sábado, 31 de dezembro de 2016

A necessidade de Política com maiúscula

As circunstâncias recentes levam os mais inquietos a equacionar não só o que tem motivado comportamentos coletivos inesperados em sucessivas eleições, mas como lhes devolver alguma racionalidade. Porque o singular é tornarem-se ainda mais prejudicados os que apoiam com entusiasmo quem os quer vincular a labirinto ainda mais intrincado.
Não há muito tempo tudo se explicava pelo primado da economia sobre a política. Que transformava em quimeras as promessas feitas pelos atores atraídos pela governação. Dilatou-se, ainda mais, a associação entre a mentira e o discurso político. E foi nessa desadequação entre o prometido e o cumprido, que ressurgiram, quais mortos vivos sinistros, os herdeiros das antigas ideias fascistas.
Recuperar a imagem dos políticos, eis pois o que propõem os mais inquietos. Devolver à Política a perdida reputação de constituir a autoridade de veicular as mudanças bastantes para recriar o sentido da esperança a quem a perdeu. Substituir o medo e a raiva, que beneficiam os candidatos a tiranos, pela genuinidade das utopias, que concebem soluções para quantos obstáculos se atravessem.
Mas esse esforço tem um custo: o de disponibilizar tempo e dinheiro para tudo discutir, tudo por em causa, mas sempre no fito de reconstruir caminhos anteriormente ensaiados e logo desviados das planeadas rotas. Porque merecermos a condição humana significa focar-nos nos valores fundamentais, que os revolucionários franceses de há duzentos e trinta anos sintetizaram na Liberdade, na Igualdade e na Fraternidade. E que, no século seguinte, os utópicos e os mais realistas, definiram como Socialismo.
Promovê-lo, concretizá-lo só faz sentido se quem se empenhar nesse esforço estiver disposto a tudo dar e a nada querer receber para si em troca. Os partidos e movimentos, que se reivindicam dessa mudança estão inundados de arrivistas dispostos a agirem por interesse próprio, seja por narcisismo, seja pelos esperados benefícios financeiros. Por isso não têm ideias para a questão enunciada há mais de cem anos por quem congeminava o fim do czarismo: Que fazer?
Como lhes falha estratégia, ficam-se pela tática mais imediata, em que objetivos comezinhos - ganhar uma eleição local a um parceiro de coligação parece bem mais importante do que criar as condições de unidade perante ambições mais latas e temporalmente mais distantes. Mesmo sendo as que verdadeiramente produzirão resultados.
Por isso um amigo, o Manel, tem razão, quando diz estar disposto a pagar para fazer Política com maiúscula. Aquela que não se faz andando com os pés apenas no chão e vislumbrar apenas o que o horizonte nos proporciona desta perspetiva, mas sobretudo aquela que levou Newron a dizer-se capaz de ver mais longe porque se pusera aos ombros dos gigantes.
Esses ombros, sabemos bem a quem pertencem. São-nos os de um Karl Marx cujas ideias fundamentais permanecem atuais. São-nos os de um Stephen Hawking que nos demonstrou a superioridade da Ciência sobre os preconceitos e por isso reduziu a cinzas as argumentações sobre a existência de um qualquer deus. E muitos, mas muitos mais haverá, desde Hegel, que nos deu consistência à dialética, até Feynman, que nos ensinou a explicar com simplicidade os mais imbrincados conceitos de forma a torná-los acessíveis aos mais analfabetos.
Porque, no essencial, trata-se de combater a ignorância, sem nos atermos se ela é nova ou velha, em função de decorrer das redes sociais ou apenas da falta de escolaridade. É que dessa ignorância emergem os que desprezam a democracia e a querem negar a quem só deseja torná-la mais efetiva. Porque não há democracia sem conhecimento e uma menos desigual distribuição da riqueza.
Matisse 

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Pensar é perigoso

Hoje a capa do «Público» faz notícia com a afirmação de um italiano cuja relevância me escapou até agora - e provavelmente assim continuará! - mas segundo o qual a vitória de Marine Le Pen nas eleições francesas será um facto. Ora esta tese, que estou longe de comprar!, faz-me lembrar uma frase da Hannah Arendt evocada há algumas semanas pela Maria João Seixas numa entrevista com o arquiteto Joaquim Moreno, e segundo a qual pensar é perigoso, mas não o fazer é-o muito mais.
E é isto que está em causa: a velocidade com que desfilam imagens à nossa frente durante cada dia, seja nas televisões, seja nas redes sociais, impediu as pessoas de pensarem no que vivem. Seria necessário fazer parar por um momento esse fluxo ininterrupto de informação, que na sua quantidade e qualidade, criam uma amálgama de desinformação capaz de ecoar no que cada um tem de mais negativo dentro de si, no respeitante às angústias sobre o seu futuro imediato e o dos que mais lhe importam.
O desafio que se coloca às esquerdas é o de saberem colocar um pau nessa engrenagem alienatória, que faz emergir o pior do imaginário coletivo e esmagar o que ele poderá representar em valores momentaneamente esquecidos como o são os da tradição republicana.
No fundo trata-se de estimular ao pensamento, quem se fica pelas impressões genéricas de uma realidade, que pode ser apreciada de forma bastante mais esperançosa se nela se impuserem as políticas destinadas a sobrepor o interesse das pessoas ao das corporações financeiras, o das liberdades às das ditaduras do pensamento ideológico dominante, que é o da sobrevivência de um capitalismo sem soluções para garantir uma vida digna à maioria dos cidadãos.
José Guimarães

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

A violação da privacidade

1. Um dos episódios mais lamentáveis de entre os sucedidos na política nacional desta semana, foi o do pedido de desculpas de Augusto Santos Silva aos parceiros sociais por os ter associado a uma feira de gado, quando conversava com Vieira da Silva.
É que se havia pedido de desculpas a fazer era da TVI, que se armou em coscuvilheira e arranjou um furo com aspeto de vingança contra quem despedira de forma indecente há cerca de dois anos, quando Santos Silva era comentador do seu canal por cabo. Podemos estranhar que, para dar conta da sua ação governativa, ele tenha desde então privilegiado os outros canais?
Não esquecemos a conduta de crápula de Sérgio Figueiredo, quando então considerou motivo de despedimento o comentário de Santos Silva no facebook quanto ao seu sucessivo silenciamento ou mudança de horário a pretexto dos “superiores interesses do futebol”.
Agora, e porque a guerra contra ele já data de então, o diretor de informação da TVI tudo faz para apanhar o ministro em situação comprometedora. O facto de ter colocado clandestinamente um microfone para lhe ouvir as conversas estritamente privadas diz muito sobre a falta de escrúpulos da criatura. Um comportamento de tal jaez pode não ser punível legalmente, mas moralmente é repugnante!
Em nome do direito à privacidade das suas conversas informais com amigos, Santos Silva deveria ter denunciado e condenado a indecente calhandrice de que se viu alvo. Quanto ao que disse ou deixou de dizer, só teria de alegar ninguém ter nada a ver com o que diz ou pensa no recato da sua esfera privada.
2. As direitas vão sendo confrontadas com a incapacidade de formularem políticas alternativas com alguma substância, afundando-se na labiríntica falta de argumentos.
Por seu lado o governo vai somando excelentes indicadores: o aumento de 7% no consumo interno deste período de Natal, mostra que, mesmo com algum atraso, está a verificar-se a alavancagem da atividade económica através da devolução de rendimentos às famílias. Ademais espera-se um défice da ordem dos 2,2% no PIB depois dos excecionais resultados conseguidos com o novo plano de regularização de dívidas ao fisco e à Segurança Social, que renderá quase 1,8 mil milhões de euros, alguns deles já dados como de cobrança mais do que duvidosa. 
Pedro Cabrita Reis 

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

O questionar do que nos querem convencer

Ontem, num dos telejornais da RTP, uma repórter entrevistava vários automobilistas por causa do irrisório aumento no preço da gasolina verificado na véspera. 
«Isto só neste país!», vociferava um. «Temos de aguentar!», dizia outro com um semblante carregado. Enfim o costume neste tipo de reportagens sempre mostradas, quando o preço aumenta e nunca quando ele baixa em função das flutuações do mercado.
Mas a azougada entrevistadora, ainda não se dava por satisfeita e lá conseguiu a resposta pretendida, quando questionou outro intermediário da mensagem que queria transmitir: «E de quem acha que é a culpa. De alguém, do governo?»
E lá passou a mensagem que pretendia inocular nos espetadores: a culpa do que de mal acontece está sempre associada a este governo, que tantos engulhos parece causar a quem manda na (des)informação da estação pública.
E somos nós todos, os que maioritariamente se identificam com este governo, que a pagamos, sem que a tutela consiga pôr na ordem quem manipula e deturpa a realidade dos nossos dias.
É que já sabemos o que sucederia se ela procurasse pôr cobro a este descalabro: não faltaria a histeria do Rangel e do coro a ele associado quanto à asfixia sobre a suposta liberdade de imprensa, que só vemos a servir os propósitos das direitas solidamente barricadas nos meios de comunicação social.
Mas outro exemplo de como jornais, rádios e televisões se conjugam para denegrir a ação do governo, esteve bem explicita na capa de ontem do «Público», que “denunciava” o aumento em quase 400% no ordenado da esposa do presidente da câmara de Vila Nova de Gaia, que pertence ao Partido Socialista, e costuma apoiar a IPSS onde ela trabalha.
De pouco importava à «jornalista» responsável pela peça, que a referida senhora tivesse começado por trabalhar nessa IPSS a meio tempo, pelo que a passagem a horário completo tivesse justificado plenamente a duplicação da remuneração. E anote-se que ela conseguira o emprego quando era Luís Filipe de Meneses o titular do cargo, pelo que não existiu uma relação causa-efeito entre o poder do esposo e a sua contratação.
A peça também pouca relevância dá ao facto de, por mérito, ela ter sido promovida a cargo de direção e justificar-se assim o correspondente aumento de acordo com tabela salarial reconhecida como correta para as novas responsabilidades que passou a ter. Manifesta-se, pois, em tal peça a suspeição, não fundamentada, que a evolução profissional de alguém se explique, não em função das suas capacidades e competências, mas pelo facto de ser casado com quem quer que seja.
Não se recorda que o jornal da SONAE tenha estado tão atento quando o anterior presidente da Câmara nomeou a nova esposa para cargo de direção dentro do próprio município.
Acresce ainda que a mesma peça jornalística não dá importância à diminuição dos apoios da Câmara a essa IPSS no atual mandato do autarca socialista não encontrando melhor denúncia do que o subsídio para a visita de crianças a Lisboa para se divertirem na Kidzania.
A concluir fica a informação adicional de tudo resultar da cobardia de denúncia anónima, revelando o quão salazarenta continua a ser a mentalidade do atual diretor do jornal, que terá dado cobertura a tão grotesca manobra de desinformação.
Cabe-nos a nós, nas redes sociais, a missão de irmos desarticulando este tipo de casos. Sobretudo, enquanto não for possível reconstruir um tipo de informação objetiva e deontologicamente irrepreensível como se julgou possível ter quando um grupo de jornalistas se associou para a criação do saudoso projeto de «O Jornal». 
René Magritte

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

A sorte que temos tido!

No «L’Obs» desta semana o respetivo diretor, Mathieu Croissandeau, queixa-se deste 2016 ter sido, desde há muito tempo, o pior ano vivido pela comunidade internacional entre a permanente ameaça terrorista e os massacres de populações, o inesgotável fluxo de emigrantes através do Mediterrâneo e os naufrágios que lhes causaram mais de sete mil mortes, as desigualdades crescentes entre os muito ricos e os que nada têm por causa do desarranjo causado pela globalização, a incapacidade das esquerdas para corresponderem aos medos e raivas das populações e o decorrente crescimento das direitas mais extremistas.
Compreende-se que, em tal conjuntura, os europeus e os norte-americanos se sintam tomados de um pessimismo, que os leva a votar de acordo com as emoções neles suscitadas pelas mentiras disseminadas por sites e meios de (des)informação, neles capazes de insinuar uma realidade bastante diferente da que julgam ver.
A razão tem andado arredada do comportamento dos eleitorados e as suas escolhas só agravam o que já eram as dificuldades sentidas neste período histórico em que se vive a transição de uma economia de utilização ainda significativa de mão-de-obra pouco qualificada para uma outra, bastante mais automatizada, onde os operários se veem substituídos por técnicos altamente especializados.
A exemplo do sucedido com os operários dos teares de Manchester, que vandalizaram os que já recorriam à máquina a vapor, não há como impedir a evolução tecnológica. E camadas significativas das populações estarão condenadas a serem deixadas para trás se os governos não assumirem para si o papel histórico de as preparar e adaptar aos tempos que virão.
É por isso que ao ler o editorial da revista francesa não pude deixar de concluir na sorte que temos. Os perigos oriundos de todas as latitudes, seja sob a forma de fanáticos jiadistas, quer dos não menos maníacos do austericídio orçamental, coligados com os devotos do neoliberalismo na sua versão mais selvagem, ameaçam diariamente a continuidade bem sucedida do atual governo de António Costa. Mas, no último ano, com a maioria parlamentar a possibilitar políticas da mais elementar justiça, os portugueses sentiram renascida uma esperança, que os demais europeus andam a ver perdida nos contínuos ataques à confortável situação económica e social em que se julgavam mergulhados.
Pode-se dizer que, de entre todos os diversos povos europeus, deveremos ter sido os que terão conhecido uma evolução mais positiva dos índices de confiança num futuro onde se passou a encontrar espaço para o exercício dos direitos e não apenas para os dos deveres.
E o que surpreende - mas talvez não se trate de um acaso! - é a experiência portuguesa ainda não ter sido devidamente atentada por quem anda a iludir-se com as já duramente testadas soluções, que tanta desgraça causaram a todos quantos viveram o período da Segunda Guerra Mundial, quer antes com a guerra de Espanha, quer o depois, quando portugueses, espanhóis, e temporariamente, os gregos se viram oprimidos pelos antecessores dos fascistas de hoje.
Esperemos que os sucessos evidentes na governação comecem a suscitar a curiosidade dos que andam a proclamar a falência da social-democracia, mas não percebem como o progressismo está a encontrar sábia solução neste cantinho à beira-mar plantado. 
Bridget Riley

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

A Educação como ADN das esquerdas

1. O esforço de democratização do conhecimento reafirmado por António Costa na sua mensagem de Natal retoma as apostas anteriormente implementadas por António Guterres e José Sócrates na educação e confirmam os socialistas como os que verdadeiramente põem esse objetivo como um dos eixos primordiais da governação.
Trata-se de uma mundividência completamente oposta à de Passos Coelho e das direitas em geral, que continuam a ver como solução para o país a sua bangladeshização, concorrendo com os países asiáticos pela produção de produtos de pouco valor acrescentado. Por isso foi permanente a ladainha sobre os elevados custos do trabalho no período entre 2011 e 2015.
Mas, a exemplo do que aconteceu com a anterior experiência socialista não se podem deixar de fora os que, ainda em idade ativa, estão subqualificados para os empregos em que produzem aquém dos necessário, ou não encontram quem os contrate com as atuais competências.
Tendo na altura vivido a experiência muito enriquecedora de muitos dos meus colaboradores na empresa que então dirigia, se terem disposto a melhorar e validar as suas competências, concluí o quanto foi para eles motivador esse desafio inicialmente visto com alguma desconfiança. Vi-lhes aumentada a autoestima e a vontade de, alcançada uma meta, sentirem-se galvanizados a seguirem para a imediatamente acima.
Infelizmente o governo das direitas acabou com o programa das Novas Oportunidades e eles não puderam evoluir como pretendiam.
Agora, até pela necessidade de que essa camada de trabalhadores acompanhe a acelerada transformação das nossas atividades produtivas, importa não os deixar para trás. Até porque vimos pelas eleições americanas, o que sucede quando os trabalhadores de indústrias ameaçadas pela globalização, ficam entregues a si mesmos, sem esperança nem orientação.
É, pois, obrigação das esquerdas que, através do programa «Qualifica» e seus sucedâneos, dar resposta à apetência pelo conhecimento que a maioria dos portugueses mostram se devidamente  instigados para tal.
2. O nosso atento amigo Jaime Santos comentou, e corroborou em grande parte, o que aqui tinha escrito sobre a descida da TSU para os patrões. Eis o seu texto:
“Sim, se existisse verdadeira justiça, a balança deveria inclinar-se mais para o lado daqueles que trabalham. Mas como Costa é acima de tudo um pragmático prudente, decidiu não forçar excessivamente a nota, seguramente com receio que uma subida do SM sem contrapartidas levasse à perda de emprego.
Lá porque muitas empresas (e IPSS) que sobrevivem graças aos salários baixos não mereçam efetivamente continuar a existir, não quer dizer que as mesmas não providenciem emprego a muita gente.
Já quanto à atitude do BE, a vontade de estar sempre em bicos de pés (em relação sobretudo ao eterno rival PCP) será, tarde ou cedo, a sua perda, se não mudarem de atitude. Se os meninos quiserem um dia ser Governo, precisam de crescer e aprender a jogar o jogo longo.
Agora, para o PS, esse conflito permanente a que os Socialistas são alheios pode revelar-se muito conveniente, porque enquanto os parceiros se entretêm com bicadas entre si, deixam Costa governar em paz... “
Importa, porém, considerar que o Bloco de Esquerda já veio negar, através do seu site «Esquerda», a veracidade da informação que o «Público» trouxera à primeira página.
Ora, tendo em conta quem é o dono desse jornal e o respetivo diretor, não custa aceitar a hipótese de terem razão e a história ser mais uma das que esse centro de desinformação vai criando como «pós-verdades» destinadas a criar zizania entre os parceiros de coligação.
Juan Miró

domingo, 25 de dezembro de 2016

O discurso racional contra as emoções apocalíticas

Passaram hoje dois anos sobre a «prenda de Natal» recebida pelos cerca de dois mil e quinhentos trabalhadores da empresa inglesa City Link, que se viram despedidos de um dia para o outro.
Na altura ela era das principais distribuidoras de encomendadas online e tudo apontava para uma perdurabilidade suscitada pela inauguração de uma linha automática de triagem cujo investimento na investigação e construção aparentara uma aposta séria dos acionistas no seu futuro.
Entusiasmados os condutores, que distribuíam diariamente cerca de duas centenas de encomendas no contínuo vai-vem pelas ruas de toda a Grã-Bretanha, corriam aceleradamente entre a viatura e a porta da morada aprazada para conseguirem cumprir o rigoroso horário das entregas.
O fecho abrupto da City Link teve a ver com a caracterização dos seus proprietários: em vez de serem conhecedores do negócio e suas potencialidades eram meros investidores numa empresa financeira cujo único interesse era a maximização dos lucros para uma distribuição tão significativa quanto possível de dividendos.
Estava assim demonstrada o quão irracional é o capitalismo na sua versão mais selvagem, a de um neoliberalismo, que despreza as razões económicas e só se cinge às de foro financeiro.
Qual a  importância de um resultado menos satisfatório se a inovadora linha de triagem tenderia a possibilitar uma maior capacidade de tratamento de encomendas em menor período de tempo?
Com a sua precipitada decisão esses acionistas nem sequer deram oportunidade a que o novo processo produtivo revelasse o seu potencial. E milhares de famílias viram-se, de súbito, privadas do seu ganha-pão.
Esta forma de capitalismo revela-se destrutiva e desigual: para que a ganância bolsista se realize, empobrecem-se os que só têm de seu o seu trabalho. E reduz-se inevitavelmente o volume do emprego disponível, criando-se um tipo de eleitorado eivado de raiva, facilmente seduzido pelas mentiras da extrema-direita. Voltam a fazer sentido as palavras de Hanna Arendt quando alertava para a capacidade de mobilização das ditaduras junto dos que não sabem distinguir os factos das ficções, privilegiando mais facilmente estas últimas se lhes soarem mais sedutoras.
A solução, ao contrário do que alguns propõem, não reside em abandonar a agenda das causas fraturantes, que pareceu predominar em certas esquerdas numa determinada altura (o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o direito a abortar, etc.), mas conjuga-las com um discurso incisivo de respostas efetivas a quem delas muito carece por ter um medo terrível de não aguentar com as ameaças do futuro.
Quando Passos Coelho adota esse discurso zangado em que prevê raios e coriscos está a mimetizar, mesmo que sem disso ter consciência, os discursos apocalíticos de Trump, Farage ou Marine Le Pen.
O problema das esquerdas, quer norte-americanas, quer europeias, tem sido o convencimento de lhe bastar um discurso racional, capaz de ser ouvido inteligentemente por aqueles que julga serem os seus eleitores. A verdade, e as últimas eleições e referendos têm-no demonstrado, é que os cidadãos andam sequiosos de discursos emotivos. Foi por compreender isso, que Marcelo usou a história dos afetos. Ora as esquerdas têm de aprender a demonstrar aos seus eleitores que, se precisamos das emoções, também temos de sabê-las criticar, quando irracionais, e sobretudo prejudiciais para quem parece tão lesto a comprar gato por lebre. 
Paul Klee

Enquanto se vão comendo rabanadas

Chegamos ao dia de Natal e o país político fica em momentânea letargia para que os crentes e os não crentes na transcendência cristã possam trocar presentes e ganhar uns quilos na balança.
Mário Soares continua em estado crítico não havendo quem acredite num qualquer milagre que o pudesse devolver à lucidez com que nos brindou décadas a fio, mesmo quando a sua ação coincidiu com o discutível socialismo escondido na gaveta.
Ficou-se, ainda assim, a saber-se que estava o Bloco a discutir com o PS a forma de assegurar o aumento do salário mínimo e, perante uma possibilidade mais favorável do que a acertada na Concertação Social - um abaixamento da TSU aos trabalhadores em vez da concedida aos patrões - decidiu sabotar a negociação com um cartaz em que dava os 557 euros como adquiridos. Ora a solução proposta pelo governo passava por maior salário real depois de impostos, mesmo que à custa de aumento mais moderado do valor nominal.
O episódio só confirma o que já se sabe: com o PCP a discussão é pão, pão, queijo, queijo. Ou há acordo ou não há. No caso do Bloco persiste a lógica de comportar-se à mesa das negociações de uma forma e depois condicioná-las com habilidades muito discutíveis fora desse contexto.
Soube-se, igualmente, que mais de quatro centenas de juízes procuraram apoio junto de Marcelo para que obstasse legislação, que viam como atentatória da sua independência. Não queriam, nomeadamente, arcar com mais trabalho do que têm andado a fazer, dificultando assim os anseios coletivos quanto a uma Justiça mais célere e mais alargada geograficamente.
De Belém levaram raspas, mas há que estar muito atento à reação corporativa dessa classe muito niquenta: a última vez que um primeiro-ministro lhes mexeu nos direitos - o do tempo de férias! - viu-se o que lhe aconteceu. Bem pode António Costa precaver-se que a casta justiceira não é para brincadeiras.
Na oposição crescem os detratores de Passos Coelho dentro do seu partido, mas as contas vão sendo feitas com cautelas, porque um eventual congresso extraordinário já colidiria com a pré-campanha para as autárquicas. Para já o ainda líder laranja pode respirar descansado mais uns meses. E, convenhamos, que as esquerdas agradecem a conveniência de manterem um tal bombo para o uso inclemente das suas baquetas.
Uma última referência nacional para a recusa de quase todos os partidos em darem provimento à proposta do PAN para que se acabe com essa indignidade “desportiva”, que se chama tiro aos pombos. Infelizmente só o Bloco se associou à tentativa de proibição de um exemplo de barbárie no relacionamento com os animais.
Olhando para outras latitudes conclui-se que, sabendo-se que nos mais recentes atentados terroristas, os seus autores deixaram documentos pelos quais puderam ser identificados, conclui-se pelo seu narcisismo, pela vontade de serem visíveis, mesmo que à custa de tantas vidas inocentes.
Como curiosidade final fica a novidade de vermos a Roménia agora dirigida por uma primeira-ministra muçulmana. Por muito que os racistas e os fanáticos católicos pretendam uma Europa exclusivamente branca e cristã, a multiculturalidade explicita-se como uma evidência incontornável. 
Hans Erni, «Boxing» (1983)

sábado, 24 de dezembro de 2016

A castração mental dos jovens centristas

Os números agora divulgados pelo INE acabam de vez com um conjunto de narrativas emitidas por uma direita, cada vez com menos argumentos para contrariarem os aspetos positivos da governação. Assim, não só o défice corresponderá a menos de 2,5% do PIB como a carga fiscal diminuiu 700 milhões de euros em relação ao ano transato, ao contrário do que PSD e CDS se esforçaram por inculcar na mente dos portugueses. E, cereja em cima do bolo, a taxa de poupança das famílias voltou a subir para 4% do rendimento disponível.
Face a todos estes indicadores o que resta às direitas? Entrar em autofagia como ocorre no PSD ou propor uma campanha em prol da abstinência junto dos jovens estudantes do secundário, como acaba de o fazer a Juventude Centrista?
Há muitos anos, a propósito do deputado Morgado, a poetisa Natália Correia fez memorável sátira em que o dava como capado. Ora, pelo menos mentalmente, os jovens do partido de Cristas continuam a sentir-se como esse seu antecessor: uns verdadeiros capados mentais…

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Eu sou contra a TSU para os patrões, mas...

Pessoalmente causa-me algum engulho que os patrões recebam a redução da TSU como benesse natalícia, tendo em conta que levam décadas de claro benefício dos sucessivos governos, quer pagando remunerações abaixo do que significava efetivamente o valor do salário mínimo, quando ele foi fixado pela primeira vez - estudos apontam que a inflação, se tivesse sido sempre refletida nesse valor, já apontaria para valor da ordem dos 900 euros! -, mas sobretudo por terem acolhido com particular entusiasmo as alterações promovidas no Código do Trabalho nos quatro anos de desgoverno de Passos, que lhes facilitou indecorosamente a possibilidade de despedirem e precarizarem quem exploram.
A Justiça mandaria que sofressem uma inflexão significativa na relação e forças, que têm com os que para eles trabalham, de forma a não reinar uma ditadura de facto dentro das empresas.
Igualmente sabemos que os salários não são o fator mais determinante dos custos globais da  operação das empresas, havendo outros como os custos de energia, de matérias-primas, de distribuição, etc., cujo impacto é tão ou mais determinante para a sua rentabilidade. Por isso mesmo, quando António Saraiva apela a Arménio Carlos para que não seja demagógico, bem precisa que lhe ofereçam um espelho. Porque, na realidade, empresas incapazes de sobreviverem se não pagarem a quem nelas trabalha os salários bastantes para que vivam decentemente não merecem existir.
No entanto, surgem sempre os «mas…», que nos levam a ter de transigir com o que nos levaria a discordar numa primeira reação. Ora, para as instituições europeias em que ainda estamos inseridos, este tipo de acordo constitui um contra-argumento para com as motivações, que possam ter contra um governo situado à esquerda de todos os que estão em funções no continente.
Não é que os burocratas de Bruxelas ou de Frankfurt não persistam em levantar obstáculos por razões estritamente ideológicas, mas mais dificilmente podem proclamá-las em voz alta...
Ivan Bevzenko 

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Um passeio pelos Passos perdidos

1. Acabou o último debate quinzenal do ano, que voltou a ser um passeio para António Costa com argumentação bastante para retirar fundamentos às críticas das direitas e subscrever as críticas das demais esquerdas, sobre o quanto desejaria maior rapidez nas políticas necessárias para reduzir a pobreza e aumentar o emprego, pesem embora os animadores índices ultimamente publicados pelo INE.
Fica realçado o despeito do PSD, que age com fronhas mal dispostas ao despique parlamentar, e a incapacidade de Cristas em se fazer de engraçadinha com prendas natalícias, que têm prometida a justa retribuição: a de um retrovisor para se lembrar de todas as malfeitorias praticadas pelo governo a que pertenceu. Porque soa a falso a tentativa de se voltar a arvorar em partido dos contribuintes, quando se recorda de que partido era o titular dos Assuntos Fiscais entre 2011 e 2015.
Para o ano há mais, mas presume-se duradoura a travessia do deserto por quem julgou definitivamente ganha uma guerra, que se revelaria muito mais decisiva com as batalhas deste ano. Para já nem os reformados foram condenados a ainda mais empobrecerem, nem os funcionários públicos voltaram a ser olhados como madraços dispensáveis. Faltará rever a legislação laboral, que continua a possibilitar as mais execráveis injustiças, à conta da discricionariedade com que se continua a poder despedir em Portugal.
2. O governo previu arrecadar 100 milhões de euros com o “perdão” fiscal, o resultado foi o seu quadruplo. Para quem ainda alimentava secretas esperanças quanto à probabilidade de não ver o governo cumprir a meta de 2,5% de défice no PIB, estes dados acabam com todas as dúvidas. No próximo ano a capacidade de chantagem das instituições europeias contra o governo de António Costa será bem mais reduzida...
3. O atentado de Berlim não comportará um efeito tão drástico no cenário político alemão, quanto se chegou a temer. Nomeadamente para o caos da discórdia, que Viriato Soromenho Marques previu, quando escreveu no «Diário de Notícias»: “aquilo que o camião assassino quis esmagar, derramando o veneno do medo com fria premeditação, é a capacidade de os europeus transformarem 2017 no ano de reencontro com o seu futuro comum.”
A extrema-direita, que convocou manifestações para inculpar Angela Merkel como responsável pelas mortes verificadas, assistiu a um número bastante mais significativo de contramanifestantes indignados com o oportunismo revoltante de quem não olha a meios para cumprir os seus ínvios objetivos. E, apesar de haver quem considere que o ataque causará muito mais mossa em França do que na Alemanha, precipitam-se os que já dão como inevitável uma segunda volta de Fillon contra Marine Le Pen nas presidenciais de maio. A cinco meses desse momento crucial quanto à direção tomada pela Europa nos próximos anos, ainda acredito na possibilidade de um toque a reunir de toda a esquerda francesa, com quem nada tem a ver com Hollande ou Manuel Valls.
4. A Polónia continua a assistir a manifestações quotidianas contra a deriva ditatorial do governo de direita. Bastou um ano para os  eleitores compreenderem o logro em que haviam caído. 
Picasso