sexta-feira, 16 de maio de 2014

POLÍTICA: Piketty e o capitalismo posto seriamente em causa

Às vezes os autores dos textos mais influentes do seu tempo não parecem corresponder ao carácter transgressor, que acabam por representar. Se pensarmos em Charles Darwin reconhecemos que a sua formação em Teologia e a sua inserção na classe mais abastada do seu tempo na Inglaterra não o indicava como o revolucionário, que iria pôr em causa os princípios mais conservadores do seu tempo ao confrontá-los com a sua teoria sobre a Origem das Espécies.
Noutro exemplo lapidar encontramos Freud cujo conservadorismo era evidente com a sua preocupação com as aparências e o tipo de família tradicional em que cresceu e viria a replicar. E, no entanto, muita da revolução sexual do século XX deve-se à explicação para os comportamentos recalcados baseados nos quais a Psicanálise se fundamentou como teoria científica.
Quer Darwin, quer Freud não podiam imaginar o efeito que as suas teorias iriam ter nas sociedades do seu tempo e das que se lhes sucederiam. Mas as suas constatações eram tão evidentes que, mesmo contra os seus preconceitos, tinham de as apresentar.
Vem isto a propósito do livro de Thomas Piketty - «Capital no Século XXI» - que está a conhecer um entusiasmo vibrante nos meios universitários americanos e europeus e é já considerado por Paul Krugman como o livro da década.
Não se assumindo como marxista, nem pretendendo pôr em causa o sistema capitalista, que continua a considerar como o único capaz de garantir a maximização da produção da riqueza a nível global, Piketty demonstra porém a falácia de algumas das suas principais bandeiras: nem premeia os empreendedores, nem consegue evitar uma progressiva concentração da riqueza nas mãos de um número cada vez mais reduzido de plutocratas.
O capitalismo, pelo contrário, fundamenta-se na transmissão patrimonial da riqueza de geração em geração, impedindo a ascensão social de quem jamais consegue acumular capital suficiente para sair da sua condição de classe. Ademais, garante um retorno de rendimento sobre tais bens, que excede em muito o correspondente crescimento da produção. 
O resultado a prazo é a forte probabilidade de só por meios antidemocráticos ser possível garantir que o mesmo ritmo de rentabilização dessa acumulação de capital prossiga sem que a economia real produza ativos bastantes para a remunerar.
Piketty é muito crítico da solução austeritária adotada na Europa do sul para corresponder à crise das dívidas soberanas e defende, como alternativa, a forte taxação dos mais ricos de forma a devolver algum equilíbrio à forma como a riqueza é distribuída. Mas o alcance da sua exposição poderá ir muito além deste tipo de propostas, porque atingido nalguns dos seus princípios identitários, é o próprio capitalismo que está posto em causa.
Muito embora possa não passar de um fenómeno conjuntural, o livro de Piketty poderá vir a ser muito mais determinante do que ele próprio presumiria, quando se abalançou à sua escrita.


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