segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Viveremos de facto num tempo de incertezas?

No Forum Manifesto, que decorreu este fim-de-semana em Lisboa, Sandra Monteiro, a diretora do «Le Monde Diplomatique» contestou o título escolhido pela organização, porque ao contrário do que ele pressupunha, não estamos propriamente a viver tempos de incerteza, bem pelo contrário. O que hoje está à nossa vista é aquilo a que Ana Drago chamou «cadáver esquisito», e em vias de apodrecer. Esse capitalismo - pois que é dele que se trata! - pode ser extremamente letal nesta fase em que se prepara para conhecer o seu merecido e tardio fim, mas não há quem lhe receite a forma de sobreviver.
Nesse estertor assume a forma de um neoliberalismo cego, que, de acordo com a citada Sandra Monteiro, pressiona o atual governo para que regresse ao receituário anterior, aquele que garanta “o esmagamento do mundo do trabalho, com a transformação do Estado Social no Estado assistencial, com a ortodoxia monetária e dos tratados europeus”.
É estulta a tentativa de uns quantos bem intencionados em ressuscitarem o modelo social-democrata, que fez sentido nos trinta anos dourados, mas ao qual a Terceira Via e a crise de 2008 lançaram para o baú das coisas obsoletas.
No seu artigo «Afrontar Tabus» da edição deste mês do seu jornal, Sandra Monteiro constata que a realidade mudou totalmente: “Se a globalização neoliberal fez circular pessoas e mercadorias (e pessoas transformadas em mercadorias), bem como serviços e tecnologias, fê-lo na exata medida em que essa fluidez assegurou, no pólo oposto, uma crescente rigidez da exploração e das desigualdades”.
Os números recentemente conhecidos, quando José Gomes Ferreira andou a inventar os seus para contestar o eventual Imposto sobre o Património, falam por si: em 2015, as famílias portuguesas que auferiam até 20 mil euros anuais eram 91,1% das recenseadas. E, destas, 68,4% recebiam menos de 7 mil euros.
Tais números fazem lembrar as palavras revoltadas de Nuno Lopes, o ator de «São Jorge» - filme premiado em Veneza e a estrear em breve nas nossas salas - que lembra como, durante a rodagem atravessava a Ponte 25 de abril com a rádio a propalar a ideia de termos vivido acima das nossas possibilidades e ao chegar ao Bairro da Jamaica, aqui na Amora, dar com pessoas concretas, de carne e osso, que já não comiam há vários dias. Perguntava-se ele com toda a justeza: será que esses esfomeados tinham vivido acima das suas possibilidades?
Manifestamente a realidade que algumas televisões nos querem vender não coincide em nada com a verdadeira, com a da pobreza em que vivem milhões de portugueses.
Como escreve Sandra Monteiro no seu artigo “neste que é um dos países mais desiguais, e que persiste em ser mais desigual, há uma classe de interesses e de riqueza que se habituou a ser cada vez menos chamada a contribuir para o esforço coletivo de criar uma sociedade que potencie as condições de bem estar para todos”.
A autora é, pois, bem capaz de ter razão quanto a não vivermos em tempos de incertezas. O diagnóstico da realidade está feito e só falta que as esquerdas não se intimidem em defender o que tem de ser feito. Defendendo nomeadamente alguém que se atreve a dizer da urgência em ir buscar o dinheiro onde ele tem sido ilegitimamente acumulado...
(Giorgio di Chirico, “The Uncertainty of the Poet “)



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