cumprido o sonho partilhado com os companheiros na Sierra Maestra
Sabia que haveria sangue a verter naqueles que se lhes opunham.  Nisso dava razão a quem lançara campanha semelhante no outro lado do mundo e dissera não ser a Revolução um convite para jantar. Mas, depois, quando tudo se consolidasse, seria possível a Utopia.
Sabia que a ilha era pobre, mas bem explorados os recursos, e melhor divididos, daria para quase todos ficarem contentes. E a não quererem mais essa condição de porteiros do imenso casino e bordel em que o ditador e os mafiosos americanos a tinham transformado.
Mas, porque não traduzira a quimera em algo de concreto? Porque contara como inimigos muitos dos que julgara possível ter do seu lado? Bastaria tudo explicar pelas sabotagens do papão ianque? Gostaria de nisso acreditar, mas honesto consigo mesmo, considerou os seus próprios erros. Que acabaram por ser muitos, quando perdeu o Che ou Camilo logo quase no dealbar da nova era.
Sentira um estremecimento atroz, quando lhe tinham anunciado o suicídio do apreciador de daiquiris. Alguma vez se veria obrigado a tal gesto?
Nem mesmo nos piores momentos vacilara em seguir sempre em frente, sobretudo quando falharam as muitas tentativas de o assassinarem. Mas morria agora com quase tudo por construir.
Ficava a educação e a saúde, mas compreendia o passo atrás empreendido pelo irmão. Falhara em garantir aos cubanos a qualidade de vida, que a sua dignidade ambicionava
Morria, agora, na dúvida de saber se sobraria quem viesse a ter engenho e arte para os dois imprescindíveis saltos que dessem sentido a tudo quanto quisera e não cumprira. A derradeira angústia foi a de questionar se tudo correspondera a um sonho em breve desfeito pelo regresso ao pesadelo, que quisera cercear.


sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Quantos desenhos precisam que lhos façam?

Não é de agora, porque há muito que o penso: estou bem mais próximo das propostas políticas do Bloco ou do Partido Comunista do que das do PSD ou do PP. Para mim o conceito de centrão não faz sentido, nem nesta momento como o diz Marcelo, nem em qualquer altura, porque defendo que se deve fazer sempre a distinção entre a carne e o peixe, nunca nos deixando aprisionar nas meias tintas.
Sobre a Caixa Geral de Depósitos julgava já nada vir a acrescentar, porque deixei bem expressas as minhas opiniões sobre a secundarização das questões de pormenor - os vencimentos dos administradores e a obrigatoriedade de mandarem as suas declarações de rendimentos para o Tribunal Constitucional - face ao que realmente importa: que a recapitalização seja um sucesso e irrepreensível a competência em torna-la no esteio de estabilidade do nosso sistema financeiro.
Depois de semanas a acompanhar a dança lançada pela música pimba das direitas, o Partido Comunista e os Verdes já se dissociaram do baile. Coisa que o Bloco não fez!
Quantos desenhos serão precisos fazer para que os seus dirigentes saibam discernir o que é importante do que é mera questão acessória?
Por ora fazem claramente o jogo das direitas!

Este fim-de-semana vou beber à saúde desta maioria parlamentar

Isto das sondagens tem de ser sempre relativizado à luz do que tem acontecido nos últimos meses, mas a melhor é a do nosso dia-a-dia, quando ouvimos pessoas perfeitamente desconhecidas, falar do que nelas tem suscitado a governação de António Costa e da sua equipa de ministros e secretários de Estado, sem esquecer a maioria parlamentar em que têm colhido merecido apoio. E decerto quem me lê conhece múltiplos testemunhos de quem dava pouco por esta solução governativa e afinal reconhece estar perante inesperada surpresa.
A sondagem da Universidade Católica, que vem em linha com as outras ultimamente conhecidas, só confirma essa progressiva aceitação, e até adesão, dos portugueses ao rumo empreendido há um ano. E é da competência na sua prossecução, que depende a transformação da expetativa de votos na sua efetiva tradução nas urnas. E, mesmo que se venha a confirmar uma maioria absoluta para o Partido Socialista, desejo que, como milhares de militantes, a continuidade do projeto seja assegurada com o concurso do Bloco de Esquerda e da CDU representados a nível governamental. Porque, não só a nível nacional, mas sobretudo num contexto internacional como o que se vislumbra nos anos vindouros, faz sentido as esquerdas fazerem das suas fraquezas forças contra as direitas, tanto mais que estas pendem para os sombrios territórios das suas versões mais repulsivamente fascizantes. E quando isso acontece faz sentido retomar a estratégia dos anos 30 do século passado, recorrendo às Frentes Populares, porventura mais sagazes com as lições aprendidas dos erros então cometidos.
Um ano passado sobre a posse do atual governo serão muitos os portugueses que, como eu, abrirão uma garrafa especial neste fim-de-semana e farão um voto de longa saúde para quem por ele tem sido responsável. 
Fernand Léger

Refugiados e a renegociação da dívida

Amiúde tenho aqui referenciado o contributo de Jaime Santos para o enriquecimento do blogue «Ventos Semeados», comentando com fundamentação consistente, e como resultado de profunda reflexão, os temas aqui tratados. Por isso considero necessário partilhar esses textos com um universo mais alargado de leitores não os deixando cingidos às caixas de comentários dos posts a que respeitam.
Nos últimos dias ele reagiu a dois textos. O primeiro tinha a ver com o paradoxo de afluxos sucessivos de refugiados propiciarem - pelas reações de medo nas franjas das populações mais facilmente manipuláveis pelos discursos xenófobos  da mais repulsiva demagogia - o crescimento da extrema-direita.
No essencial concordo totalmente com Jaime Santos, corroborando a ideia de ser necessário que as esquerdas saibam agir preventivamente sobre esses estratos sociais em vez de irem depois atrás da recuperação dos prejuízos suscitados por tais discursos.
Eis, pois, o texto de Jaime Santos:
“Qualquer pessoa minimamente responsável tem que defender algum controle da imigração, no limite a reação dos eleitores ou força os governos a mudar de política, ou muda os governos e poderemos acabar com a Extrema-Direita no poder. Mas convinha lembrar que a imigração tem um efeito positivo na Economia na generalidade dos Países e que os Países mais capazes e resilientes são aqueles que melhor aproveitam os talentos dos que aí procuram residência ou abrigo (vide os EUA e o Canadá).
Importa claro integrar os imigrantes e dispor de políticas que compensem os efeitos mais perniciosos da imigração, mormente a pressão sobre os serviços públicos. E também, como se vê no RU, são os mais qualificados que agora se interrogam e recusam estudar ou trabalhar aí, não se pode ser acolhedor de maneira seletiva. Se May e a classe média e baixa inglesas querem ficar sozinhos, pois que fiquem, tenho pena porque adoro a Inglaterra, mas 'good riddance'.
Agora, por um lado Portugal deve pensar nos seus próprios emigrantes e não ser hipócrita, até porque ficaríamos em sérios sarilhos se de repente Angola, a Venezuela, o Brasil, etc, retaliassem a um eventual fechamento da nossa sociedade e acabássemos por ter que receber meio milhão ou mais de pessoas sem emprego. Por outro lado, se o que nos assusta é a convivência com o Islão, faço notar que a nossa comunidade muçulmana conta com algumas dezenas de milhar de pessoas que vivem em Portugal sem problemas e aqui prosperam e que temos pois excelentes maneiras de estabelecer pontes com os recém-chegados (no caso dos sírios muitos até são bem qualificados)...
Finalmente, os Chineses têm investido em Portugal porque há oportunidades, mas também porque sabemos recebê-los bem. Carlos Monjardino dizia que eles se sentem genuinamente reconhecidos aos Portugueses pela deferência com que são tratados... Sem querer pintar um quadro demasiado rosa, há que aproveitar o fechamento de outras sociedades europeias e lucrar com isso... “
Já no segundo texto vem de novo a talhe de foice a grande divergência entre o meu pensamento e o de Jaime Santos a propósito do legado deixado pelo governo de José Sócrates: enquanto ele mantém uma visão essencialmente crítica, eu mantenho a defesa das políticas do antigo primeiro-ministro por tudo quanto fez em prol da criação de um país mais desenvolvido com o imenso legado de Mariano Gago na investigação e ciência, com o Simplex, com as Novas Oportunidades, com a aposta nas energias renováveis, com a requalificação do parque escolar e muitas outras concretizações que, se continuadas pelo governo seguinte, nos teriam deixado mais avançados do que estamos para o cumprimento das ambições da generalidade dos portugueses quanto ao tipo de país em que querem viver.
Terá sido José Sócrates infeliz ao ver-lhe descambar em cima a crise financeira subsequente à falência da Lehman Brothers? Claro que o foi, tendo sido essa a razão para a impossibilidade de prosseguir um rumo, que tudo indiciava ser bem sucedido.
Terá tido em Teixeira dos Santos um ministro das Finanças imprudente, quando acedeu a cumprir as orientações da Comissão Europeia no sentido de investir urgentemente o mais que se pudesse para corresponder à recessão então sentida como algo a evitar a todo o custo?  Sim, mas as culpas, a emiti-las, só têm um réu indubitável: Durão Barroso que, ora encabeçou essa urgência no investimento público, ora o fez travar às quatro rodas, quando Schäuble para  tal lhe deu ordens.
Há ainda outra divergência entre o que pensamos, eu e o Jaime Santos a respeito do crescimento económico. Eu defendo que, no âmbito do investimento nas novas tecnologias, ainda há muito espaço para crescimentos robustos da economia portuguesa, sem pôr em causa os nossos ecossistemas, antes pelo contrário os acautelando com inventos inerentes a aumentos de rendimentos na produção das diferentes variantes das economias renováveis. Embora tenha presente a inevitabilidade de estar iminente essa fase civilizacional em que o planeta não suportará mais crescimentos na demografia e no uso e abuso dos seus recursos naturais não renováveis.
Deixo-vos, pois, com as pertinentes opiniões do Jaime Santos:
"Importa ser-se minimamente justo. Em primeiro lugar, a dívida pública começou a crescer a partir de 2008, devido à política expansionista de Sócrates destinada a combater a recessão, devido à alteração do perímetro orçamental exigida por Bruxelas (integração da dívida das empresas públicas na dívida pública) e devido à quebra brutal da receita (mais de 4 mil milhões por contraposição aos 800 milhões gastos pelo Governo de Sócrates em medidas expansionistas).
Já chega responsabilizar Passos e Portas por aquilo que eles são realmente responsáveis. Mais, Pires tem razão quando aponta o Euro como o principal responsável pelo endividamento externo. Baixas taxas de juro aliadas a baixo crescimento por falta de competitividade e importações baratas são o principal responsável pelo aumento do endividamento...
Agora, quem defende (como eu defendo) a renegociação da dívida tem que completar a frase e explicar se o País se vai continuar a endividar como dantes (Estado incluído), pelo que terá que crescer os tais 3% ou mais ao ano, para que o ratio dívida/PIB não aumente, o que não só é difícil como tornará o País rapidamente vulnerável a condições de financiamento mais severas (aumento da taxa de juro), que não controlámos, ou se pelo contrário deveremos daqui em diante passar a ter as contas públicas controladas (e reconheça-se a trajetória descendente do deficit iniciado por PPC). E neste último aspeto, eu tenho que dar razão aos verdadeiros Conservadores (os Ecologistas), até por razões de sustentabilidade ambiental..." 
Ali Enaiza

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Eu continuo a desconfiar dele

1. Quem me lê com alguma regularidade já sabe o que penso do presidente da República: nem que se pinte da minha cor clubística, nunca me convencerei da sua boa fé no exercício das suas funções. Por isso, quando vejo muita gente de esquerda iludida pelas suas palavras, julgando-o um tácito apoiante da estratégia governativa de António Costa, costumo redarguir: esperem-lhe pela volta e logo veem do que ele é capaz.
Mesmo na frase que parece ter deleitado esta semana tantos socialistas e enfurecido quem nele terá apostado para a rápida demissão do governo empossado semanas antes por Cavaco Silva, devemos escalpeliza-la com mais atenção e ver o que nela subjaz de essencial: “Neste momento, configurar um centrão artificial, imposto, na governação do país seria pouco clarificador. O clarificador é saber-se exatamente o que é proposto por cada uma das fórmulas governativas que no momento existem e podem existir, desejavelmente, até ao fim da legislatura”.
Da frase as duas palavras mais importantes são logo as suas primeiras: “neste momento”, repetidas mais adiante para que não tivéssemos dúvidas quanto á sua pertinência. Ele avisa que  a atual bonomia só dura  enquanto não tiver as  condições para substituir o atual governo por outro mais a seu gosto em que se juntem socialistas e pêpêdês na mesma amálgama com estes a decidir e os primeiros a fazerem-lhes ámen.
E se tivéssemos dúvidas bastaria ler o texto publicado por Pedro Duarte, o dirigente partidário que lhe organizou a campanha presidencial e o acompanhou diariamente por todo o país em tal período. Podendo exprimir o que pensa o seu comparsa, com a liberdade de não ser tolhido pela função institucional, ele critica a solução governativa com os esgotados, mas repetidos argumentos das direitas: “Este Governo garante estabilidade, mas ignora qualquer ideia de futuro, qualquer visão estratégica, qualquer caminho de afirmação nacional. Gere a espuma dos dias com habilidade, mas empurra os problemas para debaixo do tapete.”
Como se a especialidade de atirar os problemas para debaixo do tapete não fosse propriedade de Passos Coelho e de Marilú Albuquerque.
2. Em Espanha a representante do que os socialistas espanhóis ainda contém da nociva Terceira Via, está a preparar-se para abocanhar o partido.
Sempre contando com a inspiração de Felipe Gonzalez, que há muitos anos esqueceu os valores e princípios pelos quais chegou a presidente do governo espanhol, Susana Diaz personifica a repetição das soluções políticas do passado, já castigadas sucessivamente pelos eleitorados como obsoletas, e incapaz de aprender com as lições que o Partido Socialista dos vizinhos ibéricos lhe poderiam prodigalizar.
Esperemos que Pedro Sanchez, ou algum camarada apostado em apostar nas convergências à esquerda em vez de conciliações com as direitas, leve por diante o combate pela renovação do PSOE. A generalidade dos socialistas europeus agradecem…
3. A galeria de horrores  inaugurada por Donald Trump continua a confirmar-se: para embaixadora da ONU manda uma amiga de Sarah Palin conotada com o Tea Party (embora os entusiastas da nova Administração sublinhem o facto de ser mulher e de raízes indianas). Para a Educação vai uma milionária cujo projeto é pôr o Estado federal a subsidiar as escolas privadas distribuindo vouchers aos encarregados de educação apostados em não enviarem os pimpolhos para as do ensino público.
Quem alimentasse algumas ilusões deveria delas prescindir rapidamente por falta de fundamento. 
Pedro Calapez, O que existe além do horizonte